Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mídia ignora o contexto histórico

O Observatório da Imprensa propôs uma enquête a respeito da cobertura da mídia em relação à questão dos planos de saúde, e após apostar meu voto como ‘não’, verifiquei que também essa era a opinião majoritária dos leitores. Creio poder acrescentar um pouco de luz a esse complexo assunto.

Evidentemente que a mídia, em especial jornais, TVs e rádios, comentam o assunto – mas de maneira nem sempre clara: fico imaginando o que o cidadão consegue absorver de toda essa confusão, em que nem sempre ‘mocinhos’ e ‘bandidos’ são claramente definidos, e como a sociedade parece estar apartada de toda essa confusão. Em outras palavras, onde isso tudo começou? Acredito firmemente que no afã de dar a informação imediata com as fontes atuais, rapidamente editadas e prontas ao consumo, um jornalismo prêt-à-porter, haja uma, digamos, preguiça em se aprofundar na questão.

Começo nos idos dos anos 1950. Apesar de o Brasil começar a dar passos largos em direção à industrialização, empresas estatais de monta, o caminho para a construção de Brasília etc., sem entrar nos meandros políticos de Getúlio Vargas e Juscelino, a atenção à saúde ainda era feita de modo similar ao de muitas décadas anteriores: o médico era efetivamente um profissional liberal, geralmente com boa formação – poucas e boas escolas médicas existiam no país, os estágios no exterior eram quase regra. Esse médico conseguia auferir honorários satisfatórios e atendia em consultórios e internava em hospitais privados ou, como no Rio de Janeiro, em ‘casas de saúde’, denominação que até hoje persiste, que freqüentemente eram de propriedade dos mesmos médicos. Aqueles que podiam pagar por consultas, exames (os que havia à época) e cirurgias o faziam diretamente a médicos e hospitais. A esmagadora maioria da população não tinha acesso a essa cara medicina, e dependia da instituição – ainda nos dias de hoje padrão para população de baixa renda – as Santas Casas ou, em capitais e cidades importantes e de maior porte, alguns hospitais públicos.

Eis que são criados os Institutos de Previdência por categoria de trabalhadores – comerciários, industriários, bancários e assim por diante, seguindo o modelo getulista dos sindicatos atrelados ao Ministério do Trabalho e com independência relativa. Os funcionários públicos ganharam também seus hospitais e institutos de assistência próprios. Essa modalidade inaugurou para o médico o mercado de trabalho como contratado, perdendo a característica liberal da profissão, além de criar uma certa casta de cidadãos não-ricos, mas pertencentes a categorias específicas de trabalhadores, talvez uma classe média ou média baixa pelos padrões de então, que conseguiam atenção à saúde de melhor qualidade que a dispensada ao grosso dos brasileiros.

Pois bem, não sei se os jornalistas de hoje têm conhecimento de alguns fatos de capital importância que ocorreram em meados da década de 1960, após o golpe militar.

Escolas às pressas

Quase que simultaneamente o governo acabou com os institutos por categoria de trabalhadores e reuniu-os num só: o famoso INPS, que além de assistência médica cuidava da previdenciária. O outro fato, que parece não ter ligação, talvez seja o ‘big bang’ da questão: São Paulo, a capital, tinha apenas duas faculdades de Medicina: a da USP e a Escola Paulista de Medicina (hoje Unifesp). O concurso vestibular, classificando os candidatos por pontos, evidentemente preenchia as vagas com os que obtinham as maiores notas, mas dada à acirrada concorrência pela profissão, a diferença entre os que entravam nos cursos e os que não conseguiam muitas vezes era irrisória: parece simples – os que não conseguiam passar no vestibular não eram ineptos ou incapazes – simplesmente havia um número fixo de vagas e uma classificação aritmética. Mas começou a ocorrer algo estranho…

