Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Especulação catastrófica não ajuda

A imprensa eventualmente aumenta os fatos desmesuradamente. Por exemplo, em 1986, quando passou pela Terra o Cometa Halley, a mídia previra, como o grande acontecimento do século 20, a sua aparição, que iluminaria a noite e ocuparia um terço do céu! Como não era uma coisa a que as pessoas assistiam todo dia, lá foi todo mundo comprar suas lunetas para ver o corpo celeste em todo o seu esplendor. Foi um completo fiasco. O cometa passou tão longe (como esperado) que não teve nenhuma relação com o prometido. Em todo o caso, a população não foi assustada pelo fenômeno. No entanto, os fatos corretos estavam à disposição dos jornalistas, com pesquisadores sérios.


Nos fins dos anos 1980 se previa uma volta da cólera, que iniciara na Índia, país onde a doença é endêmica. Essa pandemia atingiu o continente sul-americano pelo litoral do Peru, em janeiro de 1991. Tentando tirar o medo das pessoas que, por tradição, se alimentavam de peixe nesse país, o ministro peruano da Saúde tinha ido parar no hospital devido a um peixe cru comido ao vivo na frente das câmaras do principal telejornal peruano. Um final do tipo aqui se faz, aqui se paga.


Muito se especulou e se previa uma epidemia com muitas mortes devido aos baixos índices sanitários igualmente no nosso país, onde fez a primeira vítima na cidade de Tabatinga, Amazonas, em abril de 1991, três meses após invadir a América do Sul. Nos oito anos decorridos desde a chegada da doença ao Brasil, houve um número relativamente reduzido de casos, quase todos entre 1993 e 1994, muitos deles em pacientes contaminados no Norte ou no Nordeste. A imprensa teve papel fundamental, orientando e educando a população sobre as medidas preventivas. Mas da esperada grande epidemia, felizmente, pouco se viu!


Pânico e sofrimento


Em 14 de outubro de 1994 foi noticiado um surto de ebola no Gabão: 49 pessoas foram infectadas pelo vírus, 90% delas morrendo em menos de 10 horas.A epidemia de febre hemorrágica causada pelo ebola repetiu-se em 1996 no Zaire. Desde que surgiu, mais de 1.100 casos foram notificados, com 800 mortes. Talvez hoje as pessoas nem mesmo se lembrem do que era, pois ficou restrita a pequena região do território africano. Em 1999 o mundo assistiu à epidemia de gripe européia, que assustou o Hemisfério Norte. Leitos hospitalares foram escassos devido ao número assustador de pacientes, acarretando a morte principalmente de crianças e idosos, pela fragilidade e a deficiência imunológica. Mais uma vez, nenhum caso por aqui de ‘gripe européia’.


Em 12 de março de 2003 a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu alerta global sobre a pneumonia atípica, que denominou Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars, do inglês Severe Acute Respiratory Syndrome). Em 11 de fevereiro de 2003, a OMS foi notificada sobre a ocorrência na província de Guangdong (China), desde 16 de novembro de 2002, de 305 casos de pneumonia atípica grave, 105 dos quais em profissionais da área da saúde. A OMS passou a recomendar que as pessoas evitassem viagens às áreas de epidemia. A letalidade média da Síndrome Respiratória Aguda Grave, que depende de fatores como idade, presença de doenças associadas e recursos disponíveis para tratamento, foi estimada em cerca de 15%. Passado este primeiro susto, os casos começaram a desaparecer e a epidemia global não ocorreu.


Agora a imprensa divulga como certa e assustadora a epidemia global da chamada gripe aviária. Além de ser uma inverdade, está levando o pânico às pessoas, que têm deixado de comer aves, como se a transmissão fosse por esta via, e causando prejuízo à indústria de aves no mundo todo. O pânico provoca sofrimento por antecipação de algo que pode simplesmente não ocorrer, mas deixará prejuízos econômicos sérios e diversos casos de falência e destruição na indústria de alimentos. Os casos de morte que ocorreram até agora foram de pessoas que tinham contato muito próximo com as aves e não usavam meios de proteção. Não há casos de transmissão de pessoas a pessoas e nenhum caso de quem se alimentou de aves cozidas ou seus produtos industrializados.


Informação é a chave


A vigilância global que as autoridades estão fazendo não deve levar as pessoas ao pânico, pois se trata apenas de uma vigilância sanitária para detectar a evolução do vírus entre as aves. Por sinal, impossível de deter: seria uma tragédia se as autoridades exterminassem a vida natural no planeta para evitar que os vírus não se difundam pelo mundo. Mas, embora as epidemias de gripe possam se originar nas aves e passar a suínos e humanos, isto não é uma certeza.


Os milhões de aves mortas até agora morreram pelas mãos do homem, tentando impedir a transmissão do vírus. A estratégia de combate tem sido o sacrifício em massa das aves. A gripe em si não provocaria tantas mortes. Sendo um recurso alimentar importante no mundo, essa estratégia está levando à fome e à perda de recursos importantes. A indústria de aves deverá sofrer prejuízos enormes devido à histeria induzida pela mídia, que promete ao mundo uma nova ‘gripe espanhola’.


Manchetes afirmando que a ONU prevê uma tragédia global não ajudam. Se realmente vier a ocorrer algo assim, as pessoas deverão enfrentar, e entrar em pânico de nada adianta. O que as pessoas precisam é de informações de como enfrentar a epidemia quando e se vier a ocorrer – sem especulações catastróficas. As autoridades sanitárias devem tomar medidas para monitorar o alastramento, assim como promover ações estratégicas para enfrentar o pior. Mas isso não significa que a epidemia ocorrerá. Não é a primeira vez que se investe em pesquisa nesta área sem que se concretizem as tragédias anunciadas, como evidenciaram os exemplos acima.

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Médico, Porto Alegre