Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Controle social para os transgênicos

A instabilidade do genoma, as proteínas inconstantes e as áreas de regulação e desativação de genes presentes no DNA lixo são três descobertas recentes que evidenciam que o paradigma sobre o qual a engenharia genética foi construída caiu por terra, o que exige mudança radical de postura no manejo da transgenia, indicando também a necessidade absoluta de controle social para os transgênicos, pois legar às gerações futuras um amanhã ecologicamente saudável, como testemunho da consciência de que a Terra – e tudo o que nela há – nos foi dada em usufruto é o mínimo que se espera como demonstração de consciência ecológica, mas também é uma necessidade para o exercício da ética da responsabilidade.

Considerando o debate em curso sobre os transgênicos, pelo menos no Brasil, constata-se que consciência ecológica é algo muito distante, ou esquecido, tanto pelas autoridades governamentais, como por uma parte da comunidade científica e da sociedade. Ou então, temos de nos conformar que nosso caso é mesmo de analfabetismo científico e biotecnológico. Assim sendo, as providências são outras. Mas falaremos sobre isso depois.

Comecemos pelo beabá: naturalmente, cada ser vivo possui uma receita única de como ele é feito. A transgenia consiste em alterar essa receita única – misturando nela um pedacinho de outro ser vivo – o que transforma esse ser, que era único, em algo que não existia na natureza. A bem da verdade, há uma certeza perigosa: a transgenia, a alteração da receita única, ainda é rudimentar e insegura, pois os ‘engenheiros genéticos’ ainda não dominam os processos de fabricar um transgênico.

Mas vejamos o conceito de transgenia em linguajar ‘científico’. As manipulações genéticas contemporâneas consistem em adição, subtração (destruição), substituição, mutagênese, desativação ou destruição de genes. Grande parte da sociedade brasileira nos últimos três anos já ouviu a palavra transgênico, pois o debate sobre organismos, alimentos, remédios transgênicos e outros produtos OGMs (Organismo Geneticamente Modificado) vem aumentando em todo o mundo. Organismos transgênicos são obtidos por uma biotecnologia denominada transgênese ou transgenia e resultam da adição de um gene estrangeiro (animal ou vegetal) ao genoma de um animal ou vegetal. Transgene é o gene adicional, que passa a integrar o genoma hospedeiro e o novo caráter dado por ele é transmitido à descendência. Ou seja, a transgenia é germinativa! O principal legado da engenharia genética é a quebra das fronteiras entre as espécies, concretizada na transferência de genes entre espécies diferentes (transgenia), o que possibilita que qualquer ser vivo adquira novas características de vegetais, de animais ou de humanos. Eis um poder incomensurável! (OLIVEIRA, Fátima. ‘Transgênicos: dilemas do biopoder’. Cadernos de Ética em Pesquisa. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP, Ano IV, Nº 8, agosto de 2001, p. 22 a 25).

É importante entender que OGM é qualquer ser vivo criado por manipulação genética do que se convencionou denominar de engenharia genética. Todo transgênico é um OGM, mas nem todo OGM é transgênico! A transgenia, técnica singular de engenharia genética que rompe as fronteiras entre as espécies, é germinativa: o novo padrão genético é hereditário. Um transgênico é para sempre: uma vez transgênico, transgênico até morrer!

Dados sobre danos ao meio ambiente e à saúde humana causados pelos transgênicos ainda são insuficientes para que a comunidade científica se renda às evidências, tanto pela novidade da técnica quanto pela quantidade irrisória de pesquisas, que estão apenas começando. Porém os indícios são expressivos: alergias, resistências aos antibióticos, poluição genética etc. Por outro lado, inexistem provas que eles sejam ‘do bem’.

Em outras palavras, ciência e cientistas ainda são ignorantes sobre muitas coisas novas do que dizem saber fazer. Mas, em ciência, ‘não-comprovado’ pode ser apenas ignorância. Então, hoje, na realidade, as posições a favor e contra os transgênicos podem revelar, igualmente, ignorância quando negam as incertezas que temos sobre tantas ‘coisas novas’.

Em suma, o ‘estado da arte’ dos transgênicos hoje é que em todos os vegetais transgênicos, indistintamente, o ético seria colocar um rotulozinho assim: ‘Não há provas de que não faz mal à saúde’. E não há Lei de Biossegurança capaz de provar o contrário diante da realidade que o conceito de gene com o qual a engenharia genética se estabeleceu e trabalhou, até recentemente, está superado; e da descoberta das proteínas inconstantes, que derruba o mito do ‘dogma central’ da genética, a idéia tida como certa, também até recentemente, de que os genes comandam tudo o que acontece nas células (DNA faz RNA e RNA faz proteína). Além da realidade de que, no que chamavam de DNA lixo, encontram-se áreas responsáveis pela regulação e pela desativação dos genes! Ponto. Voltaremos ao assunto.

Não há mais incertezas?

Salta aos olhos a incapacidade da mídia, em geral, de cumprir a sua função social. Frases com o teor ‘Embora nada (grifo nosso) indique que produtos façam mal à saúde, a Europa decidiu alertar o consumidor’ constituem um desserviço à cidadania, pois além de não dizerem a verdade representam típica peça publicitária, provavelmente paga pelo anunciante, que, como diz, adequadamente, o economista David Hathaway, causa ofuscamento ideológico.