Os candidatos que ficaram muito próximos de uma vaga, mas não conseguiram entrar, passaram a se autodenominar ‘excedentes’, e iniciaram um movimento reivindicando a abertura de novas escolas médicas. Esse movimento não tinha cunho ideológico, e era mesmo apoiado pelos ricos pais desses alunos que sobravam. Um dado que pode soar absurdo: em pleno governo Costa e Silva eles é que faziam passeatas, distribuíam panfletos, faziam publicar suas opiniões nos jornais e, aparente non sense, passaram a acampar, até à definição da questão, em frente ao então palácio do governo nos Campos Elíseos. A polícia os colocou para correr, prendeu etc.? Não. O próprio governador paulista da época, Laudo Natel, foi ao encontro desses estudantes e lhes deu todo o apoio. Na esfera federal não foi diferente: o ministro da Educação era Jarbas Passarinho, que também comovido (?) com essa situação tratou de modificar as leis.

E passaram a ser criados cursos de Medicina em unidades públicas, como a Unicamp, e em fundações privadas, como na Santa Casa de São Paulo e cidades do interior paulista. Vale ressaltar que essa primeira abertura de escolas médicas atendeu a esse estranho reclamo dos ‘excedentes’. Em dois anos, São Paulo chegou a 17 escolas médicas, formadas às pressas, sem corpo docente qualificado, instalações e mesmo sem hospital próprio!

Lei do mercado

É curioso que muitos alunos das primeiras turmas dessas novas escolas conseguiam com facilidade (leia-se tráfico de influência na maioria dos casos) transferência para a Faculdade de Medicina da USP, graduando-se por lá, fazendo residência no Hospital das Clínicas e praticamente apagando o passado numa das novas escolas. Professores-titulares da importante FMUSP conseguiram se tornar excelentes médicos, alguns até já aposentados e outros na ativa, mas no vestibular entraram na incógnita de escolas criadas às pressas.

Aí se faz o link com planos de saúde: não há documentação, mas evidências, conversas, depoimentos em off, e o presente parece mesmo confirmar o que por muito tempo julgou-se uma teoria de conspiração alucinada ou até mesmo subversão: esses alunos que acampavam nada tinham contra a política do governo, muitos deles filhos de médicos e professores importantes. Muitos outros não dispunham de ‘pistolão’, e acabavam por estudar e se formar nas ditas escolas particulares. Qual é a provável versão? O governo militar, percebendo que a categoria médica era unida e mesmo corporativista, resolveu encarar a questão de maneira a colaborar com essas reivindicações de elite, ao mesmo tempo em que passou a jogar cada vez mais na possibilidade da privatização dos serviços à saúde, desonerando o Estado nesta questão básica.

Foi nesse mesmo tempo que foram criadas as empresas de medicina de grupo, cuja mão-de-obra majoritária provinha dos alunos formados nas escolas novas. Lei do mercado – mais médicos procurando emprego, menores salários, pior formação profissional.

Sem diálogo

O que veio depois era previsível: mais novas escolas, outras entidades privadas entrando na atenção à saúde, como seguradoras e planos de autogestão. Em especial as medicinas de grupo e as seguradoras tinham óbvios interesses mercantis, visando o lucro. É claro que o trabalho tem que ser remunerado, ou por honorários pagos diretamente ao prestador ou por salários compatíveis com as garantias trabalhistas. Mas tais empresas trabalhavam (e ainda trabalham, é claro) com base em obtenção de lucros. E em todos os Códigos de Ética médicos que vigoraram no Brasil, até o atual, é vedado o exercício mercantil da profissão.

Há outro dado pouco comentado: criados paralelamente ao sistema estatal de atendimento médico, os planos de saúde não obedeciam a nenhum diploma legal! Não havia nenhuma lei que regulamentasse seu exercício, assim como também não havia o Código do Consumidor. A questão só veio a ser abordada, e de modo confuso, em 1999, com a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar e uma lei que ditava regras para o setor, para contratos feitos a partir dessa data. Quem era beneficiário ou afiliado de uma empresa antes disso chegava ao cúmulo de nem ter contratos, e quando os havia presenciavam-se cláusulas leoninas, reembolso de honorários com base em complicadíssimas fórmulas de cálculo baseadas em tabelas das próprias empresas que, por mais incrível que possa parecer, eram (e ainda são) mantidas em segredo pelas empresas!

