No país em que uma jornalista assina matéria na seção Espaço sem saber a diferença entre os termos ‘aeronave’ e ‘espaçonave’ (aero vem de ar, no espaço não há ar, como todos deveríamos saber), não é de se estranhar que Veja trilhe o caminho do clichê e da ironia fácil cobrindo um assunto que talvez seja complexo demais para suas fileiras. O erro cometido pela repórter apenas evidencia que por aqui existe um desdém expressivo pelo rigor técnico e uma tolerância cada vez mais persistente com a ignorância e com a mesmice.
Muito mais legítimo seria descrever como o coronel Pontes tornou-se o primeiro brasileiro treinado como astronauta em duas agências, que desempenho ele teve entre seus pares, como a explosão do Columbia afetou o cronograma de sua missão, suas expectativas, o apoio de sua família e acima de tudo: qual o valor do efeito inspirador de sua jornada aos mais jovens, num Brasil que vende apenas o futebol, o pagode e o axé como perspectivas de conquista.
Assisti a palestras gratuitas do coronel Pontes e sei de seu empenho em motivar crianças e jovens a investir no caminho da ciência, na verdade uma bandeira que carrega com vigor. Estou certo de que desde que foi selecionado o coronel Pontes atuou com um senso de responsabilidade incomum para os nossos padrões: divulgou para variadas audiências os benefícios do projeto em que estava envolvido, conciliou uma apertada agenda de apresentações com a intensa rotina de treinamentos, desenvolveu atividades administrativas na Nasa enquanto lá esteve e adquiriu conhecimentos que jamais obteríamos sem a presença de um brasileiro no programa.
Jornalismo inspirador
Quando o acidente com o ônibus espacial parecia sugerir que todo o seu esforço havia sido em vão, ele mostrou-se à altura de integrar-se rapidamente ao programa espacial russo, aprendendo inclusive o idioma dos novos anfitriões. Não é verdade que sua ida ao espaço ficou comprometida apenas pelo atraso na entrega de componentes da Estação Espacial Internacional. Todo o cronograma da Nasa foi afetado após a explosão do Columbia e a última missão do Discovery revelou que os ônibus ainda necessitavam de reparos. Junto com Pontes, um americano também estará a bordo da ISS na missão russa, que a repórter chama de ‘carona’, mas que deveria ser chamado de cooperação internacional.
Para resumir, dizendo o mínimo: a matéria é leviana, opta por simplificar assuntos que a repórter mal compreende e esboça conjunturas que arranham a honra de um profissional da maior competência e seriedade, alguém sobre quem há tantas coisas admiráveis para falar. Tenho certeza de que, embora não lhe tenham perguntado, o coronel sabe por que se tornou astronauta. Será que a repórter de Veja se tornou jornalista para fazer este tipo de cronicazinha?
Quando os americanos enviaram os primeiros homens ao espaço, o grupo Time-Life investiu na história pessoal de cada indivíduo envolvido, cobriu com rigor aquela epopéia que mais tarde Tom Wolfe imortalizaria em sua obra-prima de new journalism — The Right Stuff. Muitos profissionais do programa espacial, cuja influência na vida moderna é absoluta, revelam que suas vocações foram despertadas por aquelas histórias. Talvez pela incapacidade de corresponder ao desafio, Veja parece querer perpetuar nossa predestinação exclusiva para o carnaval, para o esporte e para torcer pelo Oscar brasileiro ano após ano.
Uma força à redação
Nosso complexo de Pindorama, no que depender de alguns jornalistas, não tem data para acabar; e se deles também dependesse, o filme 2001 de Kubric não passaria da parte dos macacos.
Falando um pouco de História: apesar de todas as críticas, o programa Apollo, em cujo apogeu 5 missões levaram homens à Lua, teve sem dúvida impacto determinante na nossa capacidade de entender nossas potencialidades e de lembrar que a humanidade pode realizar qualquer coisa (coisas maiores do que escrever sobre espaço sem entender do assunto, eu diria para a jornalista). Creio que ninguém nega que se tivéssemos que escolher três feitos da raça humana ao longo de sua aventura, a conquista da Lua estaria em qualquer lista. Mas, no nosso país, mesmo que o coronel Pontes pisasse na Lua, fincasse lá uma bandeira do Brasil e descobrisse a origem do universo na volta de sua missão, ainda assim seu feito interessaria muito menos do que os resultados da viagem de um certo capitão a cenário bem mais próximo e menos inóspito: o capitão Cafu em sua ‘odisséia’ aos gramados da Alemanha.
PS 1: Na mesma revista, matéria sobre o ‘Zepelim do Futuro’ nos informa que o dirigível voará a uma velocidade ‘relativamente baixa, o que reduz a turbulência’, embora até as pedras saibam que a turbulência tem menos a ver com a velocidade e mais com a altitude de cruzeiro (por isso começamos a voar sobre as nuvens no fim da década de 1940). Se Daniel Piza, um dos poucos jornalistas lúcidos que tenho tido o prazer de ler, recentemente foi alvo de duas edições de Veja por causa dos lapsos cometidos (e já redimidos) na sua biografia sobre Machado de Assis, a revista deveria pôr em quarentena as jornalistas Camila Pereira e Paula Neiva, só para começar.
PS 2: Para dar uma força à redação, tirado do Houaiss:
Aeronave
Acepções
substantivo feminino
Rubrica: termo aeronáutico.
qualquer aparelho capaz de se sustentar e se conduzir no ar e que tem como função transportar pessoas e/ou objetos
Obs.: cf. aeróstato, aeródino
Espaçonave
Acepções
substantivo feminino
m.q. nave espacial
Etimologia
1espaço + -nave; ver espac-
Locuções
n. espacial
Rubrica: astronáutica.
nave us. em viagens pelo cosmo; astronave, cosmonave
Vale informar: infelizmente, meu último nome é uma coincidência, não tenho nenhum grau de parentesco com o astronauta, apenas admiração.
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Especialista em segurança de vôo, São Paulo