A passagem do planeta Vênus frente ao disco solar, observado da Terra, na terça-feira (8/6) – o ‘trânsito de Vênus’ na terminologia astronômica –, evoca, em todo o mundo, a história da ciência. No Brasil, além da ciência, está relacionado também à história do jornalismo e, certamente, é uma oportunidade para alguma reflexão.
As observações feitas em 6 de dezembro de 1882, quando essa passagem ocorreu pela última vez, foi um recurso para se conhecer, pelo uso da trigonometria, a distância mais precisa entre a Terra e o Sol. Para isso era necessário cronometrar precisamente os momentos de ‘entrada’ e ‘saída’ pelo disco solar do pequeno ponto escuro representado por Vênus.
O imperador brasileiro D. Pedro II entusiasmou-se com a idéia e assinou com outros países o primeiro acordo para uma colaboração científica. O Brasil organizou três missões: uma delas para as Antilhas, outra para o Nordeste e uma terceira, que vamos comentar, para o Estreito de Magalhães, junto à cidade de Punta Arenas, no extremo sul do Chile.
A corveta Parnahyba, da Marinha imperial, equipada com velas e quatro caldeiras, foi escolhida para a viagem ao Sul por duas razões estratégicas: era econômica e desenvolvia boa velocidade.
Eram condições indispensáveis aos planos de D. Pedro II. Quando a Parnahyba deixou o Rio de Janeiro, em 26 de outubro de 1882, o cronograma da viagem já estava atrasado. E, claro, as verbas para a investigação eram exíguas.
Os Anais do Império registram a veemência com que políticos como Silveira da Motta, atacaram a iniciativa de D. Pedro II. No Parlamento, Silveira da Motta disse ‘observar há muito a predileção dos reis pela astronomia’. Na avaliação dele, ‘não é predileção do povo, que quer mais estradas de ferro, muito café, muita liberdade individual e governos econômicos e moralizadores’. O povo, esbravejava, ‘quer tudo isso e pouco se importa em saber o que vai pelas estrelas, pois isso é um luxo’.
Melhor exemplo do que hoje poderíamos caracterizar de pura ignorância, expressão de mentalidade senhorial, preocupada exclusivamente com os interesses de uma oligarquia rural escravista, Silveira da Motta não poderia oferecer.
Revista Ilustrada
Mas ele não estava só na sua cruzada obscurantista. Teve ajuda da imprensa.
A Revista Ilustrada, uma das publicações mais populares da época, foi uma das aliadas nesse ataque. Ângelo Agostini, chargista irreverente, reproduziu D. Pedro II como um completo maluco, interessado em tudo o que se passava pelo céu, mas inteiramente desligado do que ocorria à sua volta.
Os políticos estavam histéricos quando a Parnahyba deixou o porto do Rio com suas velas sustentadas por três grande mastros. Era uma oportunidade rara de atacar o imperador por um flanco promissor – o desconhecimento por parte da população das perspectivas da ciência, numa época em que a astrofísica iniciava um desenvolvimento rápido.
Os 120 mil contos de réis que D. Pedro II obtivera para financiar as expedições pareciam, aos olhos de políticos e da imprensa, dinheiro atirado no lixo.
Melhor tratamento que tiveram no Brasil, os tripulantes e passageiros da Parnahyba receberam em Montevidéu, no Uruguai.
O goveno uruguaio, num gesto de elegância, dispensou a equipe científica, liderada por Luis Cruls, da quarentena a que deveriam submeter-se todas as embarcações vindas de portos brasileiros. Principalmente do Rio de Janeiro, pelo receio de transmissão da febre amarela. Cruls havia sido contratado por D. Pedro II como diretor do Observatório Imperial. O grupo das Antilhas foi conduzido por Antônio Luís von Hoonholtz, o barão de Teffé.
