O caso Vioxx, medicamento produzido pela Merck & Co (no Brasil Merck Sharp & Dohme), que o retirou do mercado mundial na quinta-feira (1º/10) é uma evidência lastimável do nível a que chegamos em termos de jornalismo submisso, alienado e medroso, com conseqüências diretas na vida de cada um de nós.
A produção de drogas para tratamento de saúde em todo o mundo é uma atividade alucinante, mais voltada para a maximização dos lucros que à preocupação com o bem-estar e à saúde pública.
Claro que muita gente pode discordar desta consideração que, à primeira vista, parece irresponsável. Aos que pensam assim talvez seja interessante retomar um caso de 2001, quando o conglomerado internacional da indústria farmacêutica levou a África do Sul às barras dos tribunais pela iniciativa desse país em quebrar patentes para enfrentar a epidemia de Aids que assola como um enorme incêndio o continente africano.
O argumento das multinacionais farmacêuticas foi de ordem estritamente econômica, justificativa inaceitável no cenário africano, continente que abriga metade dos soropositivos de todo o mundo. A ameaça dos tribunais só foi aliviada por uma reação da opinião pública internacional, especialmente nos países desenvolvidos.
Nos países subdesenvolvidos, a opinião pública não conta. Os serviços de proteção ao consumidor não existem ou funcionam precariamente. A imprensa é inexpressiva ou negligente e os problemas numerosos o suficiente para que cada um não disponha de tempo para encaminhar soluções possíveis junto a uma Justiça burocrática e, por isso mesmo, inoperante.
‘Evidências irrefutáveis’
Os países subdesenvolvidos, historicamente, têm sido um laboratório de testes para medicamentos, antes de serem postos no mercado dos países ricos.
No caso do Vioxx, consumidores dos países ricos, o ‘primeiro mundo’, como está gravado no imaginário do ‘terceiro mundo’ (bloco que não tem mais razão de ser devido à implosão da ala socialista), também foram, ao menos presumivelmente, afetados.
O Vioxx, líder na área de antiinflamatórios e analgésicos, devido a efeitos que vão de certa eficiência técnica a uma poderosa campanha de marketing, está no mercado de 80 países há cinco anos e só no ano passado faturou 2,5 bilhões de dólares. No Brasil, a Merck Sharp & Dome teve receita de 30 milhões de dólares em 2003 com o medicamento, que é líder de vendas na área e um dos produtos que dão maior lucro às farmácias.
A decisão de retirar o Vioxx do mercado se deveu à comprovação de que, ao final de um período em torno de 18 meses de uso, o medicamento estimula ataques cardíacos e derrames. E é aqui que está caracterizado o despreparo dos jornais brasileiros (ao menos O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e a revista Veja), que trataram do assunto nos últimos dias.
A Folha, com sua estridência inconseqüente, cobriu o assunto em duas páginas na edição de sexta-feira (1º/10). Pela leitura desse material fica-se com a impressão de que a Merck & Co abriu mão, voluntariamente, de seus enormes lucros para proteger a saúde pública internacional. Essa hipotética possibilidade renderia uma dissertação de mestrado na área de jornalismo ou de saúde pública, comparando uma possível (mas improvável) diferença de postura ética entre a indústria farmacêutica e a tabagista, ou mesmo a armamentista.
A indústria do cigarro dissimulou durante anos, com os truques mais sujos, os efeitos nefastos de seu produto, e a indústria de armas fala eufemisticamente de sua produção como ‘sistemas de defesa’, e nunca de ataque e destruição de vidas.
Na verdade, a questão toda está respondida num texto de pé de página, publicada pelo Estado na edição do sábado (2/10), reproduzida do New York Times e assinada por Barry Meier.
O que Meier conta é que ‘durante anos aumentaram as evidências de que o antinflamatório Vioxx poderia aumentar o risco de ataque cardíaco. Durante anos, também, a fabricante Merck contestou essas revelações’.
Na quinta-feira da semana anterior, escreve Meier, ‘as defesas da Merck começaram a desmoronar, com a chegada de evidências irrefutáveis de um dos estudos da própria empresa de que o Vioxx dobrava as chances de os pacientes terem um ataque cardíaco por uso prolongado do remédio. Anteontem (quinta-feira, 30/9) a pressão culminou com a retirada do mercado mundial’.
Ambiente de medo
No parágrafo seguinte, Meier escreve que ‘de várias maneiras, a curta, mas lucrativa história do Vioxx deve confirmar o triunfo do marketing sobre a ciência’ – e, poderíamos acrescentar, sobre a saúde pública e o bem-estar social.
