Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Astrologia e jornalismo pseudocientífico

Já há alguns anos circula na internet um texto humorístico sobre os perigos do pão. Entre outras estatísticas alarmantes, menciona que ‘mais de 98% dos criminosos condenados comem pão’, ‘metade das crianças que crescem em lares onde se come pão têm desempenho abaixo da média’ ou ‘mais de 90% dos crimes são cometidos até 24 horas após a ingestão de pão’ (The Dangers of Bread – http://www.tcs.org/ioport/mar99/bread.htm) .

Apesar da presença dos números e da aparência científica de algumas das afirmações, coisas que às vezes seduzem alguns jornalistas, dificilmente alguém levaria esse artigo alarmista propondo proibir a venda do pão a menores de idade a sério. Muito menos se fosse alguém habituado à reportagem científica.

No entanto, o Globo Repórter levado ao ar no dia 25/6/2004 (‘Terapias Alternativas – O poder da astrologia’ – http://redeglobo6.globo.com/Globoreporter/0,19125,VGC0-2703-3497-2-54672,00.html) noticiou uma pesquisa que pouco difere da piada do pão. Trata-se de uma reportagem falando sobre a astrologia, que relata os resultados aparentemente impressionantes obtidos por um estudo feito na UnB, que comprovaria a influência dos astros sobre as pessoas.

Uma afirmação extraordinária, que contraria vários bons estudos científicos publicados, inclusive em periódicos prestigiosos como a Nature, e que não atribuem à astrologia capacidade maior de prever características das pessoas do que o acaso. Embora a maioria desses estudos seja desconhecida do público e pouco divulgada, ao menos um trabalho recente, o de Geoffrey Dean e Ivan Kelly, recebeu alguma atenção da mídia em agosto de 2003, quando foi amplamente divulgado como prova de que a astrologia não funciona. Nesse estudo, amplo e bem implementado, foram acompanhadas mais de 2.000 pessoas durante várias décadas, e não foi encontrada nenhuma correlação entre datas e locais de nascimento e traços de personalidade dos participantes.

Claro que nenhum jornal ou revista parou de publicar a coluna de horóscopos depois disso – afinal, trata-se apenas de um mero estudo científico. Ora, que peso têm simples fatos científicos diante de uma crença que tem boa popularidade?

Média alta

Como era de se esperar, não só a crença na astrologia não diminuiu entre as pessoas comuns como parece não ter diminuído nem mesmo entre alguns jornalistas e pesquisadores.

O estudo da UnB solicitou a um astrólogo que elaborasse os mapas astrais de 100 pessoas, e com base neles produzisse formulários descrevendo características desses participantes. Estes então teriam de avaliar os itens da descrição, dando notas de 1 a 5 para o quanto achassem que essas características seriam acuradas. Para a surpresa e espanto dos pesquisadores, o índice de acerto teria chegado a 95%. Não havia, no entanto, motivo algum para espanto. Já é bem conhecida por qualquer pessoa que pesquise sobre o assunto a característica principal que faz com que as pessoas tenham a impressão de que a astrologia, e outras técnicas adivinhatórias, funcionem. O segredo é fazerem-se descrições suficientemente vagas e que se encaixem suficientemente bem com características da maioria das pessoas, de forma que o leitor sempre encontre alguma coisa que pareça ser acertada. Esse aspecto psicológico que faz com que as pessoas aceitem descrições gerais, que poderiam servir para quase todo mundo, como se fossem feitas unicamente para elas, é conhecido como Efeito Forer (Efeito Forer – http://brazil.skepdic.com/forer.html), e leva o nome do pesquisador que, em 1948, portanto há mais de meio século, fez um estudo muito parecido com o da UnB.

Forer também apresentou a um grupo de estudantes um formulário com características de suas personalidades, e pediu a eles que dessem notas de 1 a 5 para o acerto. A diferença é que, em vez de entregar aos participantes do teste inventários de personalidade reais, deu a todos eles o mesmíssimo texto, tirado de uma coluna de astrologia. O resultado foi uma média de notas elevadíssima, 4,26. Exatamente por ser conhecido há mais de 50 anos, esse efeito precisa ser controlado em qualquer teste da astrologia que se pretenda científico, e isso efetivamente é levado em conta em estudos publicados na literatura.

Opinião crítica

James Randi, o mágico americano conhecido por oferecer um prêmio de 1 milhão de dólares a qualquer um que consiga comprovar fenômenos paranormais, relata que, na juventude, foi responsável pela coluna de astrologia de um jornal canadense. Escrevia a coluna com o pseudônimo de Zo-Ran, simplesmente recortando os horóscopos de revistas antigas, colocando os papéis dentro de um chapéu e sorteando o que iria colocar sob cada signo. A despeito desse método nada astrológico, muito menos científico, de produzir horóscopos, não faltaram comentários elogiosos de leitores. O mesmo Randi, num programa de rádio, certa vez fez a leitura de uma descrição das características de um ouvinte, que supostamente teriam sido obtidas através da astrologia. O ouvinte prontamente as identificou como acertadas. Randi disse então ter cometido um engano, e que teria lido informações que na verdade eram de outra pessoa, e então leu outra que seria a descrição correta. O ouvinte classificou a esta última como ainda mais correta que a primeira. Ambas, no entanto, eram falsas.

Obter ‘acertos’ da forma que a astrologia faz é, obviamente, bastante fácil. Resumindo, já se sabe, há muito tempo, que a base da astrologia é dizer coisas como ‘você provavelmente come pão’. Nota 5!

Por tudo isso, causa uma enorme estranheza o fato de que nem os pesquisadores da UnB, nem a equipe do Globo Repórter, tenham sequer feito qualquer menção a essa possível falha metodológica. Nas últimas semanas, em correspondência com participantes de grupos de discussão, o pesquisador Paulo Celso Gomes, reconheceu a necessidade de se repetir o experimento controlando o Efeito Forer. Portanto, é de se estranhar que ele, mesmo tendo conhecimento da falta desse importante controle, tenha permitido que a reportagem levasse as conclusões do estudo ao ar, num programa televisivo de alcance nacional, sem qualquer comentário a respeito. Mais estranho ainda que a equipe do programa não pareça ter sequer procurado ouvir qualquer opinião crítica sobre o assunto. Não é a primeira vez que isso acontece.

Talvez fosse melhor que fizessem somente as habituais reportagens mostrando bichos da floresta. O risco de ajudarem a divulgar crenças pseudocientíficas é menor.

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Editor do Dicionário do Cético (http://www.cetico.cjb.net)