Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Governo e empreiteiras com a bênção da mídia

As expressões rivalidade (rivalitas) e rivais (rivalis) derivam do latim rivus, que quer dizer rio. Os rivais são os habitantes das margens de um mesmo rio e a rivalidade é a natureza das relações entre os rivais. São Francisco – que dá seu nome ao rio que hoje desperta a rivalidade entre brasileiros – é o santo da ecologia e da paz, e o Rio São Francisco sempre foi conhecido como o rio da integração ou da união nacional.

A transposição do Rio São Francisco é obra de 20 bilhões de reais, é dinheiro para empreiteira nenhuma botar defeito, na verdade é um pacote de obras que mata a sede de todas as grandes empreiteiras nacionais. Mas a grande imprensa vem ignorando, completamente, a discussão ambiental sobre o projeto. Apenas destaca que os ambientalistas estão boicotando as audiências públicas, sem mais comentários. Ao apresentar os problemas ambientais do projeto desta forma está, cuidadosamente, evitando entrar nos aspectos mais centrais do projeto.

Como a principal justificativa para a transposição do Rio São Francisco é política – e consiste numa prioridade em abastecer de água as populações mais pobres afetadas pelas secas –, era de se esperar que uma equipe de peso na área socioambiental fosse contratada para analisar o empreendimento e fazer o estudo de impacto ambiental. Mas não foi assim. O coordenador-geral do EIA-Rima é engenheiro, a coordenadora do meio físico é engenheira, o coordenador do meio socioeconômico é engenheiro, e só o coordenador do meio biótico não é engenheiro, é biólogo; mas a análise econômica foi feita por um engenheiro e o único economista da equipe foi usado para tratar de assuntos do campo da sociologia e da geografia.

Peça de propaganda

O mais surpreendente, no entanto, é a ausência de um advogado na equipe. Isto é especialmente grave, e deveria ensejar a impugnação do EIA-Rima, por falta de substância técnica para subsidiar o processo de licenciamento, pois o Rio São Francisco atravessa diversos estados e municípios, nos quais existem centenas de leis de proteção que estão sendo simplesmente ignoradas. Mas também há leis federais extremamente relevantes para o exame do assunto que estão sendo deixadas de lado. Pois bem, o estudo não fez um levantamento destas leis.

Sendo assim, como o empreendimento pode obter uma licença ambiental, se o conjunto de leis aplicáveis é desconhecido e não foi apresentado aos especialistas do Ibama pela peça técnica que deveria tratar da matéria até a exaustão?

Neste momento precisamos identificar que o silêncio da grande imprensa sobre os aspectos ambientais do projeto protege um grande interesse das empreiteiras, que é o de que as obras sejam realizadas com recursos do Tesouro, sem dinheiro de empréstimos internacionais. Estas obras, se fossem feitas com recursos internacionais, teriam suas licitações obrigatoriamente abertas à participação de empreiteiras estrangeiras. Sendo realizadas apenas com recursos do Tesouro, excluem a concorrência de empresas estrangeiras – ou seja, o resultado pode ser bem mais controlado. O que é notável, no caso, é que o principal argumento que os organismos internacionais usam para não participar deste projeto é, exatamente, a insuficiência técnica dos estudos ambientais realizados. De fato quem se dispuser a examinar o Rima do projeto, disponível no site do Ibama, poderá verificar que não se trata de um estudo técnico, como manda a lei, mas apenas de uma peça de propaganda (www.ibama.gov.br/licenciamento/rimas/rima27/rima.pdf).

Obra de engenharia

Outro aspecto importante é que o valor das terras rurais com água abundante é bem maior do que o de terras sem água. Embora isso seja fato público e notório, o governo não consegue explicar, no Rima, como pretende gerenciar a água transposta, de modo a evitar que ela seja consumida pelos proprietários dos imóveis ribeirinhos mais valorizados, em detrimento do uso e da disponibilização destas águas aos mais pobres, que seria o objetivo superior do projeto.

