Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Crescimento dos desertos, do Gobi ao Alegrete

Os portais de notícias das Nações Unidas, da Unesco e do ministério brasileiro do Meio Ambiente (MMA) estão repletos de notícias chamando atenção para o Ano Internacional dos Desertos e da Desertificação. Todos buscam o apoio das mídias em um esforço para sensibilizar a opinião pública internacional – e brasileira, neste caso – diante de um problema relacionado à pobreza e ao meio ambiente.

Pelo que se lê, ouve e vê na mídia brasileira, este esforço conjunto internacional não deu maiores resultados, pelo menos até agora. A convocação dos organismos internacionais, porém, é bem ampla: busca envolver os governos, os meios empresariais, as mídias, a sociedade civil, as ONGs e a juventude do mundo. Objetivo: o engajamento em favor da proteção ambiental e do desenvolvimento duradouro e sustentável. O slogan em inglês é: ‘Don´t desert drylands!’ (Ou, em bom português: Não abandonem as zonas áridas!).

Falar em deserto no Brasil, para uma geração acostumada à leitura de romances clássicos de aventuras, é lembrar de paisagens deslumbrantes, infinitas dunas de areias brancas, um oásis perdido, e guerreiros beduínos ‘sedentos de sangue’ dos brancos infiéis.

Esses clichês se referem, quase sempre, às cruzadas colonialistas dos brancos franceses e britânicos no deserto do Saara, na visão de romances populares como Beau Geste, ou Beau Sabreur, ambos do escritor Percival C. Wren, escritos nos anos 1920. Baseando-se em experiências pessoais, Wren descreve o mundo árabe de uma perspectiva colonialista, numa visão agradável a Hollywood, que adaptou Beau Geste, em 1939, com os astros da época Gary Cooper, Ray Milland e Susan Hayward.

Mais recentemente, o romance Tuareg, de Alberto Vasquez-Figueroa, renovou o interesse pela temática dos guerreiros do deserto, indomáveis e sobrevivendo às difíceis condições ambientais do deserto do Saara.

Nove estados afetados

Essas visões românticas encobrem uma realidade cruel e dramática: os desertos cobrem hoje um quinto da superfície da Terra. O maior deles, o Saara, ocupa cerca de 10% do continente africano. O deserto mais árido do mundo fica perto de nós: é o de Atacama, no Chile. Cerca de 20% dos desertos são cobertos de areia, e as ondulações das dunas permitem pensar que seriam como ondas nos oceanos. O deserto de Gobi, na Mongólia, é considerado um dos maiores sítios arqueológicos do mundo, com seus fósseis petrificados a céu aberto.

As tempestades de areia são hoje em dia uma preocupação crescente em diversas regiões do mundo, afetando a saúde das populações e os ecossistemas. As espessas nuvens de areia que se espalham a partir do deserto de Gobi afetam grande parte da República Popular da China, atingem a capital Pequim, ambas as Coréias e o Japão, aumentando os casos de febre, tosse e complicações respiratórias. E a poeira vinda do Saara já provocou problemas de saúde até na América do Norte e também causou efeitos negativos sobre os sistemas de corais do Caribe. Quem diria, neste século 21, que a África do Norte – antigo celeiro alimentar do Império romano, à época com mais de 600 cidades – iria virar um enorme deserto?

Mas, de concreto, o que pode haver de laços reais entre o deserto de Gobi e o município gaúcho de Alegrete? Pois, embora o ministério brasileiro do Meio Ambiente tenha até lançado, em 16/6, uma série de produtos filatélicos referentes ao Dia Mundial de Combate à Desertificação (comemorado em 17/6), além de lançar o PAN-Brasil, o Programa Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca, não existe em nenhum documento oficial qualquer menção ao deserto de Jacaquá, no município gaúcho de Alegrete. Nem existe qualquer menção ao problema da arenização, talvez hoje o maior problema ambiental do Rio Grande do Sul, já afetando 1,4 milhão de hectares.

As autoridades ambientais gaúchas destacam: o estado tem hoje 20 municípios da Fronteira Oeste (Alegrete, Cacequi, São Francisco de Assis e Quarai, entre outros) ameaçados pela arenização, a degradação do solo que muitos já chamam de desertificação.