A matéria com a frase citada contém pérolas como as que se seguem:

‘Os transgênicos foram cercados de tal suspeita que, apesar de não haver nenhuma (grifo nosso) prova de efeitos nocivos, a rotulagem pode ser a única saída para sua aprovação, dizem os especialistas. Com o tempo, acredita Borém, as pessoas aprenderão que os OGMs não oferecem risco e a rotulagem, eventualmente, poderá ser revista. ‘É uma ciência segura, desenvolvida ao longo de 20 anos de pesquisa’. Ele ressalta, porém, que a avaliação precisa ser feita caso a caso, à medida que novos produtos são desenvolvidos’. (‘Rotulagem é a solução inicial para a polêmica, em www.estado.com.br/editorias/
2003/08/03/ger009.html).

E aqui cabe um alerta/reflexão:

‘Gerar e publicar informação é um tipo de poder e um grande poder. As informações sobre biociências publicadas pela grande imprensa ‘fazem a cabeça’ e contribuem decisivamente para ‘formar a opinião’ da pessoa que a ela tem acesso. A cobertura jornalística de descobertas, acontecimentos e fatos científicos é uma atividade indispensável para a socialização e a democratização do conhecimento. Em geral é a única fonte de informação/saber a que as pessoas comuns têm acesso. Talvez seja também a única maneira pela qual a maioria das pessoas conhece em parte o que estão fazendo os ‘deuses da ciência’ e o que está acontecendo no mundo da ciência. Apesar da relevante função social a que se destina, o jornalismo científico, embora possua glamour, não é uma atividade simples e nem fácil, sobretudo considerando-se que o discurso científico é hermético, cifrado e dirigido, invariavelmente, à comunidade científica, o que fatalmente é um entrave inclusive para o bom desempenho de quem se dedica ao jornalismo científico’. (OLIVEIRA, Fátima. ‘Bioética e os temas de fronteira das biociências’, in Olhar sobre a mídia. (Mazza Edições/CCR, BH, MG, 2002)

Eis como a mídia, exemplarmente, pode exibir descompromisso com a ética da responsabilidade. Sem medo de errar, salvo as honrosas exceções de um(a) articulista ou outro(a), esporadicamente, empregar seus neurônios em análise mais apurada e crítica, o tratamento dispensado aos transgênicos, por exemplo, é que cientificamente não há mais incertezas e que se trata de uma prática biotecnológica estabelecida, aprovada e confiável, como se suas decorrências para o meio ambiente e para a saúde humana fossem conhecidas e que, já temos a certeza, não causará danos.

Mapeamento da irresponsabilidade

Sobre tal aspecto vale reproduzir parte de um interessante e lúcido comentário de Cláudio Cordovil, jornalista científico e mestre em Comunicação pela UFRJ, publicado pelo JC e-mail 2528, e, ao mesmo tempo, contrastar o comentário com uma matéria sobre o mesmo assunto, publicada pela Folha, de aparência politicamente correta, mas que não é garantia de resistir a uma análise mais apurada.

Eis o que está na Folha:

‘Um relatório divulgado nesta segunda-feira pela FAO (Food and Agriculture Organization), órgão das Nações Unidas para alimentos e agricultura, aprova a utilização de sementes geneticamente modificadas e diz que a biotecnologia só não traz mais benefícios porque ainda não se disseminou suficientemente nos países pobres.

Segundo o relatório, os OGMs (Organismos Geneticamente Modificados) já ajudaram economicamente pequenos fazendeiros, apresentaram ganhos ambientais, com a redução do uso de pesticidas e herbicidas tóxicos, e não demonstraram efeitos nocivos à saúde’. (O relatório está disponível no site www.fao.org) (‘Relatório da ONU aprova uso de transgênicos. Folha Online, 17/5/2004, no endereço www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/
ult306u11770.shtml)

Mas apreciemos o que disse Cordovil:

‘Lamentável a tendenciosidade da referida matéria, (…) publicada em `O Globo´. Quem se der ao trabalho de ler todo o relatório e informes por ela citados verá que a FAO (e não a ONU) já afirma no título de seu release (…) que os transgênicos `não são panacéia´. Por alguma razão, tal informação foi deliberadamente suprimida do texto da jornalista.

Além disso, o relatório aborda uma série de riscos potenciais, notadamente ambientais, em sua seção B, que sequer são mencionados na referida matéria. Quando são, só no pé da matéria. Seria como se eles de fato não importassem para os cidadãos.

Estudos sobre a comunicação de incerteza jornalística já revelaram que jornalistas tendem a suprimir as contingências (caveats) dos relatos científicos originais, na sua nobre missão de informar o público.

