Pode-se até compreender que as eleições municipais no Brasil ocupem mais espaço do que notícias internacionais. Contudo, temos as eleições para presidente dos EUA ou, como muitos dizem, ‘presidente do mundo’. E apenas a Folha de S.Paulo deu destaque mediano a algo estrondosamente importante: a morte de mais de 100 mil civis, a maioria mulheres e crianças, no Iraque.
Caso fosse apenas notícia de agências especializadas ou jornais comuns, não haveria muito o que criticar. Acontece que foi um trabalho científico, realizado com todos os rigores estatísticos, por pesquisadores da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, de Baltimore, EUA, umas das mais conceituadas de todo o mundo, publicado na rigorosa e importante revista médica inglesa The Lancet. Como se não bastasse, o artigo foi elogiado em editorial e reproduzido e comentado, com elogios, nas não menos importantes publicações científicas Nature e Science.
Os autores utilizaram métodos de amostragem e chegaram a esse número aproximado, mas fazem uma ressalva: uma parte das mortes pode ter sido devida à campanha mortífera de Saddam Hussein contra os curdos, na pré-invasão do Iraque. Mesmo assim, a maioria dos casos apontados foi na cidade de Fallujah, sabidamente um alvo importante de ataque das forças anglo-americanas.
O que se pode inferir é que mesmo as revistas inglesas – do país aliado dos EUA – e a Science, órgão oficial da respeitadíssima Associação Americana para o Avanço da Ciência, deram o devido destaque.
De interesse global
Também vale anotar que os autores fizeram questão de que o artigo fosse publicado perto da eleição americana: segundo eles, não para favorecer candidatos, mas para que, seja quem for o eleito, tome o máximo cuidado humanitário nas ações militares no Iraque. Se é verdade, nunca o saberemos, mas a utilidade de tais artigos é mais do que evidente.
Perguntam os autores do artigo original na Lancet: de que vale uma ação militar contra um regime ditatorial se não se contam e selecionam as vítimas? É uma questão de direitos humanos e individuais mais que pertinente.
A despeito de nossas questões políticas locais, portanto, a mídia nativa deveria ter dado amplo destaque a esse assunto: é de interesse global, pode caracterizar genocídio, influenciar os candidatos à presidência dos Estados Unidos e ainda ilustra como a comunidade científica está observando, com os métodos apropriados, o que se faz num país invadido – no qual soldados americanos cada vez mais também são vítimas e até se recusam a obedecer ordens.
******
Médico, mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo, ex-integrante do Conselho Regional de Medicina-SP e co-fundador da Seção Brasileira da Anistia Internacional