Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Criacionismo e retrocesso social

Demorou um pouco, mas reafirmando o dito popular de que desgraça pouca é bobagem, o governo do Rio de Janeiro confirmou a decisão de adotar o criacionismo na rede pública de ensino estadual (Folha de S.Paulo, 13/5, pág. A16).

A decisão de ensinar nas escolas que o mundo foi criado segundo o relato bíblico, e não como descreve o conhecimento científico, está embasada nas crenças pessoais do ex-governador e agora secretário de segurança pública, Anthony Garotinho, e sua mulher, a atual governadora Rosinha Matheus. Ambos são presbiterianos.

A história do criacionismo está recheada de absurdos e incompreensões e o fato de estar para ser introduzido na rede pública de um estado do Sudeste do Brasil dá uma dimensão da regressão a que estamos submetidos.

Aponta também para uma omissão, pelas mais diversas razões, do que até pouco tempo se chamava ‘aparelho do Estado’. Neste caso, através de instituições como a universidade. Mas os meios de comunicação social, especialmente a mídia impressa, também têm sua parcela de responsabilidade.

Via educacional

As raízes mais antigas do criacionismo estão mergulhadas no antigo privilégio das religiões como via de explicação para a origem do Universo e da vida. Até aí há uma perspectiva interessante de considerações. Até porque a linguagem dos livros sagrados, para todas as religiões, é alegórica. A abordagem, neste caso, é de fundo mitológico e a linguagem dos mitos é essencialmente alegórica.

A perspectiva da ciência, no entanto, é outra. A ciência moderna, que apareceu no Ocidente no século 17, apóia-se na observação do mundo. Uma explicação teoricamente proposta para um determinado fato deve ser observada na Natureza para ter aceitação.

Evidentemente que, na prática, esse processo é extremamente mais complexo e abriga suas próprias controvérsias. O recorte que fazemos aqui é apenas para sugerir que ciência e religião não são, necessariamente, antagônicas. São abordagens distintas para uma explicação possível para a natureza do mundo.

A perspectiva mitológica que está na base da religião também está presente na ciência, embora muitos crentes e pesquisadores científicos não tenham olhos para essa constatação. O problema do criacionismo é o de basicamente interpretar a metáfora ao pé da letra – o que, de alguma maneira, sugere um estado psicótico.

Essa anomalia pode ter origem numa ininteligibilidade do mundo. A realidade se apresenta de forma caótica e incompreensível. Aí está presente a influência/responsabilidade da mídia.

Aí se mostra também a impotência/omissão do Estado como possibilidade de acesso a uma cidadania contemporânea, justamente aquela capaz de fornecer inteligibilidade possível pela via da educação. E o que o Estado semeia, no Rio de Janeiro, neste momento, confundido com valores pessoais de seu representante formal, é a desinformação e o obscurantismo.

Fonte de vida

A vertente moderna do criacionismo está relacionada à publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, em 1859.

O trabalho resultou de uma viagem que durou cinco anos (1831-1836), quando Darwin, que deveria ser um pastor anglicano, esteve a bordo de um navio britânico de pesquisa, o Beagle, que o levou a uma volta ao redor do mundo.

No início da viagem, quando tinha 22 anos, Darwin era criacionista. Ao final dela havia se transformado completamente pelas observações científicas que fez.

Claro que isso não se deu ao acaso. Antes de pôr os pés no Beagle Darwin já havia sido seduzido por uma conferência de John Henslow sobre botânica e ficou fascinado pela beleza da exposição. Henslow (1796-1861), vale a pena dizer, também era um clérigo. Mas de mentalidade aberta, interessado especialmente em geologia e botânica. Como Darwin, que reconheceu sua influência, era síntese de uma época de abertura para o novo pela ampliação dos horizontes mentais.

Em sua longa navegação, descrita saborosamente em Voyage of a Naturalist Round the World (Viagem de um naturalista ao redor do mundo), Darwin passou pela costa do Brasil. Visitou o interior do Rio de Janeiro onde ficou fascinado pela natureza e horrorizado pela escravidão.