Até Montevidéu a Parnahyba consumiu quatro dias de viagem, cobrindo pouco mais de mil milhas náuticas. A corveta foi impulsionada por bons ventos, especialmente na costa gaúcha, ainda que tenha passado por maus bocados em 7 de novembro, quando se aproximava de Puerto Deseado, no litoral da Patagônia.
Dois dias depois a tripulação via sinais de terra com efeitos de distorção visual provocados pela refração atmosférica, comum em altas latitudes.
A interação de massas atmosféricas com diferentes temperaturas produz, em latitudes elevadas, um estranho efeito de lente e pode deslocar ou aproximar corpos como ilhas, icebergs, outras embarcações ou porções de terra, enganando os tripulantes. É uma das explicações possíveis para erros de coordenadas envolvendo achados durante as primeiras abordagens da região subantártica.
As anotações do comandante da Paranhyba, Luiz Felipe Saldanha da Costa, tomadas num livro de capa dura, em vários momentos remete aos melhores clássicos da literatura do mar, pelas dificuldades meteorológicas que enfrentavam.
Ao penetrar as águas do Estreito de Magalhães, a corveta foi atingida pelos poderosos ventos antárticos e só três dias depois conseguiu atracar na Baía de Possession, agora com um dia de antecedência em relação ao cronograma previsto.
No dia 6 de dezembro, a equipe de Cruls trabalhou bem e as condições meteorológicas ajudaram. Como resultado, obteve um dos melhores dados em todo o mundo.
Doses de maquiavelismo
A postura crítica da imprensa envolvendo a iniciativa de D. Pedro II, por motivos que não estavam relacionados à ciência e ao que hoje poderíamos chamar de bem-estar social, não é exatamente coisa do passado. A cobertura da Folha de S.Paulo em relação ao governo Lula é uma clara evidência disso.
O trabalho da imprensa deve abranger a crítica aos governos. Aqui, no entanto, ela se dilui na intolerância, no preconceito e numa variante do autoritarismo. Na Folha, em relação a Lula, isso ficou evidente já no período pré-eleitoral, quando o atual presidente visitou a empresa.
Paulo Francis, na Folha, já havia caracterizado Lula como ‘barriga de feijão’, na época da disputa da presidência com Collor de Mello. O presidente deposto, que sempre ia muito além de beber umas cachaças, como o país inteiro se deu conta posteriormente, foi no mínimo exótico durante o tempo em que ficou no poder. No que foi talentosamente ajudado por seus ministros – entre eles a ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello.
Em relação a D. Pedro II, a postura da imprensa pode ter condicionado o Brasil a não se envolver com pesquisas na Antártida. E as perdas que tivemos com isso não podem sequer ser avaliadas.
A mesma Folha, onde trabalhei e fui para a Antártida pela primeira vez, enviando relatos diários para a redação, publicou, a propósito deles, um editorial defendendo a ‘prioridade de pesquisas na Amazônia’.
Uma professora de Ilhabela (SP), Helena França, enviou uma carta à redação criticando essa posição. Para a professora, o editorialista tinha ‘uma visão linear e mecânica, quando não xenófoba, de progresso científico’.
Um exemplo das influências antárticas estamos vivendo ao longo das últimas semanas: as frentes frias.
O Mar de Bellingshausen, a Oeste da Península Antártica, é uma região de interesse fundamental para o Brasil na previsão meteorológica. Quando as frentes originárias de Bellingshausen (explorador russo que observou pela primeira vez terras do continente) entram pelas serras gaúchas e acabam barradas pelo enorme paredão dos Andes, no Oeste, sobem até a Amazônia, onde as populações indígenas fazem fogo sob suas redes para amenizar o frio.
O descaso com a Antártida, na primeira de nossas expedições na grande periferia desse continente, em 1882, de alguma forma fez com que o Brasil não mandasse equipes científicas para participar, entre 1967-68, do Ano Geofísico Internacional que, nesse período concentrou-se em investigar o continente.
Naquele momento, as atenções estavam voltadas para a Marcha para o Oeste, a ocupação do Brasil Central.
