Nós, seres humanos, temos fascinação pelo consumo de drogas. Nisso acreditam os médicos que asseguram que não dá para sair satisfeito da consulta médica sem uma receita. Esse hábito de prescrever de forma maciça foi passado também à imprensa.
Penso nisso quando leio a matéria ‘Estão de bem com a vida, mas tomam antidepressivo’, assinada por Adriana Dias Lopes no Estadão do domingo (4 de julho de 2004). Publicada no Brasil, país em que o mercado de medicamentos movimenta anualmente cerca de US$ 10,5 bilhões, e o investimento em comunicação dos mais de 300 laboratórios instalados no país alcança também cifras milionárias.
Para quem não leu a matéria, o lead representa bem seu teor: ‘Além de depressão, medicamento vem sendo receitado para enxaqueca e estresse.’ A legenda da foto principal, na qual se vê uma mulher sorridente olhando a câmara, diz: ‘Foi uma maravilha, me sinto outra’. No box destinado aos efeitos adversos, porém, os editores da matéria mostravam alguma sensatez. Título: ‘Remédio pode causar problema odontológico’.
No primeiro parágrafo: ‘Ainda que seus efeitos colaterais sejam mais brandos, reduz salivação e altera pH da boca.’ Será esta a melhor maneira de explicar ao leitor os efeitos colaterais detalhados no texto do box — que o consumo destas drogas pode provocar inflamações na gengiva e cáries? Tudo isso ajuda a entender por que os brasileiros estão no quarto lugar em consumo mundial de medicamentos, atrás apenas dos Estados Unidos, da França e da Alemanha.
Farsa nacional
Há outras questões. ‘A publicidade pode estar contribuindo para a redução da tolerância ao desconforto, para o aumento da percepção dos sinais corporais como problemáticos e para a preferência para soluções rápidas’, escreveram o psicólogo Mark Thompson e o médico Steven Freedman em março do 2000, em CW Online. Eles se referiam à realidade estadunidense, onde os remédios se anunciam livremente ao público, mas não será isso aplicável aos bolsões de riqueza do mundo todo? De medicamentos psiquiátricos, os antidepressivos passaram a ser considerados popularmente como lifestyle drugs, fórmulas não destinadas a curar doenças, mas a melhorar a vida, como as drogas anticalvície. Por seu relacionamento com o hedonismo, sempre acham lugar na mídia.
Os medicamentos que não podem ser anunciados na mídia encontram outras formas de divulgação: as noticias. A difusão exagerada não teria a importância que tem se fosse apenas um apoio, e se o uso de fármacos fosse decidido exclusivamente pelo profissional da saúde. Mas sabe-se que não é assim. A automedicação é uma questão cultural. ‘Tomava calmantes esporadicamente, mas li que eles viciavam, e resolvi mudar para antidepressivo’, conta na matéria uma mulher que diz abastecer-se com uma amiga que tem receita médica. ‘Hoje é chique tomá-los’, reconhece na mesma matéria um psiquiatra.
As autoridades de saúde fingem que o consumidor não se automedica; os médicos fingem que os prescrevem só quando estritamente recomendados; os farmacêuticos fingem que os vendem sempre com receita médica. E a mídia finge que está tudo bem.
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Bióloga e jornalista especializada em saúde