A construção de conhecimento científico de qualidade é um processo fundamental para o avanço da Ciência e da Tecnologia e, consequentemente, para o progresso da sociedade. Os estudos que trazem as novidades da Ciência costumam passar por um processo criterioso de revisão pelos pares antes de serem publicados em revistas científicas. Entretanto, nos últimos anos, tem ocorrido um aumento significativo no número de artigos posteriormente retratados nessas publicações [i]. Tais retratações ocorrem quando há denúncia de algum tipo de má conduta científica. É certo que o crescimento do número de retratações pode ser atribuído ao aumento global do número de publicações, mas não podemos descartar o surgimento de novas formas de detecção de fraudes e erros nas pesquisas científicas. De acordo com um estudo publicado em 2012, cerca de 21% das retratações se deve a erros, enquanto aproximadamente 67% dessas retratações são casos de má conduta na pesquisa científica [i]. Um estudo mais recente, publicado em 2019, mostrou que, entre 2013 e 2016, a taxa de retratação dos trabalhos foi de 2,5 para cada dez mil artigos publicados, sendo que em 65% dos casos a causa das retratações foi a má conduta científica [ii].
Lançado em 2010, o site Retraction Watch [iii], dos jornalistas estadunidenses especializados em Ciência, Adam Marcus e Ivan Oransky, compila casos de má conduta científica ao redor do mundo. Esses casos forneceram dados que foram objeto de um estudo recente que analisou 1.623 retratações de artigos científicos ocorridas entre 2013 e 2015. Como resultados, cerca de 47% dos casos estavam relacionados à fraude e manipulação de dados [iv], formas graves de má conduta científica. Nesse contexto, fica evidente a necessidade de que iniciativas e ações sejam propostas pela comunidade científica para lidar com essas questões. De fato, na última década houve um esforço no sentido de enfrentar esses novos desafios no campo da Ciência.
Assim, em 2010 houve a II Conferência Mundial sobre Integridade em Pesquisa, que ocorreu em Singapura (Malásia). Nesse evento estavam presentes cerca de 340 cientistas de 51 países, que debateram e prepararam um documento, o qual se tornou um marco para questões sobre boas práticas na pesquisa — a Declaração de Singapura. Tal Declaração foi publicada internacionalmente, sendo posteriormente traduzida na íntegra e publicada em uma revista científica brasileira [v]. Trata-se de um guia global para a condução responsável de pesquisas científicas, sendo composta por 14 itens (Responsabilidades) que têm como princípios básicos: Honestidade; Responsabilidade; Respeito e Imparcialidade Profissionais; e Boa Gestão. Em seu preâmbulo, traz a seguinte afirmação: “O valor e os benefícios provenientes da pesquisa dependem essencialmente da sua integridade. Embora haja diferenças entre países e entre disciplinas na maneira pela qual a pesquisa é organizada e conduzida, há também princípios e responsabilidades profissionais comuns que são fundamentais para a integridade da mesma, onde quer que seja realizada.”
Os 14 itens que compõem a Declaração de Singapura se referem a Responsabilidades específicas, tanto de cientistas quanto de instituições de pesquisa, sobre questões de conduta científica no desenvolvimento da pesquisa e na publicação dos artigos ou outros tipos de textos científicos. Tais Responsabilidades incluem questões sobre: 1) Integridade; 2) Cumprimento com as regras; 3) Métodos de pesquisa; 4) Documentação da pesquisa; 5) Resultados; 6) Autoria; 7) Agradecimentos na publicação; 8) Revisão de pares; 9) Conflitos de interesse; 10) Comunicação pública; 11) Notificação de práticas de pesquisa irresponsáveis; 12) Resposta a alegações de práticas de pesquisa irresponsáveis; 13) Ambientes de pesquisa; 14) Considerações sociais. De acordo com Gilson Volpato (2017) [vi], essas Responsabilidades podem ser sintetizadas na percepção de que o conhecimento científico deve ser confiável e produzido por meios íntegros e claramente expressos, e no fato de que tanto cientistas quanto instituições devem zelar pela confiabilidade e integridade na pesquisa, visando condições mais favoráveis à humanidade.
