Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Desinformação ameaça democracia e Estado laico

A responsabilidade social da mídia, assim como a ética, devem ser invocadas quando um jornal do porte e da confiabilidade adquirida pelo Correio Braziliense noticia como acontecimento algo que não ocorreu e, sobretudo, num tema como o aborto, em si polêmico, apaixonante, melindroso e outros que tais no contexto de um fundamentalismo que perdeu a vergonha de mostrar a cara e suas verdadeiras intenções: atentar contra a democracia e o Estado laico, num país cujo presidente é católico pressionado e chantageado, diária e publicamente, pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e sob a ameaça da visita do papa Bento 16 para maio de 2006 (coincidentemente, mês das mães, das noivas e de Maria, mãe de Jesus… precisa mais?).


Em suma, Bento 16 pisando o nosso solo, em ano de eleições presidenciais… Indica algo (seria uma retaliação? Ou expiação de pecados?) que agora, outubro de 2005, Bento 16 tenha negado pedido de audiência a Lula, em sua recente viagem à Itália, segundo nota da FSP:




‘Mãos à obra. O papa Bento 16 não tem permitido exceções. Costuma receber apenas chefes de governo e de Estado, descartando audiências com escalões inferiores. Alega o início do pontificado, período de intenso trabalho. Mas é amplamente reconhecida sua ojeriza a solenidades políticas de tom diplomático. Sua agenda estava cheia para receber Lula’.


Comenta-se à boca miúda que ‘Ratz não gosta destes salamaleques’, mas a recusa em receber Lula deixa antever um dedo de imposição de penitência da CNBB profunda, antidemocrática e fundamentalista por Lula ter alçado, ainda que aos trancos e barrancos, a descriminalização e a legalização do aborto no Brasil ao debate público sério.


Mas como o Correio Braziliense caiu nessa esparrela?


Lamentavelmente, o Correio Braziliense, que tem feito matérias que de modo geral podem ser classificadas como de caráter informativo e de teor equilibrado sobre o debate em curso a respeito do aborto no Brasil, com certeza, não se deu ao trabalho de comparecer à Reunião Ordinária da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados no dia 19/10/2005 e ‘emprenhou pelo ouvido’, como se diz no meu Maranhão de quem acredita em tudo o que ouve, sem a preocupação de ‘checar’ a veracidade.


Basta ver a pauta


Em nome da Rede Feminista de Saúde, que integra a Comissão Política das Jornadas pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, compareci à reunião da CSSF, onde permaneci da abertura ao encerramento, e posso afirmar que não é verídico o texto de abertura da matéria do Correio Braziliense: ‘Divisão em torno de plebiscito’, reforçada pela chamada ‘Aborto – Para defensores da descriminalização da interrupção da gravidez, decisão cabe apenas à mulher. Integrantes da corrente contrária já recolhem assinaturas para consulta popular’, que serviu de ‘gancho’ para veicular opiniões de várias pessoas sobre um plebiscito do aborto no Brasil, a partir da informação (não verdadeira!) de que a CSSF no dia 19 decidiu discutir um plebiscito sobre aborto:




‘O projeto de lei que prevê a descriminalização do aborto emperrou na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF). Ontem os deputados da Comissão decidiram discutir, nas próximas reuniões, a possibilidade de realização de um plebiscito sobre a questão. As vozes contrárias do projeto festejaram a decisão dos parlamentares. Já os defensores da causa consideram a consulta imprópria para uma decisão que, segundo eles cabe à mulher’. (Fonte: Hércules Barros, da Equipe do Correio. Correio Braziliense, 20/10/2005)


O JB Online, em 19/10/2005, também veiculou a mesma informação do Correio sobre o plebiscito, tendo como fonte a Agência Câmara (19/10/2005). O que não deixa de ser intrigante… E a pergunta que não quer calar é: quem autorizou veicular uma mentira como verdade e por que o fez? O que está nas entrelinhas da matéria do CB?


Em primeiro lugar, quem se der ao trabalho de verificar a pauta da Reunião Ordinária da CCSF (19/10/2005) constatará que o tema plebiscito sobre aborto não estava pautado, logo não poderia ter sido objeto de decisão da CSSF naquela sessão. As discussões sobre aborto na CSSF, em 19/10/2005, deram-se em torno do ponto 3 da pauta: ‘Projeto de Lei 1.135/91 – do Sr. Eduardo Jorge e da Srª Sandra Starling – que ‘suprime o artigo 124 do Código Penal Brasileiro’’.


Onde está o emperramento?