Estas falhas se tornam muito mais preocupantes quando nos damos conta de que hoje há milhares de poços e açudes no Nordeste que, apesar de terem sido construídos com dinheiro público, tiveram suas águas indevidamente privatizadas, e que em regiões pobres, muito próximas ao Rio São Francisco, os mais pobres não conseguem ter acesso a um sistema de abastecimento público com as águas do rio. Ora, se o governo pode, mas nunca conseguiu atender a demanda por uma distribuição justa onde já existe água, por que seria subitamente seria capaz de fazê-lo depois da transposição?

Se o projeto fosse efetivamente concebido para os pobres o governo seria capaz de colecionar diversos exemplos de projetos bem-sucedidos de garantia de acesso à água para as populações mais pobres, e o projeto seria apresentado com este alcance, detalharia todas as estratégias e táticas, todos os planos, projetos e programas que seriam desenvolvidos para garantir aos mais pobres o acesso à água. Mas não é assim. O projeto só se explica como obra de engenharia, que pressupõe que se a água for transposta e disponibilizada em regiões próximas aos pobres eles serão automaticamente abastecidos.

Sintomas reveladores

Mas levar o abastecimento até as populações mais pobres é uma questão de natureza política altamente relevante para a análise do projeto. A simples colocação da água – fisicamente – numa dada região não quer dizer que ela será distribuída com base em critérios socialmente justos, ou seja, a transposição, por si mesma, como obra de engenharia, não resolverá nenhum problema, a não ser o das empreiteiras.

Para atender às demandas sociais por água e justiça, a transposição deveria começar por um plano de uso socialmente justo das águas – e das terras beneficiadas pela distribuição das águas. Um plano que fosse democraticamente construído com base na apropriação de pelo menos uma parte razoável das águas e das terras pelos mais pobres, que o projeto diz que pretende beneficiar. Para que isso viesse a ocorrer seria necessário estabelecer garantias legais prévias, por um conjunto de leis e de intervenções realizadas com base na legislação, que viesse a sustentar com fatos e direitos claramente estabelecidos a transposição, fatos que fossem comprobatórios das boas intenções do governo. Sem a construção prévia deste arcabouço legal, eticamente amparado pela sociedade, com base numa discussão democrática, não existe nenhuma garantia legal razoável de que o dinheiro público reverterá, de fato, aos mais pobres.

Como se vê, a ausência de uma análise legal do empreendimento no Rima não é uma falha isolada, e também não foi casual que a abordagem e a análise dos aspectos socioeconômicos tenham sido feitas por engenheiros: são apenas sintomas reveladores de uma mentalidade típica dos anos 70, em que se imaginava um futuro socialmente justo construído apenas por burocratas e engenheiros, sem o concurso do Estado de Direito.

Tudo igual no sertão

Esta obra representa uma volta da sociedade brasileira ao passado, um passado em que o governo conduzia as coisas ao seu modo – e a imprensa se calava, não analisava os fatos, porque era ‘convencida’ de que o interesse nacional estava em jogo.

O governo Lula, que tanto admirava os grandes planos nacionalistas de desenvolvimento dos militares, está conduzindo este processo pelo figurino dos tempos do milagre econômico, de modo tão desastrado que está criando um fosso entre os estados, acirrando rivalidades regionais e provocando uma grande e definitiva ruptura do PT com a sociedade civil. O grande fato – não noticiado – é que a obra de transposição é a celebração da maior aliança já feita entre um governo e as empreiteiras nacionais desde a década de 70.

A existência ou não de água no Rio São Francisco em quantidade suficiente para a transposição é irrelevante. Se disponibilidade de água fosse, isoladamente, importante o Maranhão não seria o estado mais pobre do Brasil, e o Rio de Janeiro não seria um dos mais ricos.

O que é relevante e revelador neste projeto é a disposição do governo em atropelar a ordem legal para celebrar uma aliança com as grandes empreiteiras e implantar, com o decidido apoio da grande imprensa, de qualquer modo, um projeto que não tem consistência política ou jurídica para mudar nada no sertão nordestino, senão as moscas.

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Ecologista