Assim, tudo que é ressalva a uma tecnologia, restrição ou limitação emitida por um cientista tende a ser suprimido no texto jornalístico de modo a que incertezas científicas fiquem bem ajustadas à apertada couraça do fato jornalístico. Afinal, incerteza cabe mal em três linhas de 15 toques (…) Os cientistas que trabalham com transgênicos, em sua grande maioria, só têm certezas, ao que parece, a julgar por sua participação no debate público’. (Cláudio Cordovil. JC e-mail 2528, Notícias, quinta-feira, 205/04, em www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=18681)

Massarini et alli, em ‘Quando a ciência vira notícia: mapeamento da genética nos jornais diários’, analisou matérias publicadas na Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, Extra e Jornal do Brasil, de junho de 2000 a maio de 2001, e é categórica em dizer que eles deram destaque aos aspectos positivos associados à genética moderna e suas aplicações, o que favorece distorções, minimiza os riscos e limitações da atividade científica. E as questões éticas, morais e de risco são tangenciadas e, mesmo assim, só apareceram em dois temas: clonagem humana e transgenia.

Qualidade conta pouco

Relembrando que o levantamento apresentado é restrito, o estudo ressalta que a fonte das matérias em geral é internacional e conclui:

A grande imprensa brasileira, pelo menos nos jornais examinados, enfatiza o determinismo genético e, em grande parte, ignora ou minimiza o papel de fatores externos (ambientais, sociais, culturais etc.) sobre o desenvolvimento individual. As possíveis implicações decorrentes dessa visão não são discutidas e raramente são levadas em conta.

A conclusões similares chegou Fátima Oliveira analisando dois monitoramentos diferentes da grande imprensa brasileira. O primeiro, realizado em 1996 durante os primeiros seis meses (‘Bioética&Teoria feminista e anti-racista: informações na grande imprensa/Direitos Reprodutivos e Genética Humana’); e, o segundo, no período de dezembro de 1996 a junho de 2000, publicado em Olhar sobre a Mídia (Mazza Edições/CCR, BH, MG, 2002). ‘Bioética&Teoria feminista e anti-racista: informações na grande imprensa/Direitos Reprodutivos e Genética Humana monitorou’ sete órgãos da grande imprensa brasileira (os jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e Gazeta Mercantil; e as revistas Veja e IstoÉ) sobre Direitos Reprodutivos e Genética Humana, cujas conclusões são as que se seguem:

‘Nesta pesquisa, tendo como objeto de análise a ética das publicações da grande imprensa brasileira, podemos afirmar, a partir de um ponto de vista feminista e anti-racista, que as questões éticas candentes sobre direitos reprodutivos e genética humana nestes órgãos se devem mais à omissão e ao ‘silêncio’ diante de questões cruciais, do que propriamente a infrações éticas gritantes ou perceptíveis de imediato na veiculação. Em ética, omissão e/ou silêncio equivalem a infração ética. Uma recomendação que se faz necessária para divulgadores de ciência é que ‘é preciso duvidar de tudo’. E duvidar de tudo não é o mesmo que querer sempre negar tudo contra todas as evidências, mas é compreender que a dúvida é o caminho mais instigante para se refletir sobre qualquer assunto.

Um problema ético central no material analisado, à exceção da maioria dos artigos de pessoas ‘de fora’ dos jornais e revistas, e em todas as Unidades Redacionais, é a falta de prudência ao anunciar as ‘novidades’ e a credulidade absoluta na ciência, a ponto de que, mesmo quando os jornais e revistas adotam uma postura crítica, ela não aparece enquanto tal, além do que querer parecer neutro/objetivo na divulgação científica, quando o mito da neutralidade da ciência e de cientistas está superado, é o que de pior poderia acontecer para a perspectiva feminista e anti-racista (…) urge que a grande imprensa brasileira encare a reflexão ética como uma necessidade cotidiana para que possa desempenhar com maior dignidade a função social a qual se destina – informação, diversão e instrução – e que neste percurso não pode desconsiderar e/ou excluir a perspectiva feminista e a anti-racista’. (OLIVEIRA, Fátima. Relatório final da pesquisa ‘Bioética&Teoria feminista e anti-racista: informações na grande imprensa/Direitos Reprodutivos e Genética Humana’. Instituição patrocinadora: Fundação Carlos Chagas, janeiro de 1997).

Em ‘Bioética e os temas de fronteira das biociências’, no Olhar sobre a Mídia, Fátima Oliveira afirma: ‘A mídia freqüentemente não se dá conta de que é emergencial que elaboremos normas éticas e de biossegurança que garantam proteção para a humanidade, ao mesmo tempo, e com a mesma veemência, em que nos cabe combater as posturas anticiência e antitecnologia.

Um problema de vulto que a imprensa precisa se preocupar e tentar resolver é como veicular notícias sobre hipóteses, pesquisas e resultados sem grandes distorções?’

Para a jornalista Laura Greenhalgh, ‘jornalista não corre atrás do fato. Ele sempre está correndo atrás do tempo inexoravelmente perdido. Nesse afã, muitos profissionais vêm abdicando daqueles minutos de ceticismo diante da notícia bruta, minutos preciosos de indagação e questionamento: afinal, a quem isso interessa? Que realidades espelha? Que percepções provoca? Lendo alguns dos capítulos deste livro, antes de escrever estas linhas, me deparo com uma espécie de reivindicação recorrente dos integrantes da Comissão de Cidadania e Reprodução aos profissionais da mídia – um olhar mais crítico sobre os fatos reportados. Faz sentido. Na era da informação digital, rápida, descartável, competitiva, em muitas oportunidades a imprensa tende a se escudar numa neutralidade omissa. Ou numa superficialidade conveniente.