A relatora do referido PL é a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), há quase uma década, cujo parecer é pela aprovação, absorvendo o ‘produto’ da Comissão Tripartite para a Revisão da Legislação Punitiva sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, entregue ao Congresso Nacional em 27/10/2005, pela ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Nilcéa Freire. Vejamos:




‘Por entender que o texto representa um avanço e a posição majoritária de todos aqueles que, como, eu se debruçam sobre o tema há mais de uma década, incorporei as sugestões em meu relatório. Não deixei, no entanto, de absorver dispositivos de meu parecer anterior que considerei imprescindíveis. Ressalto que de mérito inquestionável, o projeto original mereceu, assim, aperfeiçoamentos na sua redação, para sua plena efetividade. Nesses termos, somos pela aprovação dos PLs 1.135/91, 1.174/91, 3.280/92, 176/95, 1.956/96, 2.929/97, 3.744/04, 4.304/04, 4.834/05, na forma do substitutivo apresentado pela relatora e pela rejeição dos PLs 4.703/98, 4.917/01, 7.235/02, 1.459/03, 5.166/05 e 5.364/05.’


Também está disponível na internet um mecanismo de consulta Tramitação das Proposições e quem dispuser de alguns segundos para verificar a quantas anda o PL 1.135/91, encontrará as seguintes informações: Data de Apresentação: 28/5/1991; Apreciação: Proposição Sujeita à Apreciação do Plenário; Regime de tramitação: Ordinária; Situação: CSSF: Aguardando Vistas. Ementa: Suprime o artigo 124 do Código Penal Brasileiro; Última Ação: 19/10/2005; Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) – Vista conjunta aos Deputados Ângela Guadagnin, Darcísio Perondi, Durval Orlato, Elimar Máximo Damasceno, Ivan Paixão, Mário Heringer, Osmânio Pereira e Roberto Gouveia.


Ou seja, o PL 1.135/91 não está ‘emperrado’ na CSSF, como afirma o Correio Braziliense, embora estivesse sim, desde 1991 até o dia 19/10/2005. A deputada Jandira Feghali o apresentou em plenário, embora não tenha sido votado, pois houve pedido de vistas. Foi aprovado um roteiro de tramitação do referido PL: realização, em breve, de uma audiência pública, provavelmente em novembro, e o presidente da CSSF, deputado Benedito Dias (PP-AP), comprometeu-se a, logo após a audiência pública, marcar a data para a votação na CSSF. Onde está o emperramento noticiado pelo Correio?


O erro da Agência Câmara


Mesmo os grandes jornais não tendo reverberado a informação do que não aconteceu, uma busca na internet ‘plebiscito sobre aborto’ revela o estrago da mentira, pois encontramos a sua repetição em vários lugares: ‘País pode ter plebiscito sobre aborto: 20/10/2005 – O assunto vai ser pauta das próximas reuniões dos deputados da Comissão de Segurança Social e Família. (Estado do Paraná, p.3); Comissão vai avaliar proposta de plebiscito sobre aborto; ‘Deputados discutem plebiscito sobre aborto


Enfim, a busca nos revelou a origem da informação inverídica, sobre a aprovação de uma discussão sobre plebiscito para o aborto na CSSF, que ‘emprenhou pelo ouvido’ tanta gente. E pasme, a estória foi plantada pela Agência Câmara. Está lá, pode conferir, em reportagem de responsabilidade de Joseana Paganine, editada por Paulo Cesar Santos (‘Comissão discutirá proposta de plebiscito sobre aborto’):




A Comissão de Seguridade Social e Família vai analisar, nas próximas reuniões, a proposta de realização de um plebiscito sobre a legalização do aborto. O assunto foi debatido hoje em reunião da comissão que discutiu o projeto de lei que autoriza a interrupção da gravidez (PL 1135/91), com a leitura do relatório da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ). A votação da medida, porém, ainda não começou porque vários deputados pediram vista do texto (…)


Plebiscito. A proposta de um plebiscito sobre a legalização do aborto foi feita pelo deputado Salvador Zimbaldi (PSB-SP) e recebeu apoio de vários deputados. ‘Um tema tão polêmico deve ser julgado por um instrumento mais democrático’, concordou o deputado Nazareno Fonteles (PT-PI). Ele defende a realização da consulta no fim de 2007.


