Tempestades, sismos destruidores, incêndios, erupções vulcânicas e ameaça de pandemias. A máquina do mundo parece descontrolada, pauta para noticiários catastróficos por parte da mídia, aumentando a ansiedade das pessoas. Uma incursão pela história da ciência, no entanto, revela que as sociedades sempre estiveram ameaçadas por fenômenos naturais ou produzidos por interferência humana e, de alguma maneira, sempre houve um encaminhamento possível para enfrentar esses impasses. Esse desafio renovado integra o que Jacob Bronowski (1908-1974) chamou de ‘a ascensão do homem’.
As tempestades atribuídas ao efeito-estufa, com todo o prejuízo material e de vidas humanas, talvez sejam o melhor argumento para uma política de longo prazo visando o seqüestro de gases do aquecimento global na atmosfera.
Advertências, por uma série de razões, não costumam funcionar como prevenção a desastres, mesmo os altamente destruidores, especialmente se estiverem em jogo grandes interesses financeiros, como os que envolvem os combustíveis fósseis. Por isso mesmo, incêndios como os que afetaram recentemente Portugal e a Costa Oeste dos Estados Unidos, exatamente pelas perdas e ameaças que representam, podem atuar como a melhor maneira de se transformarem padrões usuais não mais aceitáveis.
Mundo de origem
Sismos e vulcanismos expressam a atividade geológica e estão na base da vida, num mundo como a Terra. Quando puderem ser previstos com segurança e antecedência deixarão de ser a ameaça que ainda representam em regiões onde são freqüentes, quase sempre potencializados pela pobreza e ausência de infra-estrutura indispensável. Certamente um raciocínio parecido pode ser utilizado em relação a ameaças como pandemias, neste momento associadas à gripe viária, pela ação do vírus H5N1.
Evidentemente que se trata de um desafio complexo e em escala mundial. Mas a tendência, a partir de meados do século passado, é que questões mais distintas sejam enfocadas em dimensão planetária. Como sociedade tecnológica, estamos concluindo o que muitos autores chamam de ‘processo de planetarização’, no qual a globalização é apenas parte de um todo, mais complexo e abrangente que a simples internacionalização de mercados.
Um processo de planetarização passa por um completo conhecimento físico de um mundo de origem, acompanhado de uma completa interação cultural, às vésperas do início de expansão por um sistema solar, numa possível civilização como a nossa. Há prós e contras num processo como este, o que também não chega a ser novidade histórica além de, certamente, incluir-se na abrangência proposta por Bronowski.
O temor dos especialistas
Um dos limitantes do noticiário envolvendo tanto a gripe aviária quanto os focos de febre aftosa que pipocaram nas últimas semanas no Centro-Oeste do Brasil é a preocupação com o impacto econômico como se, ao final, tudo pudesse ser reduzido a dinheiro. Os impactos econômicos não podem ser subestimados, evidentemente. Entre outras razões pela repercussão que produzem. Mas também não devem ser superestimados, pelas pressões imediatistas de segmentos interessados.
Há riscos humanos potencialmente envolvidos, especialmente no caso de pandemias. Mas, para que elas possam ser devidamente dimensionadas, certamente convém enfocá-los sob um ponto de vista histórico. Caso contrário podem sugerir apenas a idéia de catástrofe iminente e, com isso, gerar ondas devastadoras de medo e insegurança, com efeitos que não são dimensionados, mas não podem continuar ignorados.
O temor dos especialistas, no caso de uma pandemia iminente, é que o vírus Influenza A H5N1, que provoca a chamada gripe aviária, passe por mutações e resulte numa cepa facilmente transmissível de pessoa a pessoa, como os microorganismos que produzem a gripe comum. David Nabarro, recém-nomeado responsável pela coordenação do combate à gripes aviária e humana da Organização das Nações Unidas (ONU), foi acusado de alarmismo na semana passada ao advertir para o risco de morte de 150 milhões de pessoas em função de uma pandemia que pode manifestar-se ‘a qualquer momento’. A previsão de Nabarro, no entanto apenas corrobora a opinião de uma parcela significativa de virologistas que admitem a possibilidade de que um acidente dessas proporções possa manifestar-se.