Darwin publicou Origem das Espécies ao final de um longo período de angústia. Sabia que, de alguma maneira, explodiria os valores de sua época. A correspondência que manteve com sua prima e futura esposa Emma Darwin, antes do casamento, em janeiro de 1839, é evidência disso. Numa das cartas Darwin escreveu: ‘Quando eu morrer, saiba que muitas vezes cobri de beijos e de lágrimas estas cartas’. Emma era uma mulher religiosa.

O que Darwin propõe, em resumo, é um parentesco inseparável entre tudo o que vive. As coisas do mundo não foram criadas definitivamente ao longo de um determinado período, como ensina a Bíblia. Ao contrário disso, nas profundezas do tempo, as espécies todas estão associadas a uma única fonte de vida. A beleza dessa descoberta desde então não cessou de encantar a inteligência.

‘Que ninguém saiba disso’

Os choques produzidos pela Origem das Espécies começaram com a publicação do livro e devem avançar pelo futuro, como sugere a decisão do casal Garotinho.

A publicação do livro, em 1859, foi estimulada pela descoberta, de forma independente, da seleção natural (mecanismo da evolução proposto por Darwin) por um outro pesquisador inglês, Alfred Russel Wallace.

Wallace passou uma temporada no Brasil, fazendo pesquisas junto ao Rio Negro, na Amazônia. Acabou eclipsado no interior da comunidade científica especialmente por ter aceito o kardecismo, ou espiritismo, como faria, depois dele, Arthur Conan Doyle, escritor e criador de Sherlock Holmes.

Um dos encontros mais notáveis envolvendo ataques ao darwinismo ocorreu já no ano seguinte à publicação de Origem das Espécies.

Em 1860, a Sociedade Britânica para o Progresso da Ciência fez seu encontro anual em Oxford e Thomas Henry Huxley, um dos mais respeitados conferencistas da época, abordou o trabalho de Darwin.

Na platéia, o bispo de Oxford, Samuel Wilberfoce, furioso, dirigiu-se a Huxley e provocativamente perguntou se era por parte de avô ou avó que ele descendia de ‘um respeitável macaco’.

Huxley respondeu que se pudesse escolher entre um homem de Igreja ou de Estado determinado a escamotear a verdade e um macaco se arrastando e fazendo barulho numa jaula e que, ainda assim, representasse o mistério e o milagre da Natureza, não teria dúvida em optar pela segunda alternativa.

Uma mulher da platéia, que nunca tinha visto um bispo ser contestado dessa maneira, desmaiou. Outra, a mulher do bispo, acrescentou: ‘Ora, essa. Descender de macacos. Se for verdade, rezemos para que ninguém saiba disso’.

Darwin nunca disse que os humanos descendem de macacos, mas que partilham de um tronco comum. Sutileza e dogmatismo sempre foram características excludentes.

Utopia pura

A introdução do criacionismo nas escolas do Rio, além de toda a herança histórica de obscurantismo, reflete a influência do que tem de pior em outros países. Neste caso, o Sul dos Estados Unidos, onde o criacionismo integra o ensino básico.

No antigo Sul escravista, a principal base política de George W. Bush, grupos religiosos deram sustentação recente à invasão do Iraque, cobiçando, além dos poços de petróleo, a conquista das almas locais.

Nesse sentido, os atos de mutilação cultural por trás das barbáries na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, personalizados pela pequena Lynndie England e seus colegas de tropa, são apenas a reedição das violências cristãs que o historiador inglês Charles Boxer registrou no seu clássico Império Marítimo Português.

Uma sumariedade doentia cobre a face do mundo. Talvez seja esse o principal legado do neoliberalismo que Francis Fukuyama proclamou como ‘o fim da história’.

Madrugadas duras ocupam cada vez mais o espaço de sono/sonhos das pessoas. O céu violeta, entre a noite e o dia, não promete nada além de um terror que não sabemos de onde vem e para onde vai nos levar, numa tempestade que parece não ter fim. Não há respostas tranqüilizadoras e o jornal no café da manhã é só uma evidência disso.

Mais que nunca é preciso resgatar valores que assegurem nossa humanidade e a mídia, especialmente a impressa, dirigida a formadores de opinião, tem um papel fundamental neste processo.

Certamente alguém dirá que tudo isso não passa de utopia. Pode ser. A vida, de um ponto de vista biodinâmico, não é outra coisa senão a mais pura utopia.