A partir da Declaração de Singapura, diversos documentos de orientação para a condução responsável de pesquisas científicas foram elaborados ao redor do mundo. No Brasil, os documentos mais significativos — chamados genericamente de manuais — incluem o Código de Boas Práticas Científicas da Fapesp [vii] e as Diretrizes para a Integridade da Pesquisa do CNPq [viii]. Entretanto, mesmo com todos esses documentos e normas que balizam a pesquisa científica, ainda há inúmeros casos de más práticas pelo mundo, inclusive em nosso país, como eventos graves de “fabricação” ou manipulação de dados [ix], evidente corrupção científica que fere diversas Responsabilidades da Declaração de Singapura. Ao fabricar e/ou manipular dados, a responsabilidade pela confiabilidade da pesquisa (Integridade), o cumprimento das regras de pesquisa em todas as etapas (Cumprimento com as regras), o embasamento das conclusões em uma análise crítica das evidências (Métodos de Pesquisa) e o compartilhamento de dados e achados abertamente (Resultados) ficam comprometidos.
No Brasil, um caso comum de manipulação de dados é a exclusão de dados coletados adequadamente, mas que desviaram da média esperada [x]. Em outras palavras, os pesquisadores excluem do manuscrito inteiro (e não apenas da análise estatística) esses dados como se não representassem aquela realidade [x]. Tal conduta também fere as Responsabilidades com a Integridade e com os Resultados da pesquisa, conforme preconizado pela Declaração de Singapura.
A manipulação de dados é ainda mais grave quando implica em sérias consequências para a sociedade. Em nível mundial, podemos citar como exemplo o estudo feito pelo cirurgião gástrico Andrew Wakefield e colaboradores, publicado em 1998 na revista médica Lancet. Esse estudo sugeria uma suposta relação entre o desenvolvimento de autismo em crianças da Inglaterra e a vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola), usada nos Estados Unidos desde o início dos anos 1970 e na Grã-Bretanha desde a década anterior. O estudo recebeu muitas críticas e, embora alguns cientistas refutassem suas alegações, Wakefield manteve sua suposição. O caso ganhou repercussão, mas somente anos depois, uma investigação feita pelo jornalista Brian Deer expôs a fraude de Wakefield. Brian revelou que o pesquisador manipulou dados, recebendo dinheiro para manter a farsa, a qual teve sérias consequências para a sociedade [xi].
Com o apoio de grupos antivacina e em decorrência de uma cobertura sensacionalista por parte da imprensa, muitas famílias, com receio de que a vacina realmente causasse autismo, deixaram de imunizar suas crianças na Grã-Bretanha. Como resultado, em 2008 o sarampo voltou a ser uma doença endêmica na Inglaterra e no País de Gales. Somente em 2010, Wakefield teve sua licença médica cassada e a revista Lancet anulou o artigo [xi]. Assim, esse caso exemplifica também uma clara corrupção em relação à Responsabilidade de Considerações Sociais da Declaração de Singapura, ignorando o dever ético de pesar os riscos sociais atrelados à divulgação do trabalho [v].
Outro aspecto relevante envolvendo a manipulação de dados na pesquisa científica se relaciona a questões de Conflito de Interesse, outra Responsabilidade da Declaração de Singapura. Esta estabelece que qualquer conflito de interesse que possa comprometer a confiabilidade na pesquisa, independentemente de ser financeiro ou de outra natureza, seja sempre revelado. Um claro exemplo em que tal Responsabilidade pode ser negligenciada é quando ocorre a interferência e o financiamento de estudos científicos na área de agrotóxicos pelas empresas produtoras. Segundo a pesquisadora Aline Gurgel da Fiocruz, tais empresas visam flexibilizar a legislação que regula os agrotóxicos e, para tanto, realizam pesquisas de forma isolada, sem a combinação de substâncias que realmente ocorrem na natureza, e considerando uma única via de exposição, sendo que, na realidade, as pessoas geralmente não se expõem a uma única substância, tampouco por uma única via [xii]. Mesmo quando tais conflitos de interesse são mencionados no estudo publicado, é evidente que há uma má conduta científica grave, pois a condução da pesquisa científica foi feita de forma equivocada, influenciando assim os resultados e as conclusões dos estudos. Isso pode ter sérias consequências para a sociedade, uma vez que tais agrotóxicos podem, portanto, ser altamente tóxicos para as pessoas quando testados em um contexto mais apropriado. Assim, casos como esse ferem também diversas outras Responsabilidades da Declaração de Singapura, tais como os valores de Integridade, Métodos de pesquisa e Considerações sociais.