Manutenção da vida
E a origem dessas previsões recua no tempo para época imprecisas, ainda que tenha sido muito freqüente na Idade Média. O vetor da destruição, neste último caso, foram os cometas. A idéia recorrente ao longo da Idade Média interpretou os cometas como fontes de destruição (guerra) e mortes. Ao menos as mortes podem fazer sentido na interpretação do cosmólogo inglês Fred Hoyle (1915-2001), para quem os cometas de fato podem abrigar formas de vida, entre elas os vírus e, em sua passagem pelas proximidades da Terra, contribuir para a eclosão de doenças.
Hoyle previu que o cometa Halley, por exemplo, deveria estar coberto por material orgânico, o que ficou comprovado em sua última passagem pelas proximidades do Sol, entre 1985-86. Material orgânico não significa necessariamente vida, mas aponta nesta direção. Em suas previsões, Hoyle atualizou as idéias do físico-químico e Prêmio Nobel sueco Svante August Arrhenius (1859-1927), criador da Panspermia, idéia de que a vida pulsa em todo o Universo e é transportada pela pressão de radiação das estrelas como sementes levadas pelo vento para germinar em ambientes apropriados.
Uma das esperanças nas previsões de Hoyle é que, independentemente do organismo destruidor que se espalhar pela Terra, nem todos cairão vítima dele. Haverá sempre, propôs, uma parcela de resistentes a esses ataques e isso é parte da complexa estratégia de manutenção da vida. Visões um tanto pragmáticas – em muitos casos puramente reducionistas – costumam considerar abordagens como as de Hoyle ‘pouco científicas’, como se houvesse uma linha clara e inconfundível delimitando o certo do errado, o que é ciência consistente de ciência inconsistente. Claro que este é um território inteiramente distinto daquele dominado pela pura falsificação – mas de certo pardo, como os gatos em noites sem a luz da Lua.
O impacto das galinhas-caipira
Os próprios vírus sugerem uma interpretação mais ampla para questões que, de outra forma, poderiam ser enquadradas num território confinado a quatro paredes. Vírus são formas localizadas nos limites entre a matéria viva e não viva e, além disso, suas estratégicas surpreendentes para acessar uma célula e aí se reproduzirem fazem deles instâncias mais próximas da ficção que da realidade convencional.
No caso da gripe aviária o enredo para uma boa trama parece ser mais promissor no universo da realidade, reforçando a idéia de que a ficção imita a realidade e não o contrário, como se costuma pensar. Aves migratórias, aparentemente tão inofensivas quanto o trinta-réis do Ártico, que anualmente se desloca entre as regiões polares, podem abrigar em seus pequenos corpos cargas ameaçadoras do H5N1. Não há, evidentemente, como detê-las.
Medidas preventivas para evitar a contaminação da avicultura local, no caso do Brasil, passam pela eliminação de galinhas-caipira, que costumam ser criadas soltas desde que os portugueses puseram os pés por aqui. A eliminação das galinhas-caipira, mesmo depois da superação da ameaça do H5N1, deixará impacto na cultura e alimentação tradicionais, o que evidencia a amplitude e a profundidade da planetarização, para a qual, além das aves migratórias (que sempre fizeram suas rotas anuais), o transporte rápido dos aviões ou as cargas crescentes dos navios têm contribuído para um enorme impacto nos mais diferentes ecossistemas.
O homem é único
Lastros de navios (grandes quantidades de água captadas em pontos de partida) descarregados em pontos de chegada têm produzido um impacto ainda longe de avaliado na introdução de espécies alienígenas nos mais diferentes ambientes naturais por todo o mundo. A avaliação desses riscos, o acompanhamento dos casos, as prevenções possíveis e o enfrentamento das ameaças serão sempre uma responsabilidade da ciência.
Daí a importância estratégica de a mídia sensibilizar a sociedade para as perspectivas da ciência. Em vez de simplesmente espalhar o terror, como se o fim dos tempos, no melhor estilo das pregações fundamentalistas, estivesse a ponto de manifestar-se como o Armagedon – o campo definitivo da batalha entre o bem e o mal.
Ou para retomarmos Bronowski, para quem ‘o homem é único não porque faça ciência, nem porque produza arte, mas porque ciência e arte são, igualmente, expressões da maravilhosa plasticidade da mente’.