Essa questão, a meu ver, resume o dilema do jornalismo contemporâneo: afinal, por onde vamos nivelar o nosso trabalho? Sites medem seu desempenho pelo volume de notícias que jogam na rede, diariamente. Não conta muito a qualidade que elas tenham. Os jornais impressos, antigamente chamados de ‘matutinos’, ficarão defasados se optarem por outro caminho? A resposta pode parecer fácil – mas não é’. (GREENHALGH, Laura. ‘Precursores ou retardatários?’ In Olhar sobre a Mídia. (Mazza Edições/CCR, BH, MG, 2002).

Hipóteses como verdades

Uma de minhas reflexões sobre o assunto conclui que, considerando que hoje nos deparamos com uma avalanche de acontecimentos passíveis de ‘virarem’ notícias/manchetes, tal realidade ‘coloca para os editores a inevitabilidade da seleção do que publicar, pois diante do grande número de fatos potencialmente mediatizáveis e, sendo o jornal um espaço hierarquizado referencial, a posição de um fato/notícia em um espaço com tais características indica a sua valoração (o lugar, o tamanho, se merece fotos ou não, o tamanho da manchete, a chamada de capa…) e a valoração de um fato/notícia pela mídia em geral faz parte das complexas relações de poder que ela possui no mundo contemporâneo’.

Todavia, ‘à semelhança da produção do conhecimento, a informação que chega às pessoas leigas sobre a atividade e a produção científica, além de filtros potentes dos interesses morais, econômicos, políticos e ideológicos da comunidade científica atravessa, também, filtros semelhantes das classes políticas dominantes, incluídos aí os interesses das empresas jornalísticas. Com certeza para jornalistas fazer divulgação científica é algo complicado…. exige decifrar o linguajar científico… às vezes enfrentar as empresas… tentar informar com ética.

Uma outra face da situação são as relações que a mídia estabelece com a comunidade científica, cuja cara mais pública é o assédio sobre os ‘deuses da ciência’ em busca de informar com exclusividade e em ‘em primeira mão’ (os célebres ‘furos jornalísticos’). O outro lado é o fascínio que ela exerce sobre grande parte de cientistas, em meio ao imbróglio da concorrência entre as empresas produtoras de ciência, grupos de pesquisadores, indústrias e governos’.

Então, ‘nas condições descritas fica difícil adotar uma postura crítica na avaliação do valor científico e da postura ética das publicações de ciência dirigidas a pessoas leigas e das rotuladas de científicas. Sequer sabemos com precisão o que mereceu publicação por mérito científico e valor social da pesquisa ou pela força dos interesses do marketing da indústria farmacêutica, dada a promiscuidade reinante em tais relações.

Assim sendo, o que aparece nas divulgações de ciência para pessoas leigas, no caso jornais e revistas comuns, a complexidade é maior, chegando-se inclusive à publicização de hipóteses como verdades incontestáveis, caso que ocorre muito no campo das biociências, em que pesquisas, até projetos de experimentações em seres humanos, são apresentados como terapêuticas estabelecidas e sem riscos. Separar o útil do fútil, do inútil e do danoso é uma tarefa incomensurável e às vezes impossível’. (‘Bioética e os temas de fronteira das biociências, in Olhar sobre a Mídia)

O erro de Stálin

Chama muito a atenção que estejam ausentes do debate na mídia sobre os transgênicos as discussões sobre as sementes como patrimônio da humanidade. É curioso e nos leva a indagar por que gregos e troianos da mídia, da política e da ciência omitem a ‘Campanha Sementes são Patrimônio da Humanidade a Serviço dos Povos’.

Por que não publicam praticamente nada sobre a recuperação das sementes crioulas? O que explica a Campanha por um Brasil Livre de Transgênicos ter sido deixada às traças pelos partidos de esquerda, em especial aqueles que integram o governo de coalizão nacional do presidente Lula? Por que essa gente mudou de lado? Por que esse comportamento à la Lyssenko? [Trofim Denissovitch Lyssenko (1898-1976), técnico agrícola, alçado por Stálin, por decreto (ou teria sido medida provisória?), à condição de biólogo, após comandar a luta política pela implantação da chamada genética soviética.]

Seriam seguidores de Lyssenko? Ou desconhecem a história da genética soviética? Pois precisam conhecê-la, já que adotam postura similar: desdenham das novas pesquisas e das descobertas em genética. Só está faltando dizerem que a comprovada instabilidade das proteínas, dos genes e dos genomas é uma coisa ‘reacionária, metafísica, idealista, estéril, antidialética, e constituem ‘uma farsa idealista’, as mesmas denominações usadas pelo governo soviético, sob o comando de Stálin, sobre genética mendeliana, na década de 1930.

E deu no que conhecemos: a genética mendeliana foi banida da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), que optou pela genética mintchuriana – idéias de Ivan Vladimirovitch Mitchurin (1855-1935), biólogo soviético, lamarckista convicto, que dizia: ‘A evolução resulta das ações do meio ambiente, que o organismo assimila e transmite à descendência’. Que, como a vida demonstrou, era um equívoco, ironicamente, de base idealista.

