Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

coquetel trágico da desinformação

No dia 19 de novembro, o Ministério da Saúde lançou campanha para evitar que gestantes infectadas pelo HIV ou pela sífilis contaminem seus bebês – é a chamada transmissão vertical. Desde 1980, 8.843 casos de Aids em crianças foram notificados ao ministério. De sífilis congênita, de 1998 a 2003, registraram-se 21 mil casos – que são, porém, a ponta do iceberg da doença infecciosa mais transmitida aos fetos no Brasil.

O Programa Nacional de DST/Aids (Doenças sexualmente transmissíveis/Aids) estima a ocorrência de 15 mil casos anuais de sífilis congênita. Em até 40% destes, a conseqüência pode ser o óbito dos bebês, especialmente o aborto. Nos 60% sobreviventes, pode deixar-lhes seqüelas graves – como malformações ósseas, surdez, cegueira e retardo mental. Tragédias preveníveis se as 60 mil grávidas com sífilis estimadas por ano no Brasil forem cuidadas a tempo. O diagnóstico e o tratamento precoce da gestante são baratos – o custo total fica em 40 reais! – e muito eficazes na prevenção da sífilis congênita.

Dedo na ferida

A depender da colaboração da mídia, contudo, o lado bom dessa notícia vai demorar para virar fato. De 1º de janeiro de 2003 a 18 de novembro de 2004, a sífilis congênita foi praticamente ignorada pela grande imprensa.

A exceção foi O Globo, que, no período, tocou no assunto em cinco matérias ou notas. Época, O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo passaram por ele uma vez; Veja e IstoÉ, nenhuma em 22 meses. E o lançamento da nova campanha, que ainda está sendo veiculada, não mudou a cobertura até o momento em que este texto foi fechado (16h15 de 29/11/04). Desses veículos, somente o Estado de S. Paulo registrou o tema em uma nota.

‘Na Aids, a ajuda da mídia tem sido vital para informar e orientar a população brasileira. Mas isso não acontece quando o problema são as demais doenças sexualmente transmissíveis; há desinteresse em dar informações sobre elas e, assim, ampliar o conhecimento da população’, lamenta Pedro Chequer, diretor do PN-DST/Aids .

O médico e professor Gilberto Vieira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), avalia: ‘Os meios de comunicação, como qualquer empresa, visam ao lucro. E a sífilis congênita, por atingir mais a população pobre, não vende revista nem jornal. De mais a mais, seu diagnóstico e tratamento são baratos e a indústria farmacêutica não se interessa em promovê-los na mídia, como faz com a Aids’.

O infectologista Celso Ferreira Ramos Filho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), põe o dedo em outra ferida: ‘Hoje, sífilis não dá prestígio aos médicos, pois seu diagnóstico e tratamento são relativamente fáceis. Reduz-se, assim, o empenho dos colegas de buscarem a imprensa para alertar sobre o perigo da doença’.

Diagnósticos e tratamentos perdidos

Não à toa, muita gente acha que a sífilis acabou. Para agravar o quadro, pelo menos até a década de 1990, a sífilis congênita nunca foi encarada como sério problema de saúde pública. Afinal, a transmissão na gestação se deve a falhas nos serviços de saúde, principalmente na assistência ao pré-natal.

Às vezes, a gestante não tem acesso a esse acompanhamento. Outras, o médico não pede o teste para sífilis (chamado VDRL). Ou se solicita, o resultado demora e o tratamento não é realizado. Há ocasiões em que o resultado chega a tempo, mas o médico não trata ou trata de maneira inadequada.

Ocorre também de o pré-natal ser feito numa instituição e o parto, em outra – e elas não se comunicam, o que seria superado se o cartão da gestante fosse preenchido corretamente nos postos e unidades básicas de saúde. ‘Como o teste VDRL é obrigatório a toda gestante internada para parto pelo Sistema Único de Saúde (SUS), descobre-se aí que muitas passam pelo pré-natal sem o diagnóstico de sífilis’, observa o infectologista Eduardo Campos de Oliveira, assessor da Unidade de Diagnóstico, Assistência e Tratamento do PN-DST/Aids. Segundo ele, apenas 12% das gestantes usuárias do SUS fazem o teste VDRL na primeira consulta do pré-natal e o repetem no início do terceiro trimestre, como preconizam as normas do Ministério da Saúde.

Resultado dessa combinação trágica de desinformação, omissão, negligência e inoperância: milhares de diagnósticos e tratamentos de sífilis materna perdidos, e as crianças, as maiores vítimas.

De 2000 a 2003, 13.309 crianças foram internadas para tratamento de sífilis congênita, a um custo de 5,15 milhões de reais. De janeiro a setembro de 2004, já são 3.582 casos. ‘Que exista sífilis, vá lá; seu controle efetivo só será possível quando houver vacina’, frisa Celso Ramos. ‘Mas, haver sífilis congênita é escandaloso.’

O diretor do PN-DST/Aids concorda. Daí a sua decisão de atrelar à campanha de prevenção da transmissão vertical de HIV a de sífilis congênita, mesmo sabendo que por conta da segunda doença o impacto poderia ser menor na mídia. ‘Não dá mais para deixar a sífilis embaixo do tapete, até porque a sua presença aumenta duas a cinco vezes o risco de contaminação pelo HIV’, afirma Pedro Chequer. ‘Agora, sífilis está na nossa agenda permanente; mulheres grávidas, gestores e profissionais de saúde são o alvo. A meta é eliminar a sífilis congênita até 2007.’