O jornal A Razão, da cidade de Santa Maria, na edição de 7/6/2006, dá na manchete: ‘Combate à desertificação será feito a partir de Santa Maria’. A matéria dá conta do centro de combate à desertificação e à degradação do solo, instalado na Fepagro Florestas de Santa Maria. A Fepagro (Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária) está estudando espécies vegetais para deter o processo de desertificação, tais como árvores, arbustos, bambus e gramíneas.

Apesar das secas inclementes que assolam o estado e também os vizinhos Santa Catarina e Paraná já há alguns anos, os técnicos dizem que a área de deserto no Rio Grande do Sul não é causada pela falta de chuvas. A arenização decorre porque o solo do Pampa é formado por arenito conhecido como botocatu, e existe uma fraca cobertura vegetal. Com o uso intensivo de máquinas agrícolas e a sobrecarga de animais em rebanho, a vegetação desaparece e dá lugar aos areais. Acima do que era verde, a areia predomina e o vento forma as dunas. Em alguns pontos do deserto do Alegrete, há crateras de até 50 metros de profundidade.

Mas, para o PAN-Brasil, o problema do Rio Grande do Sul parece não existir. Seria uma miragem?

A assessoria de imprensa do MMA afirma que áreas de desertificação são as com clima semi-árido e subúmido seco. E diz: o Brasil possui as áreas suscetíveis à desertificação mais densamente povoadas do mundo. Em área equivalente a 16% do território nacional, com 32 milhões de pessoas, estão quase que 20% da população brasileira. As áreas afetadas são os nove estados do Nordeste, o Norte de Minas Gerais e parte do Espírito Santo. E o deserto do Alegrete?

Além da fantasia

No mundo todo, os desertos estão presentes em cerca de 100 países, em mais de 5 bilhões de hectares. Associada à degradação do solo nas terras áridas, semi-áridas e subúmidas secas aparecem a pobreza e a miséria extremas, reconhecidas pelas Nações Unidas como um dos principais fatores de causa e de conseqüência dos processos de desertificação.

O presidente da Argélia, Abdelaziz Bouteflika, em discurso perante a Conferência Mundial do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (6/6/2006), disse que, 30 anos depois, estão começando a ser aplicadas as três principais convenções ambientais – mudança climática e aquecimento global; biodiversidade; e a luta contra a desertificação. Ele recordou as conferências de Estocolmo (1972), do Rio de Janeiro (1992) e a mais recente, a Cúpula da Terra em Johannesburg, África do Sul, em 2002.

‘Trinta anos foram necessários para que a idéia do desenvolvimento sustentável, construído sobre um crescimento equilibrado, a coesão social e a proteção dos ecossistemas, se impusesse como um dos objetivos prioritários da comunidade das nações’, disse o líder argelino.

Embora o avanço dos desertos represente uma realidade mundial, desde Gobi até o Alegrete, o presidente Bouteflika encerrou seu pronunciamento de maneira otimista:

‘Que possa este Ano Internacional dos Desertos e da Desertificação oferecer espaços de debate e de reflexão, contribuindo para a sensibilização daqueles que decidem para que, finalmente, as zonas áridas sejam protegidas como locais de habitat e como fonte de biodiversidade, em benefício de populações hoje à margem do desenvolvimento. Discutam, troquem idéias e formulem propostas para estimular a cooperação em todos os níveis para fazer da luta contra a desertificação e pela erradicação da pobreza um objetivo partilhado pela comunidade das nações’.

Muito além da fantasia dos romances populares, o que se vive hoje nas zonas desérticas em todo o Planeta é a dura realidade de parte da mudança climática e do aquecimento global. O jornalista Ulisses Capozzoli, no artigo ‘Mídia, clima e o desastre em curso‘, neste Observatório, já assinalava:

‘Uma das realidades por trás do aquecimento global é a desconsideração pelas fronteiras nacionais, no que isso tem de remanescente. Temporais destruidores, temperaturas anormais (baixas ou elevadas para os padrões históricos regionais), destruição de habitats com aceleração de extinções, perdas agrícolas e em outras áreas da economia são um fenômeno global. É verdade que os pobres, como sempre aconteceu no mundo, pagarão os preços mais altos. Mas agora também os ricos, como numa praga bíblica, acabarão afetados’.

Acredito que não é preciso dizer mais nada. Pelo menos, por enquanto.

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Jornalista, associado da SBPC