Mas a genética mendeliana se consolidou como a teoria da hereditariedade, elucidando e corroborando a Teoria da Evolução e explicando a materialidade da vida e, sob o concurso da física, originou a biologia molecular/genética molecular, donde surgiu a engenharia genética… Enquanto isso, só 12 anos após a descoberta da estrutura helicoidal do DNA (1953) a URRS reconheceu que a genética soviética fora um erro, científico e político. Lição: graças a Stálin, os EUA hoje mantêm a liderança mundial em engenharia genética e em outras biotecnologias.

Caravana dos ignorantes em genética?

Acompanhe o meu raciocínio. Tramita no Senado um projeto de lei sobre biossegurança, devidamente aprovado na Câmara dos Deputados, que na verdade é uma miscelânea biotecnológica, contém de transgênico a clonagem, além de exibir erros conceituais crassos sobre clonagem reprodutiva, clonagem terapêutica e terapia com células-tronco. E como alerta Ingrid Sarti: ‘O Projeto incorre em grave equívoco ao incluir em seu texto indevida regulamentação sobre a terapia celular com células-tronco que, antes de mais nada, não constitui matéria de biossegurança’. (‘Biossegurança não é a questão’. Ingrid Sarti. JC e-mail 2531, 25/504).

Tantos erros, numa nação analfabeta em genética, só podem gerar uma enorme confusão. E, como se não bastasse, o referido projeto de lei não versa, a rigor, sobre biossegurança, na medida em que em si, ao fim e ao cabo, resultará em peça proibitiva ou autorizativa de determinadas biotecnologias, sendo que algumas delas, pelo menos a transgenia, não dispõem ainda de elementos confiáveis para fundamentar algum documento que possa receber, rigorosamente, o nome de biossegurança.

O que se denomina de projeto de lei de biossegurança que está no Senado é deplorável enquanto proposta, apesar de que, no sentido de garantir o ‘menos pior’, há avaliações, de fontes respeitáveis, que afirmam: ‘A aprovação do projeto na Câmara foi uma vitória daqueles que defendem o princípio da precaução e advogam a realização de avaliações rigorosas de riscos dos produtos transgênicos para a saúde humana e o meio ambiente previamente à sua disseminação’. (‘Biossegurança não é a questão’. Ingrid Sarti. JC e-mail 2531, 25/5/04)

Todavia as possibilidades de o teor do projeto em discussão piorar são monumentais, em todos os aspectos. Há lobbies pesados, bancados pelas companhias de agrobiotecnologia, principalmente. Os lobbies, embora com rótulos distintos, são financiados mesmo é pelo dinheiro do agronegócio predador e sem responsabilidade ética. Então, como ‘farinhas do mesmo saco’, estão parlamentares, setores do governo e cientistas, inclusive fraudadores de assinaturas de suas ‘listas de solicitação de liberação dos transgênicos’ – como foi fartamente noticiado pela imprensa. Todos, com o firme propósito de desmoralizar ainda mais o vocábulo biossegurança, estão a exigir um ‘liberou geral’ para os transgênicos.

Uma mobilização de tal porte poderia, adequadamente, ser chamada de Caravana dos Ignorantes em Genética. Explico-me. O mínimo que se pode esperar de um(a) cientista depois da invenção da escrita é que seja alfabetizado(a). Ou seja, que saiba ler. Para entender, minimamente, as incertezas da ciência em relação aos transgênicos não se exige que alguém seja dotado(a) de uma inteligência rara, apenas que saiba ler e que entenda o lê. Não é pedir muito. Basta que não seja analfabeto(a) funcional. Isto é, que entenda o que lê.

Atestado de ignorância

Tenho lido muitos impropérios sob a grife ‘declaração de cientista tal’ ou ‘Manifesto dos cientistas de tal confraria’ que são verdadeiros libelos de ignorância científica. Pelo menos no que diz respeito aos transgênicos, há um problema de base: o analfabetismo e/ou a ignorância científica que se soma ao mercantilismo. Difícil separar um do outro. Talvez seja um genuíno caso de transgenia mesmo.

‘Embora não exista nenhum (grifo nosso) risco associado ao consumo de transgênicos, acredito que a rotulagem seja uma decisão estratégica no momento para o Brasil’, diz o especialista em biossegurança Aluízio Borém, da Universidade Federal de Viçosa.

‘Do ponto de vista de segurança alimentar, não há necessidade de rotular, pois não há nada (grifo nosso) para alertar o consumidor que possa fazer mal à saúde. No estágio atual, entretanto, não há como discutir isso’, concorda o farmacêutico e bioquímico Franco Lajolo, do Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental da Universidade de São Paulo’. (‘Rotulagem é a solução inicial para a polêmica’, no endereço www.estado.com.br/editorias/
2003/08/03/ger009.html)

Essa turma com tal DNA (analfabetismo/ignorância científica + mercantilismo), a despeito das evidências, continua dizendo que os transgênicos são inócuos. Por mais delicadeza que queiramos ter, é preciso dizer que não falam a verdade, além do que emitem atestado de ignorância científica e de irresponsabilidade ética.

