Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia, clima e o desastre em curso

A idéia de que atividades humanas possam gerar um aquecimento crescente da atmosfera da Terra tem quase um século e meio de idade. Mas só nesta quarta-feira (16/2) entra em ação o Protocolo de Kyoto, tratado internacional com a finalidade de minimizar esse efeito, o pior desastre ambiental da história da civilização, pela amplitude e profundidade de seu impacto.

A mídia brasileira tem negligenciado o caso, talvez com o conforto inconsciente de que seríamos o Paraíso Terrestre que a mentalidade medieval acreditava acessível numa região até então desconhecida deste mundo. Evidência do descaso foi a cobertura desatenta dos debates da British Climate Change Conference, entre os dias 1 e 3 de fevereiro, às vésperas do carnaval.

Nesse encontro, pela primeira vez um documento dramático – o relatório ‘Enfrentando o Desafio do Clima’ – adverte com todas as letras que estamos perto de um ponto sem retorno, quando não será mais possível evitar os efeitos catastróficos do aquecimento global.

As conseqüências do aquecimento pelo efeito-estufa, um conjunto de gases que aprisiona na atmosfera parte da radiação solar que deveria ser liberada para o espaço, prometem não decepcionar o mais radical dos catastrofistas. Mas nem isso, aparentemente, demove a mídia nacional de uma passividade idílica.

No encontro britânico, uma amostra do que está por vir: o indiano Rajendra Pachauri, presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, na sigla em inglês), órgão das Nações Unidas, alertou que ‘a mudança climática é uma realidade e nossa janela de oportunidade para uma reação, além de reduzida, está se fechando rapidamente; não há tempo a perder’. Pachauri era até recentemente tido como menos radical do que seu antecessor no cargo, o norte-americano Robert Watson, quanto ao potencial de ameaças do aquecimento global.

Assuntos sem importância

É verdade que no domingo (13/02) O Estado de S. Paulo trouxe material em três páginas sobre a deflagração do Protocolo de Kyoto para os membros do Anexo 1 – conjunto de países ricos e industrializados que devem reduzir em 5%, em relação a 1990, suas emissões de gases do efeito-estufa até o ano de 2012.

Na sexta-feira (11/2), O Globo publicou um texto sobre o assunto e um jornal noturno da TV Globo está fazendo uma série de curtas reportagens sobre o caso. Sem falar que a Folha de S.Paulo republicou matérias do jornal inglês The Independent sobre o encontro britânico e, na segunda-feira (14/2), trouxe uma boa entrevista com o antropólogo norte-americano Michael Schellemberg, um dos autores de um trabalho recente nesta área, A Morte do Ambientalismo.

Em conjunto, no entanto, esse material aponta para duas questões. A primeira delas é a burocracia do ‘gancho’, uma espécie de justificativa para abordagem de uma questão, segundo um pensamento anacrônico que sobrevive nas redações, traduzido pela expressão estúpida do ‘não diz a que veio’. Essa filosofia rasteira foi cultivada por gerações de jornalistas do século passado, com pretensões de racionalidade. O ‘gancho’, aqui, é justamente a deflagração do Protocolo de Kyoto.

A outra limitação está na publicação de textos isolados, sem condições de oferecer aos leitores inteligibilidade possível sobre um contexto mais amplo, o que tem íntima relação com as colocações de Schellemberg sobre a esclerose do ambientalismo. Fazer especialmente jornalismo científico não é entrar em delírio com a efemeridade do chocolate holográfico, mas buscar inteligibilidade possível na compreensão dos diferentes fenômenos da realidade.

No primeiro caso, o tratamento formal leva a crer que, burocraticamente deflagrada, a entrada em operação do Protocolo de Kyoto será ignorada tão logo um assunto irrelevante, que a direção de redação julgue relevante, entre na pauta.

No segundo caso, uma cobertura quase esquizofrênica, pela compartimentação dos textos, sem um fio de conexão entre eles, banaliza um desastre em curso com assuntos sem nenhuma importância. Sem falar que os autodenominados ‘céticos’, um grupo de tolos que inclui jornalistas, insiste em discutir se o aquecimento é ou não de origem antrópica.

Pautas latentes

O fato de o Brasil integrar o Anexo 2, conjunto de países subdesenvolvidos (que o eufemismo do politicamente correto traduz para ‘emergentes’, ou ‘em desenvolvimento’) desobrigados de cortes imediatos nas emissões de gases do efeito-estufa, não deve nos levar à passividade. E a razão para isto está em pelo menos um fato: 75% nossas emissões de gás carbônico, o principal dos gases do efeito-estufa, têm como origem mudanças no uso da terra. Claramente falando, em desmatamento.

Quanto ao metano, outro gás do efeito-estufa, 68% das nossas emissões se devem à flatulência do rebanho bovino de aproximadamente 200 milhões de cabeças. O Brasil tem mais gado que gente e o padrão histórico de apropriação de terras no país é feito pelas patas do boi.

Em primeiro lugar derruba-se a mata e, em seguida, com as pastagens formadas, introduz-se o gado que gera poucos postos de trabalho e beneficia um grupo restrito de privilegiados, por uma herança escravista, confundidos com o poder legal.

Exemplo disso é a região do Xingu, uma das principais áreas de criação e engorda que até meados do século passado era dominada por populações indígenas firmemente determinadas a defender suas terras – caso dos xavantes, além de caiabis, cuicuros e calapalos, entre outros povos que os irmãos Villas-Boas protegeram no interior do Parque Indígena do Xingu.

Apenas essa característica deveria estimular pautas criativas entre nós, abrindo espaço para o encaminhamento de questões complexas de um ponto de vista social que retrocedem à época do Brasil Colônia, como é o caso da pecuária. Na Amazônia, a derrubada de um hectare de floresta, área apenas 25% maior que um campo de futebol oficial, libera na atmosfera em torno de 700 toneladas de gás carbônico.

Quem paga o pato

Prova de atualidade e truculência de pecuaristas/madeireiros foi dada no sábado (12/2), com o assassinato covarde da freira norte-americana de nascimento Dorothy Mae Stang, de 73 anos, na localidade de Anapu, às margens da Transamazônica, no Pará.

Armada de sua coragem na determinação de enfrentar a brutalidade de pecuaristas/madeireiros para quem a lei não significa nada, Dorothy foi morta com nove disparos feitos por um pistoleiro de aluguel, personagem lúgubre do Brasil Profundo.

Abatida como um bicho raivoso, seu corpo franzino, estendido numa estrada de terra vermelha, é uma metáfora do poder arcaico com eco político nas metrópoles e nas redações de jornais. Subdesenvolvimento, segundo Mario Bunge, filósofo da ciência argentino, não passa de um determinado substrato mental, substrato mental anacrônico.

No Brasil, como convém a uma elite arcaica, proprietários de jornais também são doublês de fazendeiros e de grandes criadores de galinhas, presos a uma ordem atávica que inibe uma visão crítica por uma ordem social mais racional, para dizer o mínimo.

Não temos estadistas de porte nem verdadeiros mecenas por essa mesma limitação conceitual do que é o mundo, a realidade física e o bem-estar social. Assim, com uma conquista aqui outra ali, mais por mérito da sociedade que por ação de governos, continuamos subdesenvolvidos e pagamos caro o preço por esta rendição à irracionalidade.

Os Estados Unidos, com a despudorada desfaçatez do governo Bush, pulou fora do Protocolo de Kyoto em março de 2001 (Clinton também já havia demonstrado certa má vontade, apesar da conversa ambientalista de Al Gore, seu vice), com uma série de argumentos que não escamoteiam seus reais interesses: o de privilegiados planetários. Apesar de serem os maiores usuários de energia e os piores poluidores individuais desta terceira pedra do Sol.

Uma das realidades por trás do aquecimento global, no entanto, é a desconsideração pelas fronteiras nacionais, no que isso tem de remanescente. Temporais destruidores, temperaturas anormais (baixas ou elevadas para os padrões históricos regionais), destruição de habitats com aceleração de extinções, perdas agrícolas e em outras áreas da economia são um fenômeno global. É verdade que os pobres, como sempre aconteceu no mundo, pagarão os preços mais altos. Mas agora também os ricos, como numa praga bíblica, acabarão afetados.