Parlamentares contrários ao aborto sugeriram ainda que o plebiscito fosse feito antes da discussão do projeto pela comissão. Na avaliação do deputado Mário Heringer (PDT-MG), porém, a realização do plebiscito não inviabiliza a análise da proposta pela Câmara. ‘É uma situação semelhante à do Estatuto do Desarmamento (Lei 10826/03), cujo artigo sobre a comercialização de armas irá a referendo agora. Não tenho compromisso com o substitutivo da relatora, mas precisamos discuti-lo’, afirmou.


Além do plebiscito, Zimbaldi disse que vai ainda requerer a realização de uma comissão geral no plenário. ‘Só uma audiência pública é pouco para debater um tema como esse. Uma comissão geral poderá discutir mais amplamente o assunto’, ponderou.


É importante atentar que o relato da matéria (‘Comissão discutirá proposta de plebiscito sobre aborto’) contém algo sobre o plebiscito que não ‘bate’ com o que diz o título! A quem a gente pode se queixar de tamanho problema criado pela Agência Câmara? A um bispo católico ou de alguma igreja evangélica, já que a notícia como foi dada potencializa os intentos da Frente Parlamentar contra o Aborto (FPCA), composta por fundamentalistas que conhecemos de longa data por suas posturas misóginas referendadas e comandadas pela tropa de choque da CNBB? Relembro que FPCA tem como nome oficial ‘Frente Parlamentar da Defesa da Vida’ e engloba a Frente Parlamentar Evangélica e, segundo informe de membros da mesma na CSSF, já conta com cerca de 70 parlamentares.


Manobra de hibernação


O presidente da Câmara, Aldo Rebelo, tem poder para com rigor apurar responsabilidades? Se tem, está na hora de usá-lo. É inadmissível que num país democrático e laico a Agência Câmara seja a origem e o motor da publicação de algo mentiroso, mas de grande interesse de setores fundamentalistas de igrejas cristãs, que serve apenas para confundir a opinião pública, contribuindo para que se consolide uma ‘Operação Torquemada’ contra as mulheres. Esperamos providências de emergência, pois se vivemos num país em que não podemos confiar no que veicula a Agência Câmara a democracia corre risco.


Mas o que aconteceu mesmo na Reunião da CSSF no dia 19 de outubro?


Comecemos pelo fim, ou seja, pelo que foi realmente definido na CSSF:


1) Derrota da intenção dos intitulados pró-vida (ou pró-família = FPCA) de adiar a leitura do Relatório do PL 1.135 por DEZ Sessões da CSSF;


2) Concessão de ‘vistas coletiva’ ao Relatório do PL 1.135/91; e


3) Aprovação de uma Audiência Pública sobre o PL 1.135/91 para breve e acordado que logo após o PL vai à votação…


A reunião na CSSF começou com a solicitação de apreciação do requerimento do deputado padre José Linhares (PP-CE) sobre o PL 1.135/91, assinado pelos fiéis da FPCA que integram a CSSF, que solicitava o adiamento da leitura do Relatório do PL 1.135/91 por DEZ Sessões da CSSF… Em outras palavras, no popular mesmo: havia a intenção do padre José Linhares de impedir a tramitação do PL 1.135/91 ad aeternum… Sim, literalmente, propuseram uma hibernação do PL 1.135/91!


Manobra desrespeitosa


Para a defesa do requerimento do padre José Linhares, que não compareceu por motivo de doença, inscreveu-se a deputada Ângela Guadagnin (PT-SP), estribada no discurso de que no momento é inadequado discutir-se o aborto, pois o país está imerso em grande e grave crise, além do que há um debate nacional com vistas a combater a violência de maneira séria e responsável, que se traduz na mobilização do referendo sobre ‘desarmamento’ e seria um contra-senso o Congresso Nacional colocar-se na contramão do que quer a sociedade, pois, segundo dados da deputada, 97% da população estão contra o aborto, que este é o momento da defesa da vida etc.


A deputada Jandira Feghali contrapôs-se de uma forma serena, ponderada, naquele estilo que cala ‘fundo’, mas corta e dói, dizendo que não se tratava de ‘pedir tempo’ ao debate do aborto no Congresso: ‘Esse projeto já tramita há quase 15 anos. Precisamos ter coragem de iniciar a discussão’. Sim, ela relata algo que está em debate no Congresso Nacional desde 1991 e do qual é relatora há pelo menos 10 anos, logo está habituada ao debate amplo e franco, o que a credencia a dizer que ‘não há contradição entre abrir a discussão e fazer audiência pública, o que não podemos é continuar adiando a análise do projeto, que já se arrasta na Casa há quase 15 anos’.


Então, o pedido de adiamento baseado no argumento da pressa era falso, além de uma manobra desrespeitosa que fugia do assunto, impedindo nesses anos todos pelo menos a leitura do relatório, algo que jamais havia acontecido na CSSF.


