Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Chega de jogo de cena

A profissão médica envolve características próprias, assim como todas as demais atividades têm seus particulares. Em comum com muitas profissões ditas ‘liberais’, o médico é inscrito e fiscalizado pelo Conselho Regional de Medicina (CRM) de seu estado, e esses se reúnem na instância superior, que é o Conselho Federal de Medicina; há a chamada área associativa, representada estadualmente por uma regional da Associação Médica Brasileira, em nosso caso, a Associação Paulista de Medicina, que também congrega as sociedades brasileira e estadual, respectivamente, de cada especialidade médica. Existem ainda os sindicatos médicos, que agora estão reunidos nacionalmente pelo mesmo teto da Confederação Nacional de Médicos.

Todas essas entidades têm suas publicações oficiais. Comparemos com os advogados: a OAB é não apenas representante da categoria, como até da própria sociedade, tendo sua posição respeitada e levada adiante nos mais variados assuntos que interessem à população, com diretrizes políticas públicas e profissionais; faz o exame de Ordem, a defesa das prerrogativas do advogado e ainda conta com o Tribunal de Ética para julgar supostos maus profissionais, para resumir.

Com os médicos existe essa multiplicidade de entidades, que no momento estão defendendo o movimento ‘Unidade Médica’, a mesma diretriz e a ação simultânea e coordenada dessas entidades em relação aos interesses da categoria; e um projeto ainda embrionário de criação de uma Ordem dos Médicos do Brasil ou algo semelhante, reunindo todas as citadas instituições em uma apenas – as intenções existem e os debatem ocorrem, mas as coisas não avançam: ocorre uma perpetuação do egocentrismo e de interesses menores, sem mencionar as ‘panelas’.

Diferenças ocultas

As publicações do CFM, da AMB, do CRM e da APM são dogmáticas em determinados assuntos.

** Luta contra os planos de saúde – Parte-se do dado real de que os convênios pagam mal ao profissional médico. Exemplo: uma consulta particular está na média de R$ 100 a R$ 250; os convênios pagam por consulta em média R$ 20, e até R$ 15 ou R$ 20, o mesmo que um barbeiro cobra. Isso gera pedidos de exames em excesso, consultas rápidas e impessoais, perda da relação médico-paciente e das habilidades da anamnese (a história clínica do paciente) e do exame clínico. Mas a imprensa da categoria deixa de apontar a causa de tudo: os médicos que nos antecederam na década de 60 e início de 70, que começaram a criar as chamadas medicinas de grupo, a subcontratar e a diminuir o vencimento de colegas mais jovens, desrespeitar as leis trabalhistas – enfim, empresas com fins lucrativos cujos donos são médicos explorando médicos, agora ultrapassadas por instituições de grande porte, algumas até com capital externo. Nós, médicos, deixamos esse monstro crescer, e fazer a retórica apenas da ‘luta’ contra os planos é pura fachada, pois para haver eficácia nesse sistema há que se buscar parceiros fora da categoria – públicos e privados, investir numa imprensa que atraia, sim, a atenção do médico.

Tal imprensa serve então para alguma coisa? Claro que não.

** Luta contra a abertura de novos cursos de Medicina – É notório que temos um número muito grande de novas escolas, com interesses mercantis puros, processo iniciado nos anos 1970, com novo boom desde meados dos anos 1990. [A abertura de novos cursos está suspensa desde julho de 2003, e em março foi prorrogada por mais 60 dias. Estão em andamento 821 processos de abertura de novos cursos]. O caminho correto? Desde a mudança da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1996, para se criar uma nova escola de Medicina há que se fazer um projeto pedagógico, avaliado pelo Conselho Nacional de Educação, que exige correções e ajustes. Esses passos tomam longo tempo, e depois o projeto vai ao Conselho Nacional de Saúde (com função apenas opinativa), que analisa se uma nova faculdade médica em dada região é necessária. O processo volta ao Conselho Nacional de Educação, para o parecer final. A última instância é o ministro da Educação, que geralmente aprova a abertura do curso. Liminares na Justiça são negadas aos montes, as concedidas são cassadas pela instância superior logo depois: por quê? A imprensa médica então divulga o ‘vigor’ da ‘luta contra as novas escolas’. Mas é outro factóide: atuar no fim do processo sabidamente é ineficaz, então fica-se no discurso vazio. Por que ninguém cria canais com o Conselho Nacional de Educação, para saber quando uma instituição começa o processo de abertura de um novo curso? Por que não se cria uma auditoria com selo de qualidade do CRM para os cursos médicos? Por que não se consegue fechar um curso ruim?