Os médicos que passaram a depender mais e mais dessas fontes pagadoras, assim como hospitais e outros prestadores de serviço, não conseguiam diálogo com as empresas, que pagavam (a ainda pagam) o quanto querem. As entidades médicas de todo o Brasil, unidas a importantes órgãos acadêmicos de economia, como a Fipe-USP, chegaram a valores até muito diplomáticos: pelos cálculos feitos, uma consulta médica, a unidade mais simples de um atendimento médico, vale 42 reais. Mas a quase totalidade dos planos de saúde paga uma média de 20 reais, havendo quem pague 15 reais e até mesmo 8 reais por uma consulta!

Sem ideologia

Nessa confusão atual, o representante das seguradoras, quando entrevistado, usa a mesma ladainha: os médicos pedem muitos exames, cada vez menos Raios X simples e cada vez mais tomografia e ressonância. Ora, isso é um absurdo, pois ignora os avanços tecnológicos e científicos em benefício da população. E mais: joga a culpa no médico, que tem que atender uma infinidade de pacientes a um valor muito baixo (uma consulta particular nos dias de hoje em média vai de 150 reais a 300 reais), e não raramente tem que pedir uma quantidade maior de exames para beneficiar o paciente. Não seria mais lógico pagar melhor o médico, que com mais tranqüilidade exerceria sua atividade com mais tempo e até poderia dispensar alguns exames?

Esse é o típico raciocínio empresarial de uma seguradora, para quem um seguro-saúde é exatamente igual a um seguro de automóvel ou de um imóvel.

Essa não é uma questão ideológica, tampouco corporativista ou demagógica: há planos de saúde que contemplam bem segurados e médicos e que nem são citados pela imprensa, pois os conflitos que existem são poucos e resolvidos civilizadamente em reuniões. Mas a grande maioria atua desse jeito, e a Justiça está tendo que dar liminares e liminares em todo canto: o que acontecerá no julgamento do mérito?

Estudem a história

Solução mágica não há: discordâncias judiciais são grandes, médicos e usuários reclamam e a mídia reproduz o que acontece no dia de hoje, ou ontem, furtando-se ao papel de esclarecimento e de atuação em benefício da sociedade. Um princípio, contudo, deve ser enaltecido ao máximo: os Estados Unidos quase não têm serviços públicos de saúde, e conseqüentemente a excelente qualidade da medicina lá exercida só serve aos que detêm planos privados de saúde. Já Canadá, Europa (incluindo o Reino Unido), Austrália, Nova Zelândia e especialmente a Escandinávia já há tempos chegaram à mais óbvia das conclusões: saúde é coisa séria demais. Os médicos que decidirem exercer clínica privada que o façam por sua conta e risco, mas o Estado provê serviços de boa qualidade.

Tenho pacientes brasileiros que moraram na Inglaterra ou na Nova Zelândia, por exemplo, suas empresas forneciam planos privados de saúde, mas eles preferiam o sistema público. Isso fala por si só. E nunca é demais lembrar que são quase 40 milhões de brasileiros que têm algum tipo de plano de saúde, e os demais dependem do SUS, que é um grave assunto à parte.

Meus prezados jornalistas: procurem não apenas as fontes de agora, a notícia de hoje, mas estudem um pouco essa questão historicamente. Algumas dicas foram dadas acima. Contextualizando, a imprensa estará cobrindo como deve e com louvor essa questão, que é complicada e espinhosa, mas fundamental por ser um dos direitos básicos do ser humano.

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Médico, mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo, ex-conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo