O papel de áreas protegidas na conservação da diversidade biológica, a meta de redução da perda de biodiversidade até 2010, um regime internacional sobre o acesso e repartição de benefícios provenientes da exploração de plantas e organismos nativos, os interesses das populações tradicionais e povos indígenas, as negociações sobre mudanças climáticas, a introdução de organismos geneticamente modificados na agricultura foram alguns dos temas discutidos na Sétima Conferência das Partes (COP 7), da Convenção sobre Diversidade Biológica, que ocorreu de 09 a 20 de fevereiro, em Kuala Kumpur, na Malásia. No entanto, nem a importância dos temas, nem a presença de cerca de 2 mil representantes de todo o mundo, incluindo ministros, cientistas e ONGs, não foram suficientes para uma ampla cobertura da grande imprensa brasileira sobre o evento.
A presença brasileira no evento destacou-se pelo anúncio feito pela ministra Marina Silva (dia 18) do Protocolo de Intenções para Implementação do Programa de Trabalho para Áreas Protegidas no Brasil. De acordo com ela, o programa deve incluir terras indígenas, entre outros motivos, para que seja atingida a meta de redução da perda de biodiversidade nos próximos seis anos, como foi estabelecido na Rio +10. Segundo noticiou o Instituto Socioambiental (ISA) (www.socioambiental.org/website/noticias/noticia.asp?File=Geral2004-02-18-15-19.html), um dos poucos a noticiar o evento, o programa brasileiro prevê a formação de um Fórum Nacional de Áreas Protegidas, vinculado a Secretaria de Biodiversidade e Florestas (SBF), do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Outro destaque sobre o Brasil foi um prêmio simbólico anunciado no evento para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por membros da Coalizão contra a Biopirataria. Lula foi premiado como Capitão Gancho da Biopirataria por ter autorizado o plantio de soja transgênica e pelo risco que isso representa para a biodiversidade. Para se ter uma idéia do que significa a premiação do presidente brasileiro, vale citar outros premiados junto com ele. Segundo o Instituto Socioambiental, os premiados foram o ‘governo dos Estados Unidos, por promover a exploração comercial da biodiversidade em parques nacionais e pela quantidade de patentes de recursos biológicos que detém; a Monsanto, pelo patenteamento de uma variedade tradicional de trigo indiano e seus produtos derivados; o Projeto HapMap, uma variação do Projeto Genoma com coleta e sequenciamento do DNA de povos tradicionais da Nigéria, China, Japão e outros países, desenvolvido por diversos cientistas do primeiro mundo; e a empresa holandesa Soil & Crop Improvement, por ter negociado com o governo da Etiópia o patenteamento de um cereal tradicional da dieta dos etíopes e por propor que os benefícios fossem revertidos no patenteamento de novas variedades.’
Já a imprensa internacional, tem realizado uma cobertura da COP 7 bem mais intensa. Entre as notícias mais críticas, estão as do jornal francês Le Figaro (www.lefigaro.fr/perm/afp/sci/040219103643.2tggahtq.html), que no dia 19 de fevereiro, por exemplo, noticiou em seu caderno de ciência, um convite da União Européia, feito aos Estados Unidos, para uma conferência da ONU. O convite em forma de recomendação pede aos EUA junte esforços para preservar a variedade de espécies vivas na Terra, em lugar de explorar possibilidades de vida em Marte.
Imprensa acompanha paradoxo?
Enquanto a 7a Conferência das Partes, da Convenção de Diversidade Biológica (CDB), praticamente não recebeu atenção da imprensa brasileira, um outro evento foi amplamente noticiado, a 170a Reunião Anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS-sigla em inglês), que ocorreu em Seattle (EUA), entre os dias 12 e 16 de fevereiro. Segundo a associação, alguns seminários trouxeram a oportunidade de discutir ‘algumas das áreas de pesquisa mais interessantes e rápida expansão’, como aquelas relacionadas com a biotecnologia, a nanotecnologia e a proteômica.
Seguindo uma certa visão norte americana do que pode ser mais importante para a ciência e para a sociedade, a maior parte da imprensa brasileira acabou destacando no decorrer dessa semana ‘as possibilidades de vida em Marte’ ao invés da preservação de vida na Terra. Assim, mereceu destaque o evento que sinaliza a corrida da ciência e sua relação com o mercado, ou com o biomercado, e o descompasso entre a velocidade com que avançam de um lado os direitos, de outro a ciência que dá possibilidades de patenteamento. Nesse sentido, a cobertura da imprensa parece apenas acompanhar de forma passiva o paradoxo do futuro dos recursos detectado pelo sociólogo do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Estadual de Campinas, Laymert Garcia dos Santos, em Evento (http://www.comciencia.br/noticias/2003/07nov03/multiciencia.htm) realizado em novembro de 2003 acerca do futuro dos recursos naturais.
Segundo ele, a discussão sobre a proteção dos direitos dos povos indígenas, com relação as suas terras, sua cultura e seu conhecimento, reconhecidamente vinculados com a proteção da biodiversidade, avança de forma muito mais lenta do que aquela pela qual a biotecnologia é introduzida para transformar um recurso em biomercado. Para o sociólogo, a biotecnologia usa os recursos de um modo apropriativo, e é implantada de forma acelerada pelos organismos multilaterais. Em lugar de brecar o processo de erosão dos recursos, a trajetória da ciência tem constituído bancos de recursos genéticos ex-situ, para garantir não os recursos naturais, mas sua informação e sua apropriação para posteriores investigações e recombinações. ‘Em vez de segurar o processo de deterioração dos recursos biológicos estamos mais preocupados em garantir o máximo de informação do patrimônio genético. Parece que nós estamos numa época em que não há preocupação nenhuma com esse desaparecimento porque se de um lado estes recursos são limitados, por outro parecem infinitos a partir do desenvolvimento da informação digital’, disse Santos.
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repórter das revistas Com Ciência e Ciência e Cultura.E-mail: mmk@unicamp.br