Editores em delírio

Qual o efeito desses cenários, por exemplo, no terrorismo internacional no futuro que se aproxima? Ou alguém dirá que essa é uma relação inexistente?

Quando escreveu um artigo sugerindo o aquecimento da Terra pelo efeito-estufa, em 1863, o irlandês John Tyndall (1820-1890) – desenhista, agrimensor, físico, matemático, geólogo, físico atmosférico, palestrante e montanhista, um desses homens que paradoxalmente ainda pertencem ao futuro – certamente enxergou apenas os desastres naturais desse efeito, sem condições de avaliar a perversidade do poder político-militar deste começo de terceiro milênio.

O Prêmio Nobel sueco Svante Arrhenius (1859-1927) também se ocupou dessas preocupações num artigo que publicou em 1896. Arrhenius ficou conhecido como propositor da panspermia, idéia de que a vida existe no espaço em forma de esporos, transportados entre mundos pela pressão de radiação da luz das estrelas.

O que Arrhenius pode não ter pensado é que a luz de uma estrela específica – o nosso próprio Sol – pudesse se transformar em ameaça real, sob a forma de radiação letal por destruição de uma camada protetora da atmosfera, o ozônio, processo desconhecido em sua época. Mas também por sufocamento no interior de uma estufa – neste caso, a Terra inteira.

Nesse contexto é necessário repensar o papel da energia nuclear, como escreveu James Lovelock, agora um cientista independente, na edição de 24 de maio passado do The Independent. Criador da Hipótese Gaia, que considera a Terra um organismo capaz de fazer sua homeostase, como nosso próprio corpo controla a temperatura em torno de 36,5º Celsius, Lovelock entende que ‘não há tempo suficiente para experimentos envolvendo fontes visionárias de energia e a civilização está em perigo iminente’. Lovelock entende que o aquecimento global é uma ameaça muito mais séria que a do terrorismo também sem fronteiras.

Entre nós, ao menos uma jovem jornalista avaliou que Lovelock deve estar com o Mal de Alzheimer, talvez por não ter tido tempo de saber quem é Jim Lovelock. Jornalistas somos falíveis como todos as outras criaturas, talvez um pouco mais, porque corremos contra o tempo. Mas não temos o direito de amplificar nossa ignorância. Ao menos devemos nos esforçar nesse sentido.

Ambientalistas apressados, com eco na mídia igualmente apressada, costumam refutar com argumentos limitados considerações como as desenvolvidas por Lovelock, ele próprio um ambientalista e membro da Associação de Ambientalistas pela Energia Nuclear (EFE). Daí o interesse das considerações feitas pelos autores de A Morte do Ambientalismo.

Discussões em torno da transgenia sugerem que o ambientalismo atual tem um componente religioso conservador ainda não reconhecido. Plantas geneticamente modificadas são uma alternativa para recuperação de áreas degradadas capazes de seqüestrar gás carbônico atmosférico como eficientes bombas biológicas.

Alinhados com o obscurantismo do papa, que repele o uso de camisinhas mesmo como prevenção contra a Aids, a ala ambientalista majoritária repele a transgenia como o demônio foge da cruz.

Quanto às fontes energéticas nucleares, Lovelock não é o único a vislumbrar as ameaças que tomam forma enquanto debates sem sentido ocupam o tempo útil para uma ação responsável. Sir Martin Rees, astrônomo real e um dos mais respeitados cosmólogos da atualidade, lançou em 2003 o livro Our Final Century, estimando em 50% as chances de extinção da civilização por problemas que vão de desastres ambientais à liberação, acidental ou não, de microorganismos letais.

Mas, como a jovem repórter, é possível que editores, secretários e diretores da mídia avaliem que não só Lovelock, mas também Rees, estejam delirando, vítimas do Mal de Alzheimer.

Num cenário destes, perdoem-me os prováveis leitores pela metáfora de gosto duvidoso, acabaremos, literalmente, fritos.