Um exemplo de repercussão internacional envolvendo conflitos de interesse, embora não seja relacionado com agrotóxicos, envolveu a General Motors. Essa empresa vendeu gasolina com chumbo tetraetila por muitos anos, algo que estudos científicos robustos já indicavam que produzia uma fumaça extremamente tóxica pelos automóveis. Nesse cenário, a empresa contratou toxicologistas, como Robert A. Kehoe, para espalhar dúvidas e defender o produto, ainda que não ficasse claro que o pesquisador era contratado pela empresa. Somente em 1986, após quase 20 anos, um grupo de cientistas íntegros liderados pelo geoquímico Clair Patterson convenceu a opinião pública por meio do debate científico honesto sobre os impactos do chumbo tetraetila na gasolina para a saúde humana. Isso influenciou a retirada do chumbo da gasolina nos Estados Unidos, um exemplo de vitória científica a favor da saúde pública [xiii], que foi o principal responsável pela redução de 80% do nível médio de chumbo no sangue de crianças e adultos [xiv]. Esse caso repercutiu inclusive no Brasil, sendo que a proibição da venda da gasolina com chumbo ocorreu pouco depois, em 1989 [xv]. Embora esse exemplo não envolva necessariamente a manipulação de dados na condução da pesquisa científica, certamente se relaciona à manipulação na apresentação da informação científica para o público. Outros exemplos semelhantes podem ser vistos no documentário Mercadores da Dúvida de Robert Kenner (2014).
Com relação aos manuais brasileiros de boas práticas, vale mencionar que esses exemplos ferem o item 3.2.1 do Código de Boas Práticas da Fapesp [vii], o qual afirma que:
“Ao comunicar os resultados de sua pesquisa, por meio de um trabalho científico, o pesquisador deve expô-los com precisão, assim como todos os dados, informações e procedimentos que julgue terem sido relevantes para sua obtenção e justificação científicas. Nas situações em que essa exposição seja inviabilizada por razões éticas ou legais, esse fato deve ser expressamente mencionado no trabalho. ”
Também desrespeitam os itens 13 e 15 das Diretrizes para a Integridade da Pesquisa do CNPq [viii], que afirma:
“13: O autor tem a responsabilidade ética de relatar evidências que contrariem seu ponto de vista, sempre que existirem. Ademais, as evidências usadas em apoio a suas posições devem ser metodologicamente sólidas. Quando for necessário recorrer a estudos que apresentem deficiências metodológicas, estatísticas ou outras, tais defeitos devem ser claramente apontados aos leitores.”
“15: Qualquer alteração dos resultados iniciais obtidos, como a eliminação de discrepâncias ou o uso de métodos estatísticos alternativos, deve ser claramente descrita junto com uma justificativa racional para o emprego de tais procedimentos.”
Nesse cenário, fica evidente que a manipulação ou mesmo a fabricação de dados é um grave problema de má conduta científica que afeta não apenas a construção de conhecimento, mas pode gerar sérias consequências para a sociedade, principalmente quando há interesses ocultos por trás da atividade científica. Assim, as boas práticas são um ponto crucial para uma relação harmônica entre construção de conhecimento científico, tecnológico e suas aplicações sociais. Respeitar as Responsabilidades que a Declaração de Singapura pontua de forma clara, especialmente aquelas envolvendo manipulação de dados e conflitos de interesse — evidentes corrupções da atividade científica — são fundamentais para usar a Ciência de forma adequada e, portanto, em prol da sociedade. A relevância disso está claramente expressa na frase de Telma Birchal (2012), docente da Universidade Federal de Minas Gerais — UFMG [xvi]:
“Uma das tarefas mais importantes para o cientista hoje é defender não só os clássicos valores intrínsecos da ciência, definidores de sua própria prática, mas também de atentar para o lugar vital que a ciência ocupa em nossa sociedade…”
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Referências
[i] Fang, F. C; Steen, R. G.; Casadevall, A. Misconduct accounts for the majority of retracted scientific publications. Proc Natl Acad Sci USA. 2012, 109, 17028–17033.