O repórter do NYT registra ainda que ‘na quinta-feira, alguns pesquisadores que estudaram o remédio longamente disseram que estavam surpresos. Não que o Vioxx estivesse sendo retirado do mercado, mas que tenha demorado tanto tempo para que os riscos dele viessem à tona. ‘É um testemunho terrível do poder de marketing’, disse Jerry Avorn, diretor de divisão de pesquisas do Brighan & Women’s Hospital, em Boston’.
Ou seja, não ocorreu nada do que a Folha havia relatado nos dias anteriores, inclusive reproduzindo entrevistas com o presidente da empresa no Brasil, José Tadeu Alves. Na edição distribuída em duas páginas na sexta-feira (1º/10), a Folha traz numa retranca o título ‘Risco foi detectado em estudo da própria empresa’, induzindo o leitor a pensar que a Merck tratou do caso com uma responsabilidade que o texto de Barry Meier, no New York Times, mostra que não ocorreu.
O Estado tem o mérito de ter publicado a matéria do New York Times, mas colocou-a no pé da página A 20 na edição do sábado (2/10). A manchete dessa página é: ‘Merck vai reembolsar quem tiver o Vioxx em casa’.
Quanto à Veja, a revista serviu na edição da semana um cozidão de uma página que não acrescentou nada do que já havia sido publicado, com a aparente preocupação formal de registrar o caso.
Por que essa inversão de valores? Por que a matéria de Meier saiu em pé de página no Estado, como se fosse politicamente incorreta? Até porque, apesar da manchete de página, o texto não diz quando, nem exatamente como, será feito o prometido reembolso.
A resposta a essas perguntas passa pelo ambiente de medo no interior das redações: da reação de editores a um enfoque verdadeiro e necessário, porque é o que corresponde à realidade dos fatos.
A Merck, na verdade, suspendeu o uso do medicamento porque se convenceu de que pode perder muito mais com processos movidos por consumidores prejudicados, parentes de mortos ou incapacitados por ataques cardíacos e derrames cerebrais.
‘Ameaça à liberdade’
Quantas são essas vítimas e onde elas estão?
Ninguém sabe ao certo. Mas os números divulgados pela própria Merck & Co de que 84 milhões de pessoas consumiram o Vioxx nos cinco anos em que o medicamento esteve no mercado sugere que o possível número de vítimas pode ser significativo.
Na edição de segunda-feira (4/10) do Estado de S.Paulo, numa notinha de menos de 20 linhas, em uma coluna e novamente em pé de página, o jornal informa que a americana Caroline Nevels está processando a Merck & Co pela morte de sua filha de 34 anos. Shelly South tomou o medicamento por dois anos e meio e teria morrido de ataque cardíaco, em novembro de 2002.
Com a repercussão do caso é provável que o número de processos cresça, como vem acontecendo com a indústria do tabaco, que amoleceu durante décadas a posição do Estado e da mídia pelos impostos que recolhia e os anúncios que publicava. Ao menos, neste caso, o Estado reconheceu que os custos com doenças, especialmente o câncer, superava o de impostos arrecadados e, por uma questão também de origem financeira, começou a restringir o espaço da indústria do fumo.
Já na sexta-feira (1º/10) tanto a Folha quanto o Estado haviam aberto espaço para repercussão do Vioxx junto aos consumidores do medicamento. Repercussão sempre foi antijornalismo, apesar da tradição arraigada na imprensa brasileira, evidência de falta de liberdade para o enfoque de assuntos menos convencionais que os buracos de rua – ou de estradas, que são cada vez mais numerosos e também ameaçam impunemente a vida e os bens das pessoas pela omissão do Estado e a mesma Justiça pomposa, burocrática e ineficiente.
Nessas repercussões junto à população as pessoas falam o que sabem – o que é muito pouco em termos técnicos/científicos, a questão mais importante em casos como estes. Mesmo especialistas podem não ter informações significativas, por falta de dados em termos de pesquisas específicas. Mas os editores negligentes e medrosos não levam isso em conta. Tocam a edição burocraticamente com a única preocupação de fecha-la até uma certa hora da noite. Caso contrário podem perder seus empregos.
A receita usual da redação dos jornais atualmente é um misto de medo, despreparo e alienação. O nível de ansiedade anda nas nuvens e os donos dessas publicações ainda falam em ‘ameaça à liberdade de imprensa’.
‘Valha-me Deus’, como dizia minha avó em momentos de desespero. Ou de puro ceticismo.