Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo e sociedade do conhecimento

Perto de 300 jornalistas, entre estudantes e profissionais, se reuniram de domingo a quarta-feira (24 a 27/10), em Salvador, no 8º Congresso Brasileiro de Jornalismo Científico, organizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC), para discutir o tema ‘JC e educação para a ciência’.

Há boas e não tão boas razões em torno do jornalismo científico, ou jornalismo de ciência como preferem alguns. Melhor começar pelo lado não tão bom. As boas notícias, vindo por último, estimulam o ânimo e dão, de alguma maneira, a sensação de que é sempre possível avançar, apesar das dificuldades.

O jornalismo científico, a exemplo do jornalismo como um todo, atravessa uma passagem estreita. Após um boom recente, em parte ligado a algum modismo, mas também reflexo de mudanças estruturais na sociedade brasileira com o desdobramento do processo de globalização, há um certo pessimismo. Os jornais diários não ampliaram suas seções de ciência como um todo. Em lugar disso parece haver retração.

As empresas jornalísticas, a exemplo do Estado de S.Paulo, preferem reformas gráficas superficiais a se envolverem com um compromisso de conteúdo – o que implica, necessariamente, um tratamento mais consistente para o noticiário científico, entre outras decisões.

No antijornalismo mais convencional, a repercussão, O Estado de S.Paulo só registrou elogios para sua reforma gráfica que o deixou com a cara do Valor Econômico. O volume de informação foi diminuído, as imagens ampliadas. Em tempos mais lúcidos choveriam críticas. Nessa época de desinformação e oportunismo houve aprovação tácita.

Certamente o Estado, neste caso só um exemplo do que ocorre no resto da imprensa, ganharia importância com a criação de um caderno de ciência. Os que decidem a sorte nas redações, no entanto, são mentalidades de uma época passada. Continuam aferrados à idéia de que o interessa são os fatos de economia e política, como se estes não fossem marcados por atos da ciência.

Fatos combinados

O produto mais sofisticado dos mercados internacionais nessa época de sociedade do conhecimento é a informação, justamente sob a forma de conhecimento, maneira promissora de operar as realidades tanto naturais quanto sociais. Em relação aos fatos políticos, uma certa dose de discernimento certamente faz falta para compreensão de nossa história, atravessada por 350 anos de escravidão – o que levou Joaquim Nabuco a prever que séculos de trabalho árduo seriam necessários para a remoção de entulho ideológico.

O posicionamento da imprensa paulista em relação às eleições municipais é exemplo disso. Os jornais podem e certamente devem tomar partido. Mas anunciar essa posição em editoriais e não distorcer os fatos com truques menores, como dar a página par ao desafeto e a ímpar ao protegido. Este exemplo nos leva ao jornalismo interpretativo, e o jornalismo interpretativo ao jornalismo científico.

Jornalismo interpretativo é a contextualização histórica dos acontecimentos. Uma justaposição com o propósito de fornecer inteligibilidade possível ao longo de um processo – neste caso o processo histórico. Jornalismo interpretativo pode ser considerado uma forma de ‘cientifização’ do jornalismo como um ramo da história ou das ciências do comportamento. Enquanto conexão com a história, o jornalismo seria o que o historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) chamou de ‘movimento da superfície do oceano’, reflexo da mudança do vento e de outras condições meteorológicas inconstantes, em oposição à história lastreada pelos movimentos lentos das águas profundas.

Não por acaso, Huizinga, um humanista, espécie em risco de extinção em meio a uma intelectualidade plástica, centrou suas preocupações na necessidade de se repensar nossas noções mais arraigadas, em particular a que se relaciona à história e àquilo que aprendemos a chamar de cultura.

A ‘cientifização’ proposta pelo jornalismo interpretativo (certamente para horror de alguns que veriam aqui ameaça à liberdade de imprensa) não deve ser compreendida como subordinação a uma ciência reducionista, positivista. O jornalismo interpretativo deve combinar os fatos e oferecer relatos comprometidos com uma inteligibilidade possível, a exemplo de uma hipótese científica, de onde resulte uma ‘estética’ – para tirar partido de uma justificativa feita pelo físico-matemático Paul Dirac, o descobridor teórico da antimatéria.

