Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Método ardiloso de tratar a notícia

Em sua edição do dia 15/9/2004, o Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, divulgou reportagem acerca das manifestações que ocorreram em várias cidades brasileiras em repúdio ao Projeto de Lei do Ato Médico (PLS nº 25/2002), em tramitação no Senado Federal. Foram exibidas imagens de profissionais e estudantes da área da saúde, como psicólogos, enfermeiros e fonoaudiólogos, que, temerosos de que a aprovação da lei provoque restrição de seu campo de trabalho, se reuniram em passeatas e, trajando roupas pretas e munidos de cartazes, gritaram palavras de ordem em frente a prédios do poder público, num simulacro dos caras-pintadas em prol do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello. A reportagem teve como desfecho um rápido pronunciamento em defesa da Lei do Ato Médico feito pelo corregedor do Conselho Federal de Medicina, Roberto Luiz d´Avila, que foi incorretamente identificado como presidente da entidade.

A matéria seguinte discorreu sobre um erro médico ocorrido em Sorocaba (SP), o qual deveu-se ao esquecimento de uma espátula de 30cm dentro da cavidade abdominal de um paciente durante cirurgia no hospital geral da cidade. Na matéria foi mostrado o exame radiológico que comprovou a presença do corpo estranho, recurso de que se valeu o repórter para fortalecer as palavras emitidas pelo apresentador. Não fosse a frase inicial, ‘Médicos esquecem uma espátula dentro do corpo de um paciente’, que confere, pelo uso do plural, generalização do erro a todos os profissionais que exercem a medicina, a matéria mereceria aclamações por chamar a atenção de médicos e pacientes para a má-prática por culpa inconsciente, que poderia ser evitada caso o profissional fosse mais cuidadoso durante o ato operatório. Todavia, foi perceptível o nexo criado entre as duas notícias, veiculadas sem intervalo, uma após a outra, de modo que os argumentos em defesa da Lei do Ato Médico caíssem no esquecimento do telespectador pela menção do termo ‘erro médico’ logo em seguida.

Um telejornal deve sempre divulgar notícias de interesse público, como a que se refere ao conflito gerado entre os profissionais da saúde pela definição do ato médico. Faz parte das obrigações do jornalismo informativo, cujo interesse há de se restringir sempre à difusão de fatos ocorridos, sem nunca se enveredar pela panfletagem. Foge às regras do decoro o estabelecimento de nexo entre reportagens que transmita a parcialidade do jornal, sobretudo quando não há consenso público de qual parte está agindo corretamente e qual está equivocada, porquanto trata-se de um método opinativo ardiloso de quem quer, mas não pode ou não deve, assumir uma posição perante os telespectadores. Tal falha ética torna-se ainda mais notória quando cometida pelo Jornal Nacional, o noticiário mais popular e de maior audiência da televisão brasileira, que, por tais atributos, pode ser considerado o grande formador de opinião pública em nosso país.

Interesses a elucidar

Ora, nenhuma profissão está livre de membros despreparados e de falhas não intencionais, afinal são apanágios da falibilidade humana que, contudo, podem ser minorados, conquanto nunca abandonados. Pelo que a lembrança me permite afirmar, notícias de erros médicos foram propagadas várias vezes pelo Jornal Nacional, mas erros de enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonaudiólogos e de psicólogos nunca foram sequer citados.

Tampouco recordo-me de ter assistido no Jornal Nacional a alguma reportagem que trouxesse ao público geral discussão, tendenciosa ou não, acerca da definição do ato médico.

O resultado das notícias divulgadas e pelo nexo estabelecidos entre elas é a ilação de que, a julgar pela edição do dia 15/9/04, o Jornal Nacional e a imparcialidade quanto ao Projeto de Lei do Ato Médico não passam de oxímoros. Que interesses tem o corpo editorial do telejornal em defender uma posição contrária à exclusividade do diagnóstico e da indicação terapêutica aos médicos é algo que precisa ser elucidado, afinal a montagem do programa não foi culpa inconsciente de um erro jornalístico.

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Médico, Vitória