Rainhas da Inglaterra

Caso se confirme o que anunciou o colunista Ricardo Boechat, a situação é lamentável. Vejamos:

‘Parceria. Um dos acordos fechados na Câmara, ontem, para garantir a aprovação do mínimo de R$ 260 uniu ao Planalto, pela primeira vez, a bancada ruralista. Em troca, o governo aceitou discutir mudanças na Lei de Biossegurança, para dar à CTNBio poder de licenciar a comercialização de produtos transgênicos. Os ambientalistas do PT vão urrar de tristeza’. (Coluna do Boechat. JB, 3/6/04, www.jb.com.br/jb/papel/colunas/boechat
/2004/06/02/jorcolboe20040602001.html)

É ilustrativo também o que falou Ingrid Sarti, no artigo ‘Biossegurança não é a questão’:

‘Os bastidores do Senado foram agitados no mês de maio pelo intenso movimento do lobby organizado do agronegócio e pelas consoantes manifestações de senadores contrárias à aprovação do PL.

Contrariando a lógica, não é exatamente sobre biossegurança o debate que se dá neste momento em torno do Projeto Nacional de Biossegurança, aprovado na Câmara há três meses, e agora transformado em obscuro objeto de disputa em tramitação no Senado (…) Portanto, é outro o x do problema. Não obstante a retirada das referências à terapia genética tornou-se argumento do qual se vale a oposição para obstruir a votação da matéria no Senado.

São, porém, os aspectos de natureza econômica embutidos na lei que, desde a etapa do debate na Câmara, fizeram do confronto de interesses uma disputa típica de um autêntico Fla x Flu. A polêmica reúne setores aliados do agronegócio e de pesquisadores da área da genética molecular que trabalham no desenvolvimento de organismos transgênicos contra os ambientalistas’. (‘Biossegurança não é a questão’. Ingrid Sarti. JC e-mail 2531, 25/5/04)

O frenesi do momento então, cujas raízes se encontram no Palácio do Planalto, conforme a mídia, é aprovar um projeto de lei que dê à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) poder autorizativo final sobre a pesquisa e a comercialização de organismos geneticamente modificados (OGMs). Essa comissão, como é de domínio público, é infestada de gente que vive às custas do agronegócio não-ético. Assim, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério da Saúde, e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais e Renováveis (Ibama), do Ministério do Meio Ambiente, se tornariam ‘rainhas da Inglaterra’. Tal desejo tem nome, chama-se incitar crimes contra a humanidade, se entendemos a poluição genética como o crime contra a humanidade que é.

Controle social e ético

Para o bem de minha sanidade mental, vou fazer de conta que tudo se restringe a analfabetismo científico mesmo, então… Estou convencida de que alfabetização maciça em transgênicos é uma necessidade emergencial no Brasil, a começar pelo alto escalão do governo, o parlamento, cientistas (sim, até eles, que se julgam letrados!), e, chegando ao mesmo tempo, ao povo. Somos uma nação de, comprovadamente, analfabetos, já que desconhecemos os rudimentos da genética, o que dirá das últimas descobertas…

Há que se superar tanta ignorância, pelo bem da nação. Caso contrário seremos uma nação, inteirinha, que, ao abrir um reles jornal, se comportará como se tivesse diante de si páginas e mais páginas de hieroglifos! Precisamos saber, pelo menos, o suficiente para interpretar o que está escrito numa notícia na área de genética.

Ou nos conformemos em ‘comprar gato por lebre’. O que falo exige ação emergencial, um empenho específico e especial do governo federal buscando mecanismos de participação popular de caráter consultivo e deliberativo, a exemplo das conferências de consenso, que têm sido realizadas em muitos países.

A situação é grave e o desdém e a ignorância de quem está no exercício do poder podem prejudicar o nosso futuro, além do que cresce cada vez mais em todo o mundo a consciência de que nem tudo o que se sabe fazer deve ser feito e que a comunidade científica tem o dever de prestar contas do que faz não apenas a seus pares, mas a todo o povo, que é quem paga as corridas da ciência, e que os governos não detêm a prerrogativa de decidir por todo o povo quando o que está em jogo é pertinente também ao futuro da humanidade.

Diz Edna Einsiedel:

‘Há uma longa história de participação pública em tornos de questões tecnológicas. Neste caso nos referimos à participação em termos muito amplos, de forma a incluir a votação em referendos, a avaliação da opinião pública por meio de enquetes e grupos de debate (focus groups), a representação do cidadão em comitês consultivos ou de planejamento e até a participação em atividades de protesto’. (Edna Einsiedel. ‘Vozes dos cidadãos: participação pública na área da biotecnologia’. Ciência&Meio ambiente. DNA 50 anos. Nº 26. Universidade Federal de Santa Maria, RS, 2003)

Edna Einsiedel acrescenta que nas duas últimas décadas é perceptível o uso de modelos deliberativos para a participação pública, a exemplo de júris de cidadãos, workshops para a construção de cenários ou votações deliberativas e as conferências de consenso, que concorrem para estimular e ampliar o debate público com vistas a influenciar a agenda, democratizar a gestão de conflitos, avaliar implementação de políticas e democratizar a elaboração de políticas públicas. São modelos que carecem de aprimoramento metodológico, mas são avaliados positivamente pois possibilitam, dentre outros, ampliar conhecimentos e saberes, socializar preocupações e buscar soluções concertadas.