Cínicos empinariam o nariz para uma possibilidade como esta, sem considerar que o jornalismo opinativo, apenas para dar um contraponto, numa sociedade educada, deve ser abandonado como atentado à inteligência.

O que o observador A ou B pensam pouco importa. O que interessa é a combinação dos fatos capazes de explicar um determinado fenômeno. O que ocorreu recentemente na Espanha, quando toda a mídia se apegou à versão oferecida pelo governo conservador de José Maria Aznar, de um ato terrorista cometido pelo ETA, parece não ter sido assimilado nas redações. A população espanhola foi mais rápida que as redações e, se dando conta do logro, votou com os socialistas elegendo José Luis Rodriguez Zapatero.

O atentado de Madrid foi uma oportunidade de jornalismo interpretativo que a imprensa espanhola, em particular, negligenciou com desgaste de imagem e prestígio.

Tempos promissores

O jornalismo interpretativo é uma função nova a ser encampada pela imprensa como reação à popularização da internet. Nas redações, no entanto, não sobra tempo para reflexões capazes de conduzir a novas perspectivas. Os jornalistas, em princípio trabalhadores intelectuais, estão reduzidos a operários braçais de letras pobremente arranjadas para justificativas, na maior parte dos casos, desprovidas de sentido.

O que significa dizer, como fez Veja na sua penúltima edição, que Leonardo da Vinci foi o homem mais inteligente que já existiu? Quem disse que isso é de fato verdade e que sentido há em se falar de um homem mais inteligente do mundo? Por que deveria haver um homem mais inteligente do mundo ou uma mulher mais bonita do mundo? Tudo isso não passa de pura fabulação, para recorrer a uma expressão cara ao geógrafo brasileiro recentemente falecido, o professor Milton Santos.

E quanto ao jornalismo científico?

Na consideração do filósofo da ciência Mario Bunge, argentino de nascimento, uma sociedade subdesenvolvida é uma sociedade com mentalidade atrasada, onde a produção de ciência, inclusive de ciência básica, pode elaborar parâmetros com capacidade de influenciar toda a cultura. Até porque, ao contrário do que acredita certo academicismo, a ciência é parte da cultura e não está à parte da cultura.

Se a ciência pode contribuir para uma reelaboração da cultura com o propósito de diminuir o sofrimento humano, como avaliou Galileu, a função do jornalismo científico é principalmente a de sensibilizar a sociedade para as perspectivas da ciência. Ao jornalismo científico não está posta a função de explicar ciência, ainda que a sensibilização social para a ciência não permita que essa função possa ser subestimada em demasia.

No encontro de Salvador, a redução do espaço de jornalismo científico ficou evidente pela presença reduzida de pessoal das redações. Em compensação, houve uma representação significativa de profissionais ligados a departamentos de divulgação de instituições de pesquisa decisivas para a produção de ciência no Brasil – a exemplo da Embrapa e da Fiocruz, para citar apenas dois exemplos.

De uma óptica mais otimista, talvez isso signifique, para retomar Huizinga, que o movimento inconstante da superfície oceânica venha a sofrer, num futuro próximo, a influência mais estabilizadora de águas profundas, neste caso os centros de produção de conhecimento comprometidos com a realidade nacional.

Outra constatação inequívoca: o nível dos debates, incorporando preocupações epistemológicas e com a construção de uma base teórica mais ampla e sólida, elevou-se significativamente desde o início desta década, o que significa dizer que é um avanço em curtíssimo espaço de tempo.

O que nos leva a pensar em tempos mais promissores, apesar de certa resistência obscurantista quanto às perspectivas de introduzir ciência no cotidiano das pessoas e, com isso, contribuir para a formação de uma mentalidade consistente com a de uma sociedade do conhecimento.