Porque isso faz perder eleitores… E o jornalismo da corporação apenas doura a pílula, quando todos os envolvidos sabem que é um jogo de cena, piorado pelo fato de que muitos conselheiros e mesmo ex-presidentes de CRM são professores dessas mesmas escolas criticadas. Evidentemente, a preocupação com a qualificação de um aluno formado por uma escola nova existe, mas o olhar maior é dirigido ao já saturado mercado de trabalho. Falando com todas as letras, o que se propõe é a manutenção do status quo, que na prática seria existirem apenas umas 10 faculdades no Brasil [hoje são 119], conservadoras e com interesses próprios. O inverso da situação atual: formaríamos cada vez menos médicos no país…

** Luta contra o sucateamento da rede pública e pela implantação do SUS – Ora, também é fato que os recursos, mesmo com um orçamento que privilegie o Ministério da Saúde, não são suficientes para o correto atendimento das necessidades em saúde. Mas basta denunciar? Inúmeras outras áreas também querem sua fatia do cobertor curto da Viúva, como diria Elio Gaspari. Não há saída além de ficar reclamando de cara feia ou publicando fotos das reuniões de associados com autoridades para ‘resolver’ o problema? Claro que sim – há vários sistemas de saúde no mundo dando certo em nações equivalentes à nossa, pois o SUS é excelente no papel. Mais uma vez o jornalismo de classe reproduz o discurso e as ações vazias, em vez de apontar a solução das questões.

** Unidade das entidades médicas – Isso é batido e repetido em todas as publicações, e o que se quer é fazer passar a idéia de que todos estão agindo em coerência e em uníssono pelos mesmos objetivos, até eventualmente criando-se a tal Ordem dos Médicos. Na realidade isso é só jogo de cena: uma falsidade disseminada pelas publicações médicas. As entidades têm suas diferenças políticas, às vezes graves, ocultadas da categoria nas publicações. No fim, o que se quer é a perpetuação das mesmas pessoas nas entidades.

Pela atenção da sociedade

Não se está questionando o jornalismo em si praticado pelos profissionais que trabalham nas publicações das entidades, e sim as políticas equivocadas, pois as publicações, assim como as assessorias de imprensa, jogam no time do patrão, como também a grande imprensa.

Cabe à sociedade, por instrumentos como o Observatório da Imprensa, apontar tais equívocos e mazelas e deixando o rei nu. Pela lógica, o jornalismo das entidades médicas acaba por refletir seus erros, mas não há espaço para contestação. Tento então cumprir a tarefa de desdourar a pílula aqui no OI, quem sabe, iniciando um processo para que mais e mais colegas e a própria sociedade comecem a cobrar. A função do médico é por demais importante para que alguém que sabe alguma coisa de como funcionam esses mecanismos por dentro se cale.

Que os departamentos de imprensa e comunicação das entidades e as publicações, portanto, passem a questionar os dirigentes, que atraiam a atenção da sociedade, da grande imprensa e do Ministério Público para a correção dos rumos. Enfim, que deixemos de fazer política de baixo nível, principalmente de resolutividade, para melhorar o futuro de um dos pilares básicos da civilização, que é a saúde e a informação em saúde.

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Médico, mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo, ex-conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo