A seção Sociedade da revista Época de 30/1/04 mais uma vez demonstra aquilo contra o que temos nos batido em relação à imprensa, quando analisa aspectos da saúde e da ciência. O jornalista deve saber interpretar dados e fornecer aos seus leitores informações para que possam realmente formar opinião sobre o assunto de forma abalizada, e não ser mero propagandista de enganos e falácias.
A reportagem fala do município de Maranguape, no Ceará, a 30 quilômetros de Fortaleza. Situa a cidade como de baixa escolaridade e de baixa situação social, e diz que sua população buscava a solução de seus problemas em métodos primitivos, com as benzedeiras. Tinha assim um alto índice de mortalidade infantil por diarréia na região, que envergonhava os habitantes – apesar da ferrenha fé nas milagreiras. Os números demonstravam o óbvio: a fé leva para a sepultura, apenas dá mais resignação. Depois de pesquisa realizada pelos agentes do Programa Saúde da Família (PSF), resolveram incorporar as curandeiras ao sistema, não porque contassem com algum efeito curativo, que os números demonstram claramente que não tinham, mas porque, doutrinando as senhoras, elas poderiam distribuir à população a solução médico-científica – a única que faz realmente diferença.
Ou seja, decidiram fazer com que pessoas sem instrução e alheias ao conhecimento técnico passassem a usar o soro caseiro. O resultado foi o esperado: queda na mortalidade infantil. Como os dados indicam, números parecidos aos do Primeiro Mundo, que não usa benzeduras há alguns séculos, e sim os meios de higiene e da medicina atual.
Abuso de inverdades
O que faz a partir disso nossa repórter? Passa a criar uma mística inexistente, colocando por terra o real escopo da experiência. Este método já foi seguido em outras regiões, que capacitaram parteiras tradicionais para que aprendessem técnicas de higiene, esterilização e diagnóstico e as orientaram a encaminhar as dificuldades para as maternidades mais próximas.
O perigo no exemplo de Maranguape é que outras dificuldades de saúde passem a ser tratadas pelas curandeiras.
Não se pode fazer apologia de soluções mágicas e ineficazes, é um retrocesso diante dos valores da educação, da cultura e da higiene, como demonstraram os índices de Maranguape. Se o folclore da rezadeira pode ser interessante para alguns, seus resultados são trágicos. O entusiasmo da jornalista atinge o ápice do exagero quando mistifica a possibilidade de que nos Estados Unidos, onde nem a homeopatia é reconhecida, as faculdades de Medicina incorporem as terapêuticas da fé, da cura e da espiritualidade nos currículos.
Não se pode abusar assim da inverdade, em assunto de tanta responsabilidade, para tentar convencer o leitor de seu gostos pessoais. Para um antropólogo a fé pode curar, mas o médico deve agir com responsabilidade. Para o jornalista, o exemplo de Maranguape mostra apenas que fé só tem prestígio se associada ao conhecimento científico.
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(*) Médico