O caderno ‘Cotidiano’ da edição de domingo (30/5) da Folha de S.Paulo traz a notícia de que o SUS vai encorajar o uso de homeopatia e outras tratamentos alternativos em sua rede, e complementa com dois outros textos – um elogiando os méritos dessa modalidade, outro dizendo que a homeopatia convive bem com a medicina tradicional.
Contudo, as coisas não são bem assim, e houve grave desatenção da Folha no aspecto referente a ouvir o ‘outro lado’, assim como em acreditar apenas nos entrevistados pró- homeopatia, não apurando ao menos como é essa situação no mundo, no ramo da ciência e da medicina em particular e sua validação científica.
O Brasil é o único país do mundo em que a homeopatia é oficialmente considerada especialidade médica: em 1980, o país contava com cerca de 300 médicos que usavam a homeopatia, e de algum modo, até hoje, não se sabe como, convenceram o Conselho Federal de Medicina a torná-la especialidade oficial, pela Resolução 1.000/80. De lá para cá se multiplicaram os cursos de formação de homeopatas e sociedades ligados ao assunto, e temos hoje uma média de 15 mil a 16 mil médicos homeopatas inscritos formalmente como tal. Nos demais países do mundo a homeopatia pode ser exercida, mas não com o privilégio de ser área médica.
Por exemplo, no Canadá, desde a década de 1950 que ninguém mais fez homeopatia. Contudo, há alguns anos inaugurou-se uma Faculdade de Homeopatia naquele país – ela forma homeopatas, mas eles não podem clinicar ou receitar medicamentos tradicionais, tampouco seu tratamento é ressarcido aos pacientes pelo governo, como na medicina convencional. É verdade que em várias universidades e hospitais dos EUA e da Europa foram criados centros de pesquisa em Medicina Alternativa e Complementar, mas isso inclui desde o uso de homeopatia e acupuntura (também legalizada no Brasil) até o de maconha e heroína para pacientes terminais de câncer ou Aids.
A expressão ‘complementar’, acredito, já explica tudo, e é um direito do paciente procurar outras formas de alívio aos seus agravos de saúde, desde que não abandone o tratamento convencional.
Validação científica
O mundo médico de hoje, com a incontável quantidade de publicações científicas, não admite mais posições dogmáticas ou a experiência pessoal do médico: utilizam-se sofisticadas técnicas de análise matemática dos trabalhos publicados, a chamada meta-análise, que convalida qualquer procedimento médico ou, ao contrário, prova que alguma coisa não funciona. Essa é a chamada Medicina Baseada em Evidências. A homeopatia, por exemplo, nunca chegou a conseguir validação científica, assim como muitas outras técnicas ditas alternativas, daí o exemplo de quase todo o mundo ser certeiro: pode-se praticá-la, mas não é um ato médico.
Cá no Brasil oficialmente é – e até o SUS quer utilizar essa metodologia não-aceita no restante do mundo. Algumas de nossas mais importantes universidades também estudam homeopatia, acupuntura e medicina tradicional chinesa, mas isso não garante passaporte para seu uso generalizado, e sim uma garantia de pesquisa séria para que eventualmente se obtenha o devido aval que todas as demais áreas da medicina têm que obter.
A Folha se precipitou ao não ouvir pessoas que não concordam com a utilidade da homeopatia, furando seu próprio Manual da Redação. E eu prefiro ficar com a opinião de Jerome Kessler, que foi por vários anos editorialista de The New England Journal of Medicine, talvez a mais prestigiada revista médica de todo o mundo, quando ele escreve, em relação a esse tema, que não existe medicina tradicional ou ortodoxa e medicina alternativa: existe uma medicina apenas. Um método qualquer, por mais esdrúxulo em princípio que possa parecer, se validado cientificamente passa a fazer parte da medicina como área única, não existindo as ‘alternativas’.
Lamentável o comportamento da Folha em assunto de tamanha polêmica e envergadura, que deixa apenas o Brasil com a homeopatia oficializada (com chance de ser ridicularizado no futuro), ainda mais com o aval do próprio governo.
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Médico, mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo, ex-conselheiro do Conselho Regional de Medicina de São Paulo