O pensamento humano é intrigante. Sempre queremos saber ou reconhecer o que somos e o que estamos fazendo aqui. Uma das maneiras de tentarmos compreender o mundo é agindo sobre ele ou pensando sobre ele, ou as duas coisas. Neste ínterim, desenvolvemos uma forma de pensar a natureza, o nosso pensamento, para poder avaliar a nossa percepção sobre a realidade: esse é justamente o raciocínio científico.
Esse raciocínio é uma metodologia epistemológica baseada em proposições lógicas: instrumentos lógicos que usamos mentalmente para reduzir o erro nas conclusões sobre a natureza. A metodologia científica já foi devidamente demonstrada como método de excelência para controle do processo criativo-intrumental do ser humano, que nos deu a possibilidade de uso de quase tudo que temos, inclusive o computador em que teclo neste instante.
Mas, apenas utilizamos as pontas desse conhecimento: suas aplicações práticas. Os cientistas produzem ciência, a maioria apenas a aplica. Mas o que é ciência? Parece que quando se fala sobre ciência há unanimidade quanto ao conceito, sem controvérsias.
Falsa premissa. Se estudarmos a própria ciência com os mesmos métodos científicos, encontraremos paradoxos irreconciliáveis. Quem estudar o conhecimento científico saberá que, intrinsecamente, as proposições científicas são provisórias, e devem ser, em si mesmas, refutáveis. Senão é dogma, e não ciência. Até mesmo a gravidade, a pressão sanguínea ou a malária devem ser compreendidas e medidas de maneiras diferentes em situações diferentes.
Claro que essas alterações também foram propostas pela ciência. Daí, chamo a atenção para outro foco. Diante de uma evidência, mesmo que aparentemente absurda, o cientista deveria procurar entender o fenômeno ou descartar a evidência que não seja adequada às premissas?
É mesmo preocupante o crescimento de concepções e conhecimentos sobre a vida tolos e preconceituosos; mas são de espantar só porque estamos no século 21? Por que, neste século, somos ou deveríamos ser melhores que do que no passado? Em todas as épocas houve tiranos, idiotas, intelectuais, artistas, professores, corruptos etc. As misérias de antes pesam tanto como as misérias de hoje. A ciência do século 19 propunha a cura de todos os males humanos e a felicidade geral para todos, o usufruto irrestrito do melhor da natureza humana a partir das máquinas que nos dariam mais tempo para o lazer e para nossas famílias.
O propósito da ciência não foi alcançado, ao contrário, foi ampliada a miséria, a destruição, a perplexidade, a contradição; a ponto de salvar alguém de morrer do coração e ao mesmo tempo matá-lo com um medicamento malfeito, falsificado ou vendido de forma escusa, problema este que a ciência não pode resolver.
Uma ‘alternativa’?
Os paradoxos da ciência são muitos. Alimentamos o Primeiro Mundo e o matamos de obesidade. Criamos redes mundiais de comunicação e comunicamos menos que antes. Confundimos o público com informações desconexas e tendenciosas, que dão a sensação à maioria de que alguém está mentindo. A educação de baixa qualidade limita a mente, porque nos diminui o critério para separar o joio do trigo; contudo, não é capaz de nos livrar das misérias humanas. O nazismo cresceu numa das nações mais educadas da Terra. A miséria, a arrogância, o preconceito, o medo, o vazio emocional – as causas da loucura coletiva. A sagacidade de alguns letrados e não-letrados levou à mais ignominiosa ação que o ser humano pôde produzir. A ciência foi usada em favor da guerra para melhor e mais eficientemente matar o ser humano.
A igreja católica, que se diz herdeira das mensagens de paz de Jesus, trucidou muitos, das formas mais cruéis possíveis: na fogueira, pela tortura, na ponta de uma espada, na forca, por afogamento ou pelas flechas, criando maneiras de morrer mais lentas do que as produzidas pelas guerras atuais, em que a bala e a bomba nos matam imediatamente.
Quem sabe a procura pelas formas de tratamento alternativo e de vida alternativa seja mesmo uma ‘alternativa’ de comportamento, em reação às carências que sentimos na alma, no raciocínio que não aceita a realidade imposta, seja pela educação, seja pela cultura, seja história oficial, entre outras? Que não aceitam por exemplo, que a medicina seja tão avançada, mas permita que pessoas morram numa fila, sem atendimento, porque não existe máquina de ressonância magnética, ou ela está quebrada porque a prefeitura não tem verbas para mandar consertá-la.
Falta de paralelismo
A mídia tem uma enorme importância na divulgação do conhecimento científico, e neste momento concordo com o Sr. Paulo Bandarra, autor do texto ‘A nova idade das trevas’ [ver remissão abaixo]; porém, o conhecimento matemático não é primordial para se entender ciência. Ela tem métodos, pressupostos, definições, conclusões, como qualquer outra matéria. Falta talvez ao jornalista, em sua formação, a iniciativa de procurar o conhecimento. Formar-se é isto. Se quiser escrever sobre ciência, aprenda sobre ela, estude filosofia da ciência. Não precisa tornar-se um cientista, basta saber de que ela é feita, e como é feita, para saber como fazer as perguntas certas aos cientistas quando forem entrevistá-los.
A Veja da semana passada, por exemplo, abordou os tratamentos psiquiátricos em que trabalham médicos-psiquiatras e psicólogos, mostrando que os resultados são mais efetivos quando os profissionais atuam em conjunto. A capa tem como título ‘A medicina da alma’, quando deveria dizer corpo, pois para o biologista, ‘alma’ ou ‘mente’ (esses conceitos têm diferença) não passa de subproduto, como bílis, hormônios ou fezes. A reportagem não comparou os índices de sucesso com outros métodos existentes. Ignorou (por não perceber, ou por ignorância, mesmo), que a especialidade dos psicólogos tem base biológica, tal qual a dos médicos. Por que, então, o título não foi O tratamento da alma? Por que só o médico foi lembrado, já que toda a matéria falava do tratamento de dois tipos de profissionais?
Não critico o sucesso do trabalho (para o paciente, tanto faz de onde vem, contanto que lhe tire do sofrimento), mas a falta de paralelismo, de comparações, para que nosso raciocínio possa fazer a melhor escolha, resultando em verdadeira informação.
Instrumentos de opressão
Alguns periódicos científicos preferiram se transformar em almanaques, como um videoclipe gráfico, talvez para evitar deslizes em matérias científicas. Certas revistas, como a Super(des)interessante, tinha uma coluna inteira dedicada aos ‘falha nossa’.
Dados em ciência são coisa muito séria. Necessitam de interpretação, devem ser colhidos com cuidado, como uma matéria jornalística deveria ser. A diferença é que precisam ser testados. Não é como um erro gráfico ou de concordância. Um sinal negativo em estatística pode significar o oposto, outra coisa, assim como uma vírgula mal colocada. Psiquiatra, psicólogo, psicanalista são profissões diferentes. Alguém que não seja da área se atreve a descrevê-los? Ou os jornalistas aprendem sobre ciência ou os cientistas aprendam a fazer jornalismo para melhor informar.
O pensamento científico é admirável como construção do pensamento humano, mas não é a única. E, querendo ou não, devemos aprender a conviver com as diferenças, pois não há outra saída. É como aquele paciente com quem nos revoltamos porque se recusa a seguir nossas prescrições, e vem a morrer.
A ciência e o método científico são, sem dúvida, o que temos de mais caro, e devem ser estudados e preservados; mas quando usados com arrogância e desmembrados de nossa própria humanidade, de nossos sentimentos, podem tornar-se meramente instrumentos de opressão.
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Psicólogo