Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Frieza da mídia e os contemporâneos de Plutão

Quase oito décadas depois de ter sido descoberto pelo astrônomo norte-americano Clyde Tombaugh (1906-1997), em 18 de fevereiro de 1930, como um ponto de luz enfraquecido entre as estrelas, Plutão, até a quarta-feira (23/8) o nono planeta do Sistema Solar, voltou literalmente às manchetes da mídia. Agora não mais na condição de planeta, mas como um mundo decaído, um planeta-anão, confundindo-se com outros corpos que orbitam as bordas do Sistema Solar, numa região chamada de Cinturão Kuiper.

Há certa frieza na abordagem jornalística, combinada a alguma dose de ironia e provocação, especialmente envolvendo a astrologia e os astrólogos. Plutão teria sido vítima de suas próprias (‘pesadas’) vibrações? O que muda no cotidiano de cada um de nós com o rebaixamento de Plutão? Os astrólogos asseguram que tudo permanece como antes, mas talvez estejam equivocados. A influência, em cada um de nós, certamente se manifesta de forma mais sutil, como uma espécie de solapamento da realidade.

Desde a escola básica tivemos em conta que Plutão orbitava as profundezas do céu. A decisão da assembléia da International Astronomical Union (IAU) de rebaixá-lo à condição de planeta-anão, de alguma maneira produz em cada um de nós a sensação de descontinuidade e desestabilidade. Nem mesmo um mundo gelado, distante e discreto como Plutão está imune aos acontecimentos apressados e às quedas-de-braço que se manifestam na superfície da Terra. Dormimos considerando Plutão um planeta e acordamos com a constatação de que não é mais.

Os livros escolares deverão ser parcialmente reescritos (aumentando os lucros das editoras que atuam nesta área), as pessoas terão que pensar duas vezes antes de se referir ao número de planetas que formam o Sistema Solar. E mais que isto: a confusão que já não era pouca em torno de assuntos como este fica ainda maior. Na procura das abordagens mais exóticas, os jornais às vezes extrapolam.

A Folha de S.Paulo diz em um texto de abertura na edição de sexta-feira (25/8, pág. A20) que ‘Plutão é um estranho no ninho desde que foi descoberto e foi mantido como planeta por motivos históricos e lobby americano’ por ter sido ‘o único planeta descoberto por um pesquisador dos EUA’, segundo avaliação de um astrônomo ouvido pelo jornal. Na verdade, a identificação de Plutão por Tombaugh está longe de um ato isolado e, se não for devidamente contextualizada, leva a raciocínios imediatos e simplificados.

Desvendamento do céu

A identificação de Plutão por comparação de pares de placas fotográficas, utilizando um equipamento rudimentar já à época, produziu mais resultados que têm sido freqüentemente considerados. Um deles foi a refutação por parte de Tombaugh – à época e mesmo depois disso portador de um simples título de mestrado – de que as galáxias estão uniformemente distribuídas no espaço, afirmação que havia sido feita por ninguém menos que o altivo e um tanto arrogante Edwin P. Hubble (1889-1953).

As galáxias – escreveu Tombaugh num livro que resultou de sua experiência de localizar Plutão – estão majoritariamente reunidas em aglomerados, como é o caso de nossa própria galáxia, a Via Láctea, que integra o chamado Grupo Local de galáxias. Os aglomerados, por sua vez, reúnem-se em torno de super-aglomerados que, no nosso caso, é o Super Aglomerado de Virgem, concentrando pelo menos 10 mil galáxias.

Esquadrinhando cada grau do céu com fotos que eram repetidas com alguns dias de diferença para revelar a presença de um possível planeta – o ‘Planeta X’ como se dizia à época – ,Tombaugh identificou nada menos que 30 mil galáxias, 20 vezes o número que se considerava, ainda que uma insignificância para os números atuais. Assim, o desvendamento do céu possibilitado pelo trabalho árduo desenvolvido por Clyde Tombaugh na busca por Plutão não pode nem deve ser desconsiderado em benefício de uma interpretação pontual, como se uma única história estivesse em desenvolvimento.

Uma longa história

Novos cometas e asteróides foram identificados a partir deste esquadrinhamento do céu feito por Tombaugh, o que não tem o mesmo peso da interpretação de galáxias como animais cósmicos sociais, reunidos em grupos, em vez de permanecerem isolados. Mas não deixam de ser resultados que, ao menos, refutam a interpretação pontual de certa unicidade histórica.

Talvez mais interessante ainda seja considerar a própria história de Tombaugh, um garoto de fazenda que descobriu o céu, construiu seus próprios telescópios e pela iniciativa de enviar seus desenhos ao Observatório Lowell, no Arizona, tenha recebido um convite do astrônomo Vesto Slipher (1875-1969) para fazer o que fez.

O Observatório Lowell tem uma longa história na astronomia, especialmente em torno de Marte. Percival Lowell (1855-1916), seu criador, sempre acreditou na visão de Marte ocupado por uma raça inteligente e se hoje isso parece pouco mais que bobagem, a reconsideração se deve a uma série de descobertas, acompanhadas de checagens locais, com o emprego de naves como as gêmeas Viking, que desceram no Planeta Vermelho em meado dos anos 1970.