[ii] Varela, C. I.; Raviña, A. R. Misconduct as the main cause for retraction. A descriptive study of retracted publications and their authors. Gac Sanit. 2019, 33, 356–360.
[iii] Retraction Watch. Tracking retractions as a window into the scientific process. Disponível em: <https://retractionwatch.com/>. Acesso em: 18 de Set. de 2019.
[iv] Ribeiro, M. D.; Vasconcelos, S. M. R. Retractions covered by Retraction Watch in the 2013-2015 period: prevalence for the most productive countries. Scientometrics, 2018, 114, 719–734.
[v] Singapura. Declaração de Singapura sobre integridade em pesquisa. Dados. 2010. 53.
[vi] Volpato, G. Ciência além da visibilidade: Ciência, formação de cientistas e boas práticas. Editora Best Writing, 2017.
[vii] FAPESP. Código de boas práticas da Fapesp. 2014. Disponível em: <http://www.fapesp.br/boaspraticas/FAPESP_Codigo_de_Boas_Praticas_Cientificas_2014.pdf> Acesso em: 03 de Set. de 2019.
[viii] CNPq. CNPq anuncia diretrizes éticas para a pesquisa científica. Disponível em: <http://www.uel.br/pos/ppgsoc/Arquivos/CNPQanunciaDiretrizes.pdf> Acesso em: 10 de Set. de 2019.
[ix] Silva, P. Autor da maior fraude científica do Brasil é exonerado da UFMT. Disponível em: <https://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?id=358847>. Acesso em: 22 de Set. de 2019.
[x] IGVEC. Causos sobre (des)honestidades científicas em objetivos, métodos, resultados, citações e autoria. Em: Clube Ciência-IGVEC (Instituto Gilson Volpato de Educação Científica). 2019.
[xi] Zorzetto, R. Manipulação de dados: fraude em estudo sobre vacina reabre discussão acerca das práticas de pesquisa. Pesquisa Fapesp. Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/2011/03/16/manipula%C3%A7%C3%A3o-de-dados/>. Acesso em: 01 de Out. de 2019.
[xii] Gurgel, A. Agrotóxicos: ‘Os interesses econômicos não podem se sobrepor aos interesses da vida’. Entrevista pela Fiocruz. Disponível em: <http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/agrotoxicos-os-interesses-economicos-nao-podem-se-sobrepor-aos-interesses-da> Acesso em: 01 de Out. de 2019.
[xiii] Tyson, N. G. Cosmos: uma odisséia do espaço-tempo. Episódio ‘A sala limpa’. Série Netflix. 2014.
[xiv] CDC Web Archive. Blood lead levels keep dropping: New guidelines recommended for those most vulnerable. Disponível em: <https://www.cdc.gov/media/pressrel/lead.htm>. Acesso em 15 de Out. de 2019.
[xv] Credendio, J. E. Nível de poluição por chumbo despenca na Grande SP em 20 anos. Folha de S. Paulo. 2009. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2809200914.htm>. Acesso em: 14 de out. de 2019.
[xvi] Birchal, T. S. Ciência, ética e sociedade: a regulação da prática científica. Caderno CRH. 2012.
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Caroline Maia é bióloga e doutora em Zoologia pela Unesp. É gestora-diretora no Instituto GilsonVolpato de Educação Científica, e comanda o blog ConsCIÊNCIA Animal.
Karen Canto é graduada e mestre em Química pela UFRGS, doutora em Ciências pela Unicamp e bolsista Mídia Ciência (Fapesp).
Roberta Hiranaka é licenciada e bacharel em Ciências Biológicas – UFSCar, mestre em Ensino de Ciências e Matemática – Unicamp. É autora e editora de livros didáticos de Ciências e Biologia.
Vinícius Alves é licenciado e Bacharel em Ciências Biológicas – IBB/UNESP, mestre em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais – UFU, especializando em Jornalismo Científico – Labjor/UNICAMP.