A relação planeta-mundo recebeu atenção da mídia no mês de outubro, e deve continuar em novembro. Tal relação é vista neste artigo como a Terra, realidade geofísica, dando suporte à realidade igualmente concreta dos seres que a habitam, entre os quais aqueles que, por mediações simbólicas, fazem dela também o mundo. E fazer essa distinção não significa refletir com base em filosofia barata. A questão é que muito do discurso ambiental que apareceu na mídia nas últimas semanas clama por mais cuidado com o planeta, mas pouco toca na relação que tal cuidado tem a ver com o mundo. É um discurso que apaga asperezas. E poucos exercem isso com tanta evidência quanto Albert Gore Jr., político dos Estados Unidos que é a vedete ambiental do momento.
Al Gore esteve no Brasil para participar de um evento e promover o livro e o filme Uma verdade inconveniente, que já pode ser lido e visto no Brasil. Um exemplo eloqüente do discurso de Gore, que perdeu as eleições presidenciais para George Bush em 2000, é um artigo originalmente publicado na revista Vanity Fair e que faz parte da ‘edição verde’ da revista semanal brasileira Época de 16 de outubro.
Uma característica que chama a atenção, no artigo, é a série de expressões que abrem ou se inserem no meio de vários parágrafos: ‘Estamos virtualmente derretendo todas as geleiras do mundo…’, ‘… estamos derretendo rapidamente a vasta, mas relativamente fina, camada de gelo…’, ‘Estamos começando a derreter – e provavelmente a desestabilizar…’, ‘Somos nós. Estamos jogando imprudentemente tanto gás carbônico na atmosfera da Terra…’. E por aí vai. Assim, sempre num amplo plural que leva a responsabilidades ‘compartidas’. Nós quem? Na mesma medida? Esse coletivo apaga uma aspereza óbvia, sentida na pele das populações miseráveis dos países cá do Sul, cotidianamente em busca de uma refeição por dia.
Discurso religioso
O corolário de tanto plural no discurso algoriano é o seguinte: ‘Como disse Abraham Lincoln durante o período de maior provação nos EUA: `Precisamos nos livrar da servidão, e depois salvaremos nosso país´. A América está começando a acordar. E agora salvaremos nosso planeta’.
Esse tom messiânico, que caberia bem ao conhecido herói de capa vermelha e colant azul, tem um lugar cravado na retórica de Gore. Ele diz que fazer parte dessa ‘causa’ tem um ‘propósito moral’:
Quando nos elevarmos, nossas almas vão se satisfazer e nos unirão. Aqueles que hoje sufocam com o cinismo e desespero poderão respirar livremente. Aqueles que hoje sofrem pela perda de significado em suas vidas encontrarão a esperança. Quando nos elevarmos, experimentaremos uma epifania ao descobrir que esta crise não gira realmente em torno de política. Trata-se de um desafio moral e espiritual. O que está em jogo é a sobrevivência de nossa civilização e a habitabilidade da Terra.
É arrepiante ver a nova vedete ambiental, mesma ‘desembarcada’ de um país como os Estados Unidos, interpretar a chamada crise ambiental em termos tão típicos do discurso religioso. O tom se eleva em outro trecho do artigo de Gore:
Em última análise, não se trata de uma discussão científica qualquer, nem de um diálogo político. Trata-se de quem somos nós como seres humanos. Trata-se de nossa capacidade de transcender nossas limitações, de nos elevarmos a essa nova ocasião. De enxergar com nossos corações, assim como com nossas mentes, qual é a reação esperada. Esse é um desafio moral, ético e espiritual.
Aparece a política…
Deixando de fora da discussão a ciência e a política, o ex-vice-presidente dos Estados Unidos espera que ‘… a nova compreensão que obtivermos – sobre quem somos realmente – nos dará a capacidade moral de entender a verdadeira natureza de outros desafios correlacionados, que também precisam ser definidos como imperativos morais com soluções práticas’. E lista a aids, a miséria global, genocídio, fome, guerras civis…
O discurso de Gore se liga a três acontecimentos que viraram notícia nas últimas semanas. Primeiro foi a divulgação de relatório da ONG WWF que revela uso de recursos naturais 25% acima da capacidade de regeneração do planeta. Depois veio o Relatório Stern, divulgado pelo governo britânico, que mostra o impacto econômico do efeito estufa. Al Gore, inclusive, virou consultor do governo britânico para o assunto. E, agora em novembro, a realização da COP-12, conferência mundial sobre mudanças climáticas que se realiza no Quênia. Nesta, o governo brasileiro vai sugerir que países que possuam florestas tropicais recebam dinheiro dos países ricos para mantê-las em pé. Algo como os tais créditos de carbono.
Essas questões ajudam a compreender o fim do artigo de Gore publicado na Vanity Fair e reproduzido pela Época: ‘E agora enfrentaremos uma crise de perigo inédito que também oferece oportunidades como nenhuma outra. Enquanto nos erguemos para enfrentar esse desafio histórico, ele nos promete prosperidade, um propósito comum e a renovação de nossa autoridade moral. (…) A única coisa que falta é a vontade política. Mas, nas democracias, a vontade política é um recurso renovável.’
Ora, eis que aparece a política… A inevitável relação planeta-mundo.
Escolhas ditadas
Esse ‘nós’ do discurso de Gore tem o seu oposto, o insistente ‘você’ das máximas do discurso ambiental a partir das quais cada um de nós é instado a fazer algo, mesmo que ‘simples’, para ‘preservar o planeta’. Ora, é possível preservar o planeta, mas como fazer isso sem a mediação política do mundo?
O editorial da ‘edição verde’ da revista Época parece dar uma resposta vaga, e na forma de um sintomático P.S.: ‘Prestar um serviço para melhorar a vida do leitor é uma das principais missões de uma revista semanal. Para isso, criamos a seção Vida Útil. Ela trará toda semana as dicas mais importantes no mundo da gastronomia, do turismo, da saúde, da tecnologia, do consumo, do dinheiro e da moda. Sempre terá um enfoque prático, de modo a orientar você a fazer as melhores escolhas’.
Tecnologia, consumo, dinheiro. No fim, é isso o que importa às pessoas que, no mundo, podem fazer escolhas, e aos grupos que ditam as escolhas possíveis. E é tudo o que Gore não diz em seu discurso livre de asperezas. Deus Salve a América. E nos salve…
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Jornalista, Florianópolis