Um ato de fé ou de interesse

Em 2004, os cientistas ingleses Ricardo Steinbrecher, Alisson Wilson e Jonathan Latham, realizaram extensa revisão bibliográfica e concluíram que as alterações imprevistas do genoma dos transgênicos são muito freqüentes, não só alterando a própria seqüência transgênica, mas também outros genes do organismo em que foram inseridos.

São dados reveladores de que o organismo transgênico possui alta instabilidade genética, fato que dificulta dados conclusivos das pesquisas, pois a instabilidade pode ser agente causal de diferentes resultados numa mesma planta, por exemplo, dependendo da época em que a pesquisa for realizada!

São dados que corroboram Marcelo Firpo de Souza Porto, em ‘Transgênicos, riscos e incertezas diante da ciência’ (JC e-mail, 7/1/04), quando afirma: ‘As argumentações sobre os impactos das novas tecnologias sobre a saúde e o meio ambiente deveriam explicitar o que se sabe do que não se sabe, ou seja, as incertezas em jogo’. Ao indagar ‘Por que o princípio da precaução deveria ser adotado para o caso dos transgênicos?, Porto disse:

‘A resposta está no reconhecimento de que uma ignorância epistemológica se encontra no coração do problema. Simplesmente não há modelo científico capaz de prever os efeitos de médio e longo prazo para a saúde dos ecossistemas e, conseqüentemente, para a saúde humana’.

Aprofundando a análise, Porto argumenta que, se não há modelos teóricos ou experimentos controláveis que reproduzam como a natureza reagirá às coisas novas, podemos dizer que ‘num certo sentido realmente não há riscos, o que há é a ignorância da ignorância’. Então, ‘a ironia é constatar que, enquanto os críticos dos transgênicos são acusados de dogmáticos e fundamentalistas, a afirmação de que não há riscos é basicamente um ato de fé. Ou então de interesse: nunca houve tanto dinheiro investido em biotecnologia’.

O DNA lixo não está ali à toa

Evelyn Fox Keller, em O século do gene (BH, Crisálida, 2002), afirma que os conhecimentos advindos do Projeto Genoma Humano explicitam que o gene atualmente é um conceito em apuros. E especula:

‘O que é um gene hoje? Quando ouvimos os modos pelos quais o termo hoje é usado pelos biólogos em atividade, descobrimos que o gene se tornou muitas coisas – não mais uma única entidade, mas uma palavra de grande plasticidade, definida somente pelo contexto experimental específico no qual é utilizada.’

Para Keller, o gene é mais uma teoria em fase de desmantelamento do que uma concretude, ou pelo menos não a concretude que supúnhamos, ‘um locus fixo e unitário de estrutura e função, como também um locus de agência causal’. Retornamos a uma antiga indagação: o que é mesmo um gene, se ele não é, e tudo indica que não é, uma unidade fixa de transmissão?

É certo que a função dos genes é produzir proteínas. Ou seja, os produtos gênicos são as proteínas! No início da década de 1990 estimava-se que os genes representavam apenas 10% da molécula de DNA. Era desconhecida a verdadeira função do restante (90%), mas acreditava-se que seria apenas um material de sustentação do DNA. Dez anos depois confirmou-se, e hoje é consensual, que apenas 5% da molécula de DNA contêm genes e o restante é o chamado DNA lixo.

No começo dos anos 1990 alguns pesquisadores estavam empenhados no estudo do DNA lixo, como o cientista brasileiro Darcy Fontoura de Almeida, do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele argumentava dizendo: ‘Aquele material não está ali à toa e deve ter alguma função e alguma organização’. Estava certo. Alguns estudos realizados em 2003 indicam que no DNA lixo encontram-se diminutas áreas responsáveis pela regulação e pela desativação dos genes!

Contaminação inevitável

Tais descobertas fazem parte de uma crônica anunciada, inclusive divulgada em vários artigos que escrevi em meados da década de 1990. Refiro-me a ‘Redefienindo las Ciencias de la Vida’, declaração assinada por 21 eminentes cientistas (geneticistas moleculares, microbiologistas, biólogos teóricos, biofísicos, ecólogos e cientistas agrícolas) participantes da Conferencia Internacional sobre a ‘Redefinición de las Ciencias Biológicas’, Penang, Malásia, de 7 a 10 de julho de 1994. A declaração discorre sobre os problemas científicos do paradigma da engenharia genética, os riscos, as questões de biossegurança e a urgência da necessidade de considerar uma suspensão para a introdução dos organismos geneticamente manipulados (OGMs) no meio ambiente; impactos sociais, econômicos e éticos das biotecnologias bioengenheiradas.Vejamos:

‘Muitos cientistas que trabalham na inter-relação entre genes, organismos e meio ambiente, em temas como a ecologia ou a avaliação dos riscos, questionam cada vez mais a validade científica de muitas das premissas básicas que compõem o paradigma da engenharia genética e demonstram cada vez mais preocupações com os efeitos potencialmente graves de suas aplicações (…) Fazer previsões é inerentemente problemático e requer especial cuidado antes de emitir conclusões. As previsões podem se frustrar porque os genomas de todas as populações de organismos não são estáveis, estão sujeitos a múltiplos processos desestabilizadores, de maneira que um gene transferido pode mutar; mudar de posição; recombinar-se dentro de um genoma e até transferir-se para outro organismo e até para outra espécie. (…) A crescente preocupação da opinião pública pela falta de esforços dos governos em regulamentar os perigos da engenharia genética está portanto bem fundamentada’ (…) (‘Redefienindo las Ciencias de la Vida’, declaração de cientistas elaborada na Conferencia Internacional sobre la ‘Redefinición de las Ciencias Biológicas’, Penang, Malásia, del 7 al 10 de julio de 1994. Revista del Sur, 1995; 5(43):2-13. Citado in OLIVEIRA, Fátima. ‘Uma visão feminista sobre os megaprojetos da genética humana’ (PGH e PDGH). Publicado na revista Bioética, Vol. 5, Nº 2, 1997, 263-271)

