Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Livros velhos, crítica ultrapassada

É inacreditável o que o Correio Braziliense fez no dia 5/8/2004. Publicou a matéria ‘Festival de erros’, na qual afirmou que os livros didáticos de Ciências, avaliados e distribuídos pelo MEC entre 1998 e 2003, estariam, como diz o título da matéria, repletos de erros. O que é apontado na matéria poderia ser válido para livros anteriores a 1996, mas, após a primeira avaliação do MEC, essa realidade se alterou dramaticamente. Todos os aspectos mencionados na matéria foram objeto de correções por parte das editoras, e cuidadosamente escrutinados pela equipe responsável pela avaliação.

A matéria diz, por exemplo, que há supostos conceitos ultrapassados nos livros distribuídos entre 1998 e 2003. Além disso, e muito mais grave, a matéria afirma que há discriminação racial nas ilustrações dos livros distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Isso não é verdade, pelo menos desde o ano de 1996. Apenas como exemplo, reproduzo trecho do parecer da Coleção ‘Eu Gosto de Ciências’, da Editora Nacional, obra excluída em 1997:

‘(…) O aspecto conceitual não é o único que merece restrições sérias. Como já tinha sido apontado no parecer anterior, e em outros volumes da mesma coleção, a diversidade racial e étnica brasileira é retratada de forma distorcida nas ilustrações do livro. As pessoas negras aparecem em posição social inferior, enquanto as brancas aparecem associadas a ocupações socialmente valorizadas.

As crianças brancas, a maioria loira, de cabelos lisos e olhos azuis, são saudáveis, aparecem brincando na praia (p. 11) e com hábitos exemplares de higiene. Tomam banho em banheira (pp. 107 e 109), escovam os dentes após as refeições (p. 101), bebem leite (p.110), lêem bons livros, fazem lição de casa em escritório luxuoso (p. 111), tomam vacinas (p. 116) e comem frutas bem escolhidas e limpas (p. 96). As poucas crianças negras aparecem no livro associadas a doenças, tomando banho em rios contaminados por vírus, vermes, bactérias ou fungos (p. 112); são sujas, descalças, mantêm o hábito da chupeta fora de idade e tomam água de caminhões-pipa, despejada em latões de óleo colocados no chão da rua, com o auxílio de canecas sem alça (p. 39). O elemento indígena mereceu uma única foto no livro, para ilustrar o que ocorre com mães e filhos que bebem água contaminada e contraem ‘hepatite, cólera, amebíase, febre tifóide, esquistossomose e outras’ (p. 42). O adultos brancos são médicos e cientistas ( pp. 114 e 116), praticam windsurf (p. 86) e respiram ar puro passeando romanticamente de bicicleta em parques arborizados (p. 43). Os poucos adultos negros presentes no livro aparecem com destaque no capítulo sobre lixo. Quatro pessoas estão retratadas nesse capítulo; são todas negras, trabalhando como lixeiros (p.122). Outra aparição do elemento negro adulto será no capítulo Os Animais, onde um jovem negro está consertando um telefone numa casa luxuosa. Todos os desenhos de pessoas representam crianças brancas, a maioria loira. (…)’

Como se vê, não apenas o aspecto conceitual foi escrutinado severamente, como também a representação da diversidade étnica brasileira. Portanto, o que foi apontado na matéria do Correio Braziliense não pode mais ser observado nos livros didáticos atuais.

‘É fácil chutar cachorro morto’

Os pareceres de exclusão (inclusive o reproduzido acima) estiveram disponíveis, na íntegra, na internet por diversos anos. Foram retirados do ar pelo fato de se referirem a livros antigos, que estão fora de catálogo.

É simplesmente incrível que, em pleno ano de 2004, sejam apresentados resultados de supostas ‘pesquisas’ que teriam ‘flagrado’ problemas banidos dos livros didáticos de ciências distribuídos pelo MEC desde 1996.

Seria conveniente que o Correio Braziliense informasse o ano de edição dos livros ‘pesquisados’ para não transmitir informações ultrapassadas e que não correspondem à realidade atual. Criticar livros didáticos velhos é, hoje, muito fácil. Como diria o nosso presidente Lula, ‘é fácil chutar cachorro morto’. Mas seria bom lembrar que ele não morreu de velho.

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Vice-diretor da Faculdade de Educação da USP, coordenador da Avaliação dos Livros Didáticos de Ciências do MEC de 1995 a 2003