Deplorável postura


Na verdade, o presidente da CSSF, deputado Bendito Dias, cuja condução dos trabalhos foi irrepreensível, não abriu um debate sobre o mérito do tema aborto. O que estava em curso era uma discussão sobre a pertinência ou não do teor do requerimento do padre Linhares. Todavia, depois que a deputada Jandira Feghali se contrapôs à deputada Ângela Guadagnin, quase todas as parlamentares presentes se inscreveram para falar e caíram na abordagem do ‘mérito’ do tema aborto! A exemplo do deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), entre outros, que disse, com firmeza, ser contra o requerimento protelatório e pela leitura imediata do relatório, pois não procede afirmar que esse é um tema novo no Congresso Nacional; que a CSSF deveria enfrentá-lo, pois enquanto esse debate fica parado no Congresso com medidas protelatórias, as mulheres pagam com a vida.


Em torno de duas horas depois de aberta, a reunião chegou ao que deveria ter sido o seu primeiro ponto de pauta: a votação do requerimento do padre José Linhares, que perdeu por ampla maioria, quando então a deputada Ângela Guadagnin anunciou que estava pedindo vistas do PL. Aí foi uma enxurrada de pedido de vistas. Então, o presidente da CSSF disse que estava concedendo ‘vistas coletivas’ ao PL 1.135 e autorizou a leitura. Para espanto geral, Ângela Guadagnin disse, aos urros, e, ao mesmo tempo, se levantando da cadeira: ‘Eu vou sair porque não quero ouvir nada disso que está nesse relatório’.


Ao que a deputada Jandira Feghali disse-lhe algo como: ‘Ângela, você não pode ser tão antidemocrática. O que é isso?’ Mas a deputada saiu. Essa deplorável postura adensa a opinião do professor-doutor Thomaz Gollop, integrante da Comissão Tripartite representando a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), quando disse: ‘Não resisto e vou escrever sinceramente o que penso. Convivi com a deputada Ângela Guadagnin em três reuniões da Comissão Tripartite [ela só compareceu a três reuniões da CT!]. Devo dizer que o fato de pensar ela de maneira diferente do que eu jamais foi ou será motivo para eu criticá-la. Respeito a diversidade e penso ser um democrata verdadeiro. O que condeno veementemente nela é que ela sequer se dá ao trabalho de ouvir as outras opiniões. Nestas horas começa a atender freneticamente o celular…’ (Libero este e-mail para fazerem o melhor uso possível dele, Wed, 19 Oct 2005 00:17:26 -0200).


Novo modelito


Como viram, é realmente uma pena que a grande mídia não tenha tido o senso, o ‘faro jornalístico’ para assistir à reunião da CSSF. Enfim, é lamentável e exige apuração rigorosa, que a Agência Câmara tenha servido de ‘correia de transmissão’ (e por ordem de quem?), divulgando a idéia da Frente Parlamentar contra o Aborto, que lança mão de um discurso de aparência reciclada sob o argumento de defesa da democracia, vendido por parlamentares fundamentalistas que ‘tudo de importante não deve ser definido só na Câmara, mas devemos chamar o povo para opinar’. Estranho (ou não?), que de repente, não mais que de repente, tornem público que alguns mandatos parlamentares não são legítimos, embora nenhum renuncie ao seu…


O deputado Luiz Bassuma (PT-BA), da FPCA, disse que naquele dia mesmo (19/10) entraria com requerimento para transformar o Plenário em Comissão Geral. Isto é, querem retirar da CCSF a discussão sobre o PL 1135/91, pois avaliam que lá perdem, e buscam espaços maiores de debate, como o plenário da Câmara dos Deputados, pensando que lá têm mais apoio.


Quais os signos e significados de tudo isso? É preciso olhar e entender a face do novo modelito de discurso e de aparência adotados pelos pró-life (pró-vida ou pró-família ou FPCA), como bem detectou Gilda Cabral, do CFemea/RFS/Jornadas pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro. Nada das baixarias pré-2003: corredor polonês de velas e terços, exorcismo de satanás, tendo o padre Lodi no comando. Em 19/10, convivemos na CSSF com representantes da alta cúpula da CNBB (toda empaletozada e engravatada – a personificação da discrição e da educação, e de terço nas mãos). Destacando também pastores finérrimos de falas empostadas, português sofrível, fazendo questão de cumprimentar todo mundo, pegando o último número da revista da Rede Feminista de Saúde e voltando para agradecer e falar da sua relevante importância… Coisa fina, como pudemos constatar.