Recapitulando, o conceito de gene sobre o qual a engenharia genética alicerçou o seu paradigma está superado. Novas descobertas corroboram mais e mais que o gene hoje é um conceito realmente em apuros, a exemplo da descoberta das proteínas inconstantes, que derruba o mito do ‘dogma central’ da genética (DNA faz RNA e RNA faz proteína): o gene comanda TUDO o que acontece numa célula; e as proteínas podem ter suas identidades determinadas fora do núcleo celular! Ou seja, células humanas, a exemplo de seres unicelulares, produzem proteínas fora do núcleo. O que explica também por que nem sempre um transgênico produz exatamente ‘aquilo’ para o qual foi ‘fabricado’!

A realidade dá razão à afirmativa de que ‘Genoma estável é uma abstração’, compreensão que reproduzi em muitos escritos, que aprendi lendo Mae Wan Ho, em 1995, à época diretora do Bio-eletrodynamics Laboratory, do Departamento de Biologia da Open University, Reino Unido, que dizia:

‘O determinismo genético é a idéia que genes estáveis determinam os caracteres dos organismos de maneira simples, exceto no caso de mutações esporádicas e causais; que os genes são imunes às influências ambientais e passam intactos de uma geração para outra (…) Estabilidade da herança e reprodução estável de um organismo, não residem na estabilidade de seus genes, é bem mais distribuída em todo o sistema de desenvolvimento inerente ao meio ambiente ecológico. Em outras palavras, a vida é inerentemente e irredutivelmente holística’. ( HO, Mae Wan. ‘Ingeniería Genética: esperanza o trampa?’, Revista del Sur, 1995; 5(43):14-15. Citado in OLIVEIRA, Fátima. ‘Uma visão feminista sobre os megaprojetos da genética humana’ (PGH e PDGH). Publicado na revista Bioética, Vol. 5, Nº 2, 1997, 263-271.

O que se sabe hoje, e há provas irrefutáveis, é que ‘A contaminação dos cultivos não-transgênicos é inevitável, uma vez que no campo os cultivos se cruzam abertamente, emitem pólens, entram em contato com insetos, o vento etc. Sem dúvida, outra vez, são as vítimas quem têm de provar que há contaminação e bancam os gastos com os problemas que surgem’, afirma Silvia Ribeiro em ‘Vítimas e problemas’. Ela ainda acrescenta que na realidade as empresas de biotecnologia da área dos transgênicos não apenas não pesquisam, como se negam a prestar a informação necessária para agilizar pesquisas independentes. O que é uma crueldade.

As provas se avolumam

Estudos do Dr. Terje Traavick, norueguês, divulgados em 2004, demonstram resultados alarmantes: ‘Alergias em camponeses devido ao pólen do milho transgênico; e ocorrem recombinações de vírus contidos em vacinas transgênicas em células animais e humanas, gerando híbridos de vírus absolutamente imprevisíveis quanto aos seus efeitos’.

Um relatório do Conselho Nacional de Ciências dos EUA, divulgado em janeiro de 2004, afirma que, apesar do desenvolvimento de muitas técnicas visando impedir que os OGMs se disseminem na natureza, a maioria não demonstrou eficácia, inclusive a grande esperança depositada no bioconfinamento (métodos biológicos de contenção) não se concretizou com 100% de eficácia.

Diante do desconhecido e do inusitado, precisamos nos espelhar em experiências vitoriosas em outros países, como as Conferências de Consenso, que alçaram a participação popular à condição de exercitar o direito de escolha e de decisão, estabelecendo controle social e ético sobre as instâncias da ciência e da bioética.

Não dá para aceitar que, por um ato de fé, governo, parlamentares e alguns cientistas digam que as culturas vegetais transgênicas são inócuas. As provas de que não é bem assim se avolumam. Ignorância tem limite.

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Médica, presidenta da Regional Minas Gerais da Sociedade Brasileira de Bioética, secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde (www.redesaude.org.br), conselheira da Rede de Saúde das Mulheres Latino-Americanas e do Caribe (www.reddesalud.web.cl), autora de Engenharia genética: o sétimo dia da criação (Moderna, 1995); Bioética: uma face da cidadania (Moderna, 1997); Oficinas Mulher Negra e Saúde (Mazza Edições, 1998); Transgênicos: o direito de saber e a liberdade de escolher (Mazza Edições, 2001); O ‘estado da arte’ da Reprodução Humana Assistida em 2002 e Clonagem e manipulação genética humana: mitos, realidade, perspectivas e delírios (MJ/CNDM, 2002); e Saúde da população negra no Brasil em 2001 (OPAS-Brasil, 2002)