Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Como fazem falta os suplementos de ciência

Se os jornais brasileiros tivessem suplementos semanais de ciência, a qualidade das edições certamente estaria muito melhor. Claro que esses suplementos devem ter bom conteúdo para se justificarem, mas essa perspectiva é altamente promissora, por muitas e diferentes razões.

A boa divulgação de ciência não se restringe a incidentes político-econômicos e, de modo geral, tem maior imunidade em relação a interpretações controvertidas que afetam praticamente todas as outras áreas da informação. O método científico – que não é infalível nem refratário ao erro – permeia de muitas maneiras a produção e a divulgação científica e esta é uma das razões da maior imunidade relativa do jornalismo científico.

O melhor benefício que os suplementos de ciência podem oferecer aos seus leitores é a possibilidade de inteligibilidade possível sobre o funcionamento da máquina do mundo em termos de abordagens sistêmicas, de uma visão coerente e de conjunto dos temas tratados.

Em jornalismo científico é possível oferecer aos leitores boas notícias, coisa cada vez mais rara nas edições diárias. Isso não significa, evidentemente, praticar um jornalismo róseo. Significa abordar questões por diferentes ângulos, acessar sua natureza profunda e demonstrar que cada uma delas abriga diferentes soluções possíveis.

Ao introduzir questões de cosmologia, origem da vida e natureza da consciência no cotidiano de seus leitores, o jornalismo científico ajuda a ampliar a percepção de realidade, na qual as dimensões dos problemas podem ser rearticuladas, permitindo que soluções criativas e originais venham à tona para a satisfação de impasses aparentemente sem solução nos mais diferentes contextos.

Explicação satisfatória

Ciência não é luxo nem vaidade. É necessidade.

Os jornais brasileiros abrigam suplementos femininos, sociais, de turismo, agrícola e de informática, entre outros. Não têm um suplemento de ciência, embora os editorais e mesmo o noticiário convencional insistam praticamente o tempo todo que vivemos numa sociedade de conhecimento.

A justificativa para a ausência de um suplemento de ciência é que este tipo de publicação não atrai publicidade, o que pode ser apenas uma questão de círculo vicioso. Uma questão como a da cobra que engole a cauda, do cachorro que corre atrás do rabo e do comercial de um biscoito que é fresquinho porque vende muito e vende muito porque está sempre fresquinho.

Sensibilizar a sociedade para as perspectivas da ciência – o compromisso do jornalismo científico – é um desafio que não se restringe aos leitores. Deve chegar ao anunciante, às empresas, a todas as instâncias da sociedade, e isso deve ser compreendido claramente para ser levado à prática.

Se o conteúdo do noticiário científico traz prestígio, pressuposto normalmente aceito, por que não teria condições de atrair anunciantes?

A resposta talvez esteja marcada por uma história de mentalidades, abordagem indispensável para a compreensão de qualquer assunto, relevante ou não, da história nacional. Do ciclo do açúcar – cuja tecnologia superada rapidamente nas Antilhas desbancou o Brasil da posição de maior produtor mundial – ao da mineração e da borracha, para citar alguns exemplos de promessas econômicas efêmeras.

O ciclo da mineração, especialmente em Minas Gerais, marcou profundamente a história desse estado. E ainda hoje repercute sem que se busquem os fundamentos da questão, atitude indispensável para a devida compreensão de sua dimensão e escolha das soluções devidas.

A alma de Minas ficou profundamente marcada pelo ouro e os diamantes – e para exemplificar esse ponto de vista certamente vale a pena considerar ao menos dois exemplos.

Num restaurante típico mineiro freqüentemente se utilizam pratos de ágata, uma variedade de sílica que na natureza costuma ser encontrada em zonas concêntricas de colorações diversas. Acompanhando os tais pratos de ágata, normalmente estão as canecas de alumínio, material adequado para o consumo de cerveja gelada.

Por que se utiliza pratos de ágata em Minas? A resposta freqüente é que isso faz parte da tradição, dos costumes, dos hábitos. Nenhuma explicação para a origem disso tudo.

Outra referência freqüente é a de que os mineiros são dissimulados. E por que os mineiros são dissimulados, se é verdade que são assim? São dissimulados porque são mineiros e se são mineiros são dissimulados, é uma resposta esperada pelo paradoxo dos biscoitos fresquinhos. Talvez as coisas todas comecem a ganhar inteligibilidade se for considerado que Minas Gerais, como seu nome sonoramente denuncia, é um estado que teve sustentação histórica na mineração, na lavra do ouro, diamantes e outras pedras preciosas. Numa região assentada no garimpo, não seria de se esperar o uso de louça fina nem de copos de cristais. Em lugar disso, a preferência seria para utensílios metálicos, os tais pratos de ágata e as canecas de alumínio, resistentes aos caminhos difíceis e ao nomadismo dos que buscam a sorte nas dobras das montanhas, os vales de aluvião.

Como hipótese de trabalho, numa abordagem metódica, o garimpo explica satisfatoriamente o fato de os restaurantes em Minas utilizarem freqüentemente pratos de ágata e canecas de alumínio, em lugar da louça frágil ao deslocamento constante.

Sem as devidas explicações

E quanto à virtual dissimulação mineira?

Como John Houston mostrou em seu belo Tesouro de Sierra Madre, um garimpeiro não pode nem deve trombetear uma descoberta promissora: uma pepita generosa, um diamante capaz de perturbar os sentidos. Um garimpeiro deve ser dissimulado quanto às suas descobertas. E em Minas, não só a atividade garimpeira, mas a geografia acidentada, as montanhas concorrem para entrelaçar história e geografia num contínuo indissociável que, como um espelho, reflete o ambiente.

E se Minas Gerais é hoje o estado que mais exporta mão-de-obra sem perspectiva para o exterior, barrada freqüentemente ao sul do Rio Grande, a questão é de natureza histórica e deve ser compreendida nesse contexto para que tenha solução possível.

Coisa parecida poderia ser dita a respeito de um outro ciclo econômico do Brasil, envolvendo a borracha. A lenda diz que um ‘traidor’ inglês, Henry Wickham, que havia se estabelecido com seus pais no Vale do Tapajós, por volta de 1860, roubou sementes e mudas e com isso arruinou o Brasil, ao viabilizar o cultivo da borracha nos domínios ingleses do Oriente.

Na verdade, Wickham agiu dentro da lei. Mais especificamente de acordo com o artigo 643 do Regulamento Alfandegário que, em 1876, quando ele transportou as sementes a bordo de um vapor, previa esse tipo de retirada. Esse artigo definia que pesquisadores científicos comissionados por governos e academias estrangeiras, ou ainda acreditados por agentes diplomáticos e consulares, estariam desembaraçados com uma simples declaração jurada do naturalista responsável e o pagamento devido seria feito por um valor que lhe fosse circunstancialmente atribuído.

Na verdade, a elite política nacional nem por um momento considerou a possibilidade de que a Havea brasiliensis, natural da Amazônia, pudesse se reproduzir no exterior e deixar lá toda a riqueza do látex. Foi um equívoco que custou caro, mas nem por isso teve a inteligibilidade possível. Em lugar de buscar as explicações devidas, preferimos a versão sumária do que hoje seria biopirataria.

Por todas essas razões faz imensa falta um suplemento científico nos jornais do Brasil.