‘Estou envergonhado’

Também Vesto Slipher tem uma trajetória interessante, pois ele foi o primeiro a referir-se ao que ficou conhecido como ‘desvio para o vermelho’ no espectro de uma galáxia para indicar que cada uma delas afasta-se em relação às demais pelo efeito de expansão do Universo, nos últimos anos relacionado à presença de algo tão estranho como a energia escura (energia repulsiva, ao contrário da gravidade, que é atrativa).

Albert Einstein disse mais de uma vez que nada é estático no Universo. Certamente a detecção de objetos do chamado Cinturão Kuiper, de que Plutão é parte, em algum momento mudaria a concepção do que é na verdade o Sistema Solar. O que a restrita assembléia da UAI fez em Praga foi atualizar o conceito do que deve ser um planeta, e essa foi uma das razões para a queda de Plutão. O problema é que, mesmo em termos de nomenclatura planetária, talvez uma próxima assembléia da UAI (em 2009 ela está prevista para ocorrer no Rio de Janeiro) tenha que fazer readaptações. A busca de planetas extra-solares, como trará a edição de outubro da revista Astronomy Brasil, revela a identificação de planetas sem sóis, mundos não ligados gravitacionalmente a uma estrela ou sistema estelar errando solitários pela Galáxia.

Essa classificação não bate com as definições estabelecidas na assembléia da UAI, de que participaram apenas 5% dos 9 mil associados. Alan Stern, do Southwestern Research Center, em Boulder, no Colorado, chefe da missão News Horizons que segue para Plutão, fez duras críticas à decisão da IAU, que a Folha reproduziu na edição de sábado (26/8, pág. A21). Disse: ‘A resolução da IAU que define planetas é horrível e como cientista estou envergonhado’.

O mais luminoso

Stern tem razão. Se for levada em conta a definição de limpeza da vizinhança da órbita para a definição de um planeta, a Terra também não se enquadraria nessas exigências. Limpeza de órbita, neste caso, está relacionada ao fim do processo de acreção, o aglutinamento de matéria responsável pela formação do planeta. A Terra ainda tem em sua órbita corpos de pequenas dimensões, o que significa que não completou a ‘limpeza’ referida pelos defensores do novo modelo do que seja um planeta. Stern acha que ainda pode haver ‘uma reviravolta’ ao dizer que ‘há uma petição de cientistas planetários que está ganhando força’, em referência a uma revisão dos conceitos adotados.

Além disso, há dúvidas, por exemplo, sobre o Sol ser de fato uma estrela solitária, sem um companheiro ‘morto’ ou ‘escuro’ que já foi batizado de Nêmesis, a estrela da morte, por perturbações na Nuvem Oort, berçário de cometas que envolvem o Sistema Solar a coisa de 1,5 ano-luz de distância do Sol. Assim, a reconsideração do que é um planeta parece uma medida mais provisória do que definitiva na consideração do que é ou possa ser o Sistema Solar. A baixa representatividade da assembléia da UAI pode, ao menos em teoria, abrir as portas para a ‘reviravolta’ a que se refere Stern.

Como se vê, há mais de uma questão capaz de pôr em xeque o rebaixamento de Plutão, ao menos com base nos critérios adotados. Uma delas é que Plutão pode não ser – e de fato não é – o mundo mais maciço das bordas do Sistema Solar. Mas é ao menos o mais luminoso, como considera David Levy, biógrafo de Clyde Tombaugh e um dos que se opuseram à reclassificação.

Alguma coisa mudou

Na edição do sábado (26) a Folha retomou a suspeita de que a defesa de Plutão como planeta se dá em função de ser o único mundo detectado por um norte-americano. Contraditoriamente, no entanto, destacou uma ‘festa uruguaia’. Explica-se: Julio Fernández e Gonzalo Tancredi, dois astrônomos uruguaios, teriam se rebelado, em Praga, contra a idéia da adoção de 12 planetas para o Sistema Solar e estariam na base da decisão do rebaixamento de Plutão, obtendo o que classificaram como ‘um gol uruguaio’. O público pode escolher entre uma suposta pretensão norte-americana e o ‘gol’ uruguaio que a Folha não questiona.

Alguém pode argumentar, com base em certa objetividade, que já era hora de botar ordem na casa e ordenar de vez o que seja um planeta. Se este for o caso, será necessário resolver o nome das estrelas, reconhecidas pelas mais diferentes línguas, nas mais diferentes épocas, pelos nomes mais distintos. Apenas Sirius, a mais brilhante do céu, tem 54 nomes.

Os jornais escreveram manchetes mais exóticas, os telejornais tiveram uma história palatável de fechamento, antes do boa-noite aos telespectadores, e as editoras de livros didáticos aplaudiram a reclassificação que lhes renderá rios de dinheiro. Mas cada um de nós que conviveu com Plutão na condição de planeta por todos esses anos sente que alguma coisa mudou. Como Plutão, que não é mais um planeta, também não somos os mesmos. Somos gente da época em que Plutão era planeta e em pouco tempo isso parecerá muito tempo.

******

Jornalista