Antônio Luís von Hoonholtz, o barão de Teffé, coincidência ou não, batizou o primeiro navio polar brasileiro, o Thala Dan (Navio Fantasma), comprado apressadamente na Dinamarca no início dos anos 1980 para justificar a participação brasileira nas discussões envolvendo a reabertura do Tratado Antártico, em 1991.
Quanto à febre amarela, a ‘Revolta da Vacina’, no Rio de Janeiro, que este ano completa um século, é uma outra evidência de como interesses políticos manipulados com generosas doses de maquiavelismo podem afetar a sociedade. Oswaldo Cruz, como poucos, certamente compreendeu profundamente o significado disso.
Landell de Moura
A negligência da imprensa, o descaso do Estado e uma boa dose de ignorância social contribuíram para a ocorrência de um outro episódio lamentável na história da ciência no Brasil – e praticamente desconhecido.
Os acontecimentos envolvem o padre Roberto Landell de Moura (1861-1928) que desenvolveu o telégrafo, o telefone sem fio e o transmissor de ondas de rádio.
Landell de Moura foi o nosso Guglielmo Marconi. Na verdade, ele fez transmissões de rádio, entre a avenida Paulista e o Alto de Santana, em São Paulo, entre 1893-94, logo em seguida ao fim da monarquia (1889) e o início da República Velha.
Pode ter sido por falta de patente em tempo hábil que o padre não conseguiu a primazia brasileira e internacional nas transmissões de telégrafo, telefone sem fio e rádio. E as patentes, na verdade, continuam um desafio no Brasil.
Um repórter interessado numa boa matéria nesta área deveria investigar como funciona o simples registro de uma marca no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), submetido à pressão de uma máfia de escritórios de advocacia para chantagear usuários desses serviços.
O padre Landell de Moura foi ordenado na Itália. Quando voltou ao Brasil, substituindo freqüentemente o coadjutor do capelão do Paço Imperial, no Rio, manteve longos diálogos científicos com o mesmo D. Pedro II. Depois disso, serviu em uma série de cidades do interior de São Paulo.
Estava em Campinas quando, numa tarde, ao retornar da visita a um doente, encontrou a porta da casa paroquial arrebentada e seu laboratório e instrumentos completamente destruídos.
Visto por uma população ignorante como ‘herege’, ‘impostor’, ‘feiticeiro perigoso’, ‘louco’, ‘bruxo’ e ‘padre renegado’ por seus experimentos envolvendo transmissões de rádio dois dias antes em São Paulo, Landell de Moura, gaúcho de Porto Alegre, pagou com sofrimento, isolamento e indiferença sua posição de absoluto vanguardismo científico.
Em junho de 1900, por carta, Landell de Moura doou seus inventos ao governo britânico, como registrou em pesquisa para doutorado na USP, em 1999, o historiador da ciência Francisco Assis de Queiroz.
A edição de 12 de outubro de 1902 do jornal americano New York Herald traz na primeira página uma foto de Landell de Moura apresentando-o como o inventor do telefone sem fio. Nos Estados Unidos, ele obteve as patentes do transmissor de onda (em 11 de outubro de 1904) e do telefone e telégrafo sem fio (em 22 de novembro do mesmo ano).
Em 1903, ao retornar ao Brasil após uma estadia de três anos nos Estados Unidos, ainda teve energia para enviar uma carta ao presidente da República, Rodrigues Alves. Solicitava dois navios da esquadra de guerra para demonstrar seus inventos que revolucionariam a comunicação (até mesmo para comunicação interplanetária, acertadamente sugeriu).
O assistente do presidente, no entanto, preferiu interpretá-lo como um ‘maluco’ e o pedido foi negado. Na Itália, quando fez um pedido semelhante, Marconi teve toda a esquadra à disposição.
Como se vê, por trás da passagem de Vênus pelo disco do Sol, fenômeno que voltará a ocorrer em 2012, há muita história da ciência e jornalismo.
A maior parte, quase desconhecida.