Os riscos para adultos e bebês

Também chamada de lues, mula, mal-de-franga, mal-de-são-jó, mal-de-coito, mal-de-são-semento, a sífilis é causada pela bactéria Treponema pallidum, que pode ser adquirida durante sexo vaginal, anal ou oral com parceiro infectado. A bactéria penetra no corpo por meio do contato direto com feridinhas nessas mucosas, donde chega aos gânglios próximos e se espalha pelo organismo via corrente sangüínea. Os sinais variam de acordo com a fase da doença:

Primária – Na região em que a bactéria penetrou, surge pequena lesão avermelhada, indolor, com bordas endurecidas – é o cancro duro. Aparece, em média, 21dias após a contaminação e dura um mês.

Secundária – Aí, a bactéria já está circulando no organismo. Quatro a oito semanas após o desaparecimento do cancro duro, a infecção se manifesta no corpo inteiro através de manchas avermelhadas (lembram urticária mas não coçam), febre, aumento de gânglios, queda de cabelos, supercílios, barba e bigode. Dura cerca de um mês, seguindo-se um período sem sintomas por mais de um ano.

Terciária – Manifesta-se de 2 a 20 anos após o início da doença. Nessa fase, pode se instalar em ossos, nervos, cérebro, olhos, coração, fígado, vasos sangüíneos e juntas, lesando-os na seqüência. Os danos vão aparecer anos mais tarde e a pessoa pode ter problemas cardiovasculares, oftalmológicos, paralisia progressiva e demência.

‘Além de a sífilis primária ser difícil para o leigo identificar, os seus sintomas, assim como os da sífilis secundária, desaparecem mesmo sem tratamento’, alerta o infectologista Artur Timerman, do Hospital Heliópolis, em São Paulo.

Aí está o grande perigo. Se não tratada de modo adequado, a infecção permanece no corpo, evoluindo silenciosamente de uma fase a outra até chegar ao estágio terciário. Já a grávida infectada (antes ou durante a gestação) e não tratada, tem 60% a 80% de probabilidade de, através da placenta, passar o Treponema pallidum para o feto. A conseqüência é a sífilis congênita.

Casal deve ser tratado

A transmissão da sífilis materna não tratada pode ocorrer em qualquer momento da gravidez, causando óbito do feto (aborto espontâneo ou morte ao nascimento) ou seqüelas nos sobreviventes.

Poucos recém-nascidos infectados apresentam de imediato sinais da sífilis congênita. Os mais comum é serem aparentemente normais, e os sintomas só aparecerem nos primeiros meses. ‘O Treponema pallidum ataca a película que reveste os ossos, produzindo lesões extremamente dolorosas, que ocasionam pseudoparalisia do bracinho, por exemplo’, chama a atenção a neuropediatra e professora Maria Joaquina Marques-Dias, chefe da Unidade de Neuropediatria do Instituto da Criança, da Faculdade da Medicina da USP.

A bactéria pode atingir o fígado, onde ocasiona hepatite gravíssima, e o cérebro, provocando retardo mental, além de surdez, deficiência visual e lesões de pele importantes.

Por isso, o teste VDRL é obrigatório a toda grávida em dois momentos do pré-natal: na primeira consulta e, de novo, no início do terceiro trimestre. Se o resultado for positivo em qualquer das ocasiões, a gestante deverá ser tratada imediatamente com penicilina intramuscular, que é o antibiótico de escolha para a sífilis.

‘É indispensável também o tratamento imediato do parceiro. Do contrário, há risco de recontaminação da gestante e da criança, pondo tudo a perder’, adverte a infectologista Silvia May, do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ. ‘Aqui, talvez a questão mais espinhosa seja a notificação dos parceiros, que, entre outros problemas, pode gerar violência doméstica.’

Informação constante é vital

Evitar a sífilis deve ser preocupação de toda a população sexualmente ativa. A sua prevenção se faz com o uso de camisinha (protege contra a Aids e as demais DST) e o tratamento imediato dos casos diagnosticados e respectivos parceiros sexuais. ‘Como a sífilis não acarreta inicialmente grande desconforto, como a gonorréia, nem é considerada doença mortal, como a Aids, a pessoa às vezes não dá importância e não se trata’, alerta o médico Gonzalo Vecina, secretário municipal de Saúde de São Paulo. ‘Nunca faça isso. Tratar de pronto e corretamente a doença é uma das maneiras de romper a cadeia de transmissão e evitar a sífilis congênita.’

Há cerca de três milhões de grávidas por ano no Brasil e o teste para sífilis no pré-natal está disponível em toda a rede pública. ‘Deixar de oferecer o teste VDRL à gestante é criminoso’, afirma Eduardo Campos. O médico epidemiologista Jarbas Barbosa, secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, orienta: ‘Mãe, exija o exame. Se não for feito, procure no ato o Conselho Regional de Medicina ou ligue para o Disk-Saúde (0800 61 1997)’.

Mas para tudo isso virar realidade, os especialistas consultados pelo Observatório são unânimes: é indispensável a contribuição contínua da imprensa. ‘Orientações para prevenção das DST, incluindo a sífilis, são como as campanhas nos hospitais para médicos e enfermeiras lavarem as mãos’, compara a neuropediatra Maria Joaquina. ‘Têm que ser permanentes; com o tempo, o pessoal esquece e, ainda, novas gerações entram em cena.’

A propósito: nos dias 1º e 2 de dezembro, o Organização Mundial de Saúde (OMS) promove em Genebra, na Suíça, encontro para discutir estratégias para a eliminação da sífílis congênita no mundo. Brasil, Bolívia, Quênia, Moçambique, Estados Unidos e Inglaterra são alguns dos países participantes. Na reunião, o infectologista Eduardo Campos apresentará um retrato da doença aqui e as propostas de trabalho para acabar com ela até 2007.

Tomara que isso se concretize. Com o apoio da nossa imprensa, é claro.

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Jornalista