Desdém e infantilização


O PMDB foi o único partido cujos representantes, em peso, na reunião da CSSF, defenderam o apoio ao PL 1.135/91, com firmeza, contrastando com quem tinha esse dever moral: a bancada do PT, da qual só Telma de Souza, Roberto Gouveia e Doutor Rosinha apoiaram o PL 1.135/91. O restante serve de leão-de-chácara do fundamentalismo. A quem interessa a idéia do plebiscito sobre os corpos das mulheres? A quem, historicamente, aspira legislar até sobre a expropriação do direito ao exercício da sexualidade e o de ter respeitadas suas decisões reprodutivas..


Como disse o deputado Ivan Paixão (PPS-SE), em contundente e precisa fala sobre o Estado laico em apoio ao PL 1.135/91, a igreja católica não pode exigir que um Estado laico, como o Brasil, dê conta de conter seus fiéis elaborando leis conservadoras, antidemocráticas e contra os direitos das mulheres para que cumpram as suas doutrinas e as suas ordens. Ela que trate de convencê-los de justeza de sua doutrina para que as cumpram. E relembrou, com precisão que o nosso Congresso Nacional não pode se mirar e se portar como Torquemada (o inquisidor-geral da Espanha Tomás de Torquemada e suas fogueiras da intolerância católica) e jogar ao fogo milhares de mulheres.


A médica Zilda Arns, fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança, personagem mais poderosa que a maioria dos bispos na CNBB, é no Brasil a única mulher que ousa abrir a boca para falar em nome da igreja oficial (e ninguém entende por que as pessoas lúcidas da CNBB aceitam tamanha distorção). Em artigo publicado em O Globo no dia 6 de outubro (‘Plebiscito para o aborto’), numa postura de ‘infantilizar’ (o que é um desdém) as mulheres e fazendo de conta que as mulheres não abortam, registrou: ‘Nesses 22 anos da Pastoral da Criança, que conta com mais de 250 mil voluntários, 92% deles mulheres, que atuam em 70% dos municípios brasileiros, acompanhando quase 2 milhões de crianças e gestantes em 38 mil comunidades pobres, nunca nos perguntaram sobre meios para abortar’.


Embate vigoroso


Ora, é elementar, as mulheres, mesmo aquelas que se deixam explorar pelo trabalho escravo sob a capa de trabalho voluntário em nome de Deus, sabem quem as apóiam e não vão perder tempo em pedir ajuda a quem não as ajudará. Diante dessa realidade de conto de carochinha, D. Zilda propõe um plebiscito sobre aborto alegando que ‘esta não é uma discussão menor, individual, pois questiona valores culturais, éticos, religiosos de toda a sociedade brasileira. O povo tem o direito de opinar’.


Outro que propôs e encaminhou pedido de plebiscito sobre aborto foi o deputado João Fontes (PDT-SE), advogado, para quem ‘a realização de um plebiscito é a melhor maneira para que a população decida sobre um tema considerado polêmico e da mais alta importância, com reflexos diretos na vida de milhões de mulheres brasileiras’, pois ‘o aborto tem um caráter bastante controverso, e envolve concepções morais, políticas e religiosas, que não podem ser reduzidas ao simples exercício da representação política. O aborto é matéria para um plebiscito’.


Não é realmente uma pena que a grande imprensa não tenha tido o cuidado ético de acompanhar as discussões e definições sobre um tema tão relevante como a descriminalização e a legalização do aborto no Brasil? Como a mídia brasileira pode bater no peito e dizer que contribui para consolidar a democracia e o Estado laico se não se dá conta de que não poderia deixar de veicular um embate vigoroso, do porte do que ocorreu na CSSF?

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Médica, secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde, da coordenação política das Jornadas pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, autora de Engenharia genética: o sétimo dia da criação (Moderna, 1995, 14ª impressão, atualizada em 2004), Bioética: uma face da cidadania (Moderna, 1997; 8ª impressão, atualizada em 2004), Oficinas Mulher Negra e Saúde (Mazza, 1998), Transgênicos: o direito de saber e a liberdade de escolher (Mazza, 2000); ensaios ‘O estado da arte da Reprodução Humana Assistida em 2002’ e ‘Clonagem e manipulação genética humana: mitos, realidade, perspectivas e delírios’ (CNDM/MJ, 2002); Saúde da população Negra, Brasil 2001 (OMS-OPS, 2002); A hora do Angelus (Mazza Edições, 2005)