A julgar pelas capas quase iguais das edições de abril das revistas
Superinteressante e Galileu, alguma coisa de importante deve ter
acontecido recentemente no mundo da ciência. As manchetes das revistas
concorrentes são idênticas: ‘A ciência da felicidade’ na
Superinteressante, da Editora Abril, e ‘A ciência de ser feliz’, na
Galileu, da Editora Globo.
Tirando a coincidência das capas, as matérias das duas revistas são bem
diferentes.
Não há, nos dois casos, o que se chama gancho no jargão jornalístico.
Nenhuma descoberta científica, nenhum evento comum que justifique a coincidência
das capas. ‘Ao longo dos últimos anos psicólogos e neurologistas vêm fazendo
importantes descobertas sobre o que é e como funciona nossa felicidade. E as
idéias que vêm surgindo corroboram pesquisas anteriores e acrescentam novas
descobertas’, enrola a revista Galileu na abertura de sua matéria.
‘Esse assunto sempre foi desprezado pelos cientistas. Mas na última década,
um número cada vez maior deles, alguns influenciados pelas idéias de religiosos
e filósofos, tem se esforçado para decifrar os segredos da felicidade’, embrulha
a abertura da matéria da Superinteressante.
As duas matérias se apóiam na verdade em livros, alguns de 1999. Poderiam ter
sido feitas em qualquer época. Por que justamente agora as duas revistas desovam
o assunto?
Qualquer que seja a razão, a leitura das duas revistas mostra que não há
apenas coincidência. Os dois textos convergem para o estilo comum e vitorioso
comercialmente dos livros de auto-ajuda.
A receita é relativamente simples. Primeiro pegue um especialista para
resolver as coisas por partes. Se a felicidade é um estado subjetivo difícil de
definir, talvez ele possa ser explicado como uma mistura de coisas mais
familiares. A Superinteressante elegeu a felicidade como a soma de
prazer, engajamento e significado.
Sem liturgias
Já a revista Galileu é mais pródiga nos componentes da somatória da
felicidade: auto-estima, autonomia, competência e relações pessoais. Quer dizer,
a mistura é arbitrária, mas dá ao leitor a sensação de estar entendendo uma
relação de partes com um todo.
Nenhuma das duas revistas qualifica a importância e a credibilidade acadêmica
das pesquisas citadas – o mínimo de se esperar de artigos que se referem ao
ponto de vista da ciência sobre o assunto. Na verdade nenhum dos dois artigos se
apóia em descobertas científicas, mas sim num amontoado de dados estatísticos
mais para o empírico do que para uma armação coerente com um fundo teórico.
O único ponto comum dos dois artigos é um trabalho feito em 1996 pelo
psicólogo David Lykken, da Universidade de Minnesota. Pesquisando 4 mil pares de
gêmeos idênticos, Lykken concluiu que a felicidade tem um componente genético
predominante. Ironicamente, esse único ponto comum solapa a promessa de capa das
duas revistas em dar ao leitor receitas práticas para ser feliz.
Para ser o ponto de vista científico sobre a felicidade, os artigos deveriam
cumprir algumas das liturgias do chamado método científico. Se os artigos
diferem tanto em suas fontes é sinal de que não há um consenso na comunidade
científica. Nenhum dos dois artigos se refere a alguma descoberta ou trabalho
seminal. Quer dizer, em papers que além de passarem pela peer
review (revisão dos pares) têm também altos índices de citação em trabalhos
posteriores.
Outra pauta
Análises estatísticas do grau de felicidade declarada por grupos de pessoas
em situações diversas (solteiros, casados, solitários, gregários, ganhadores de
prêmios de loteria etc.) têm valor científico limitado, porque se apóiam na
avaliação subjetiva dos entrevistados.
Mas são informações valiosas no arsenal da auto-ajuda. Sendo meio vagas e
fluidas, acabam servindo positivamente para todo mundo como no caso dos
aconselhamentos astrológicos.
Mas nenhum dos dois artigos pode ser considerado baseado em descobertas
científicas como prometem as chamadas de capa. Se bem que o artigo da revista
Galileu tenha atravessado no meio do texto alguns parágrafos sobre o
papel dos neurotransmissores na sensação de bem-estar e felicidade.
Não é mais segredo nem novidade que os psiquiatras e neurologistas – e até os
clínicos gerais – já tenham resolvido como certeza científica que felicidade e
bem-estar é o contrário da depressão, estado para o qual podem receitar, com
razoáveis chances de sucesso, antidepressivos tipo Prozac.
Mas isso já seria outra pauta, é claro. Afinal nenhum infeliz vai poder se
auto-ajudar ou se automedicar comprando na farmácia drogas que exigem receita
médica.
******
Jornalista