Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Meu filho corre perigo? Ou a matéria que ainda não li

Todos sabem que o mundo está – de novo – em perigo. Um vírus potencialmente mortal está se reproduzindo nas aves asiáticas e ameaça a pouco estável paz sanitária do planeta. A influenza aviária (ou gripe do frango) é a maior ameaça à saúde no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Poderia matar milhões de pessoas em poucas semanas.

Para a mídia, o assunto é, portanto, uma ‘grande’ notícia. E, inclusive do ponto de vista jornalístico, não é tão novo: mais ou menos oito anos atrás lembro-me de já ter avisado aos meus leitores: ‘Cuidado: a pandemia pode acontecer amanhã’. Mais: desde então, ao tempo em que o vírus real foi dando pequenos avisos (um surto aqui, outro lá), outra doença se disseminou pela cobertura midiática: a uniformidade. Todas as matérias são iguais.

O que estão informando hoje os jornais brasileiros? Em geral, há dois tipos de matérias. As notícias internacionais, cheias de cifras, nas quais o número de frangos abatidos ou de casos humanos na Ásia podem ser seguidos, semana a semana. Um assunto tão próximo a nós – pode-se dizer – como os mortos no Iraque. Essas matérias incluem quase sempre também outros números, divulgados pelas organizações internacionais, que mostram uma visão geral do futuro do planeta, se a tragédia acontecer.

Há um outro tipo de matéria, na qual o protagonista é o Brasil, país que – do ponto de vista macroeconômico – está por enquanto se beneficiando da tragédia. As exportações de frangos e derivados aumentaram um 10% graças ao ‘bendito’ vírus que não chegou aqui. Só falta estampar camisetas com a legenda ‘I love H5N1’ (o nome da cepa viral) como ingresso para as festas dos empresários avícolas que já lucram com os ganhos. Eles sabem onde está o perigo, e investem em blindar suas granjas contra a entrada do (frango) inimigo.

Estratégia militar

O leitor comum, que só conhece o frango quando já está assado, que gosta de viver, ama a sua família e procura nos jornais informação para a sua saúde, está sendo esquecido desta vez. Há boxes com perguntas e respostas de tipo ‘É perigoso comer frango?’, mas o verdadeiro problema de saúde humana não está nas pautas.

Como está se preparando o Brasil se o pior, a temida transmissão humana, acontecer? O que interessa é: ‘Se o vírus chegar de avião a Guarulhos, escondido no nariz de um passageiro, minha família está em perigo?’. A resposta é, claramente, sim. A sua, e milhões de outras também.

Surgem as dúvidas. Será que minha cidade ou estado tem estoque suficiente de remédios? A Sociedade de Doenças Infecciosas dos Estados Unidos – um local quase tão distante do epicentro da possível pandemia como nós – recomenda ter desde agora uma quantidade de antivirais suficiente para tratar ao menos 50% da população. Temos? Quem os fabrica? Vamos depender das importações? Tomara que não. Não posso imaginar nenhum país que venda a sua produção de remédios em plena crise sanitária.

Imaginemos (para chutar um número) que só haja drogas para 10% da população. Em São Paulo, são 4 milhões de pessoas que vão tomar o mesmo remédio ao mesmo tempo. Milhares vão ter dúvidas, sofrer efeitos adversos… qual é o plano? Os especialistas alertam: é necessária uma estratégia militar para uma guerra que os cientistas acham inevitável.

Bug do milênio

Melhor que tomar remédio depois é tomar vacina antes, claro, e as perguntas são quase as mesmas, mas o problema parece tecnicamente mais difícil de ser resolvido: a vacina deve ser feita ‘na hora’, na medida, e não estaria pronta antes de seis meses após o inicio da tragédia.

Muitas coisas mudaram desde a pandemia de gripe de 1918, que matou 50 milhões de pessoas. As comunicações, por exemplo, e a existência do conceito de saúde global. O poder da mídia também aumentou. Não seria bom aproveitar?

É verdade que a responsabilidade maior cai sobre as autoridades veterinárias dos países atingidos, a Organização da Saúde Animal (OIE) e a OMS. Mas há muitos motivos – econômicos, de soberania das nações etc. – que impedem muitas vezes que esse trabalho seja bem feito. A Sars já serviu de amostra. Se o pior acontecer, é evidente que melhorar na hora a segurança dos aeroportos poderá não ser suficiente. Nos Estados Unidos foi estimado em 100 mil o número de mortos de uma pandemia suave, se o país não se preparar (dados do CDC, Centers for Disease Control and Prevention dos EUA).

Fazer uma matéria clara e sem erros sobre os riscos da pandemia é fácil. Com a internet, duas horas são suficientes. Mas a matéria que eu gostaria de ler é outra. Dá para usar o modelo das matérias que a mídia fez quando o país se preparava para o Bug do Milênio, às vésperas do ano 2000 – uma tragédia anunciada que felizmente nunca aconteceu. O assunto, de certa maneira, é parecido. Os jornais noticiavam como estávamos nos preparando. E só falávamos de máquinas.

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Bióloga e jornalista especializada em saúde