Parece que o Ministério Público (MP) está extrapolando das suas funções de proteger a sociedade da criminalidade: quer passar a discutir conduta médica. E a imprensa apenas registrou acriticamente a iniciativa.
Quem me conhece sabe que sou crítico, e ‘como pau que bate em Pedro, bate em Paulo’, me sinto à vontade para comentar este abuso dos promotores, que estão mostrando imperícia no que fazem e dizem. Começando pelo motivo do não-arquivamento do caso. Para justificar a recusa no arquivamento do processo, o MP afirmou que o laudo indicava ‘como causa da morte infarto agudo do miocárdio consecutivo a múltiplas paradas cardiorrespiratórias’. Ora, é óbvio para qualquer médico que se trata de ‘múltiplas paradas cardiorrespiratórias causadas por infarto agudo do miocárdio resultando em morte’! Não foram as paradas cardíacas que provocaram o infarto (falta de irrigação sangüínea do músculo cardíaco por constrição das artérias coronárias), mas o uso crônico de cocaína, resultado fartamente documentado (http://usuarios.uninet.com.br/~mbarj/cocaina.htm).
Qualquer leigo pode descobrir na internet o que ocorre com o usuário de cocaína, com ou sem álcool, para saber desta conseqüência na área cardíaca. Cabia à mídia debater esse assunto. Considerar esta conseqüência facilmente evitável é muita pretensão de onipotência dos promotores. Nos Estados Unidos, onde é mais freqüente o uso, este resultado é extremamente previsível. Mas como na época o Instituto Médico Legal (IML) negou existir qualquer prova deste uso, preferiu atribuir a causa do extenso infarto, na época, a reanimações múltiplas (só se reanima o que parou). E para isto já tentaram provar, em 2002, que o Plasil era a causa do suposto erro médico, por produzir paradas sucessivas do coração. Nunca foi descrito este efeito da droga, via erro médico.
Mas o MP saiu da área do erro médico para discutir procedimento. Quer impor sua opinião, extrapolando sua função, sobre a conduta terapêutica a seguir. E, para isto, em sua incompetência, levou três anos pesquisando, visto que visto que não está estabelecida em lugar algum uma ‘conduta correta’ – se estivesse, O MP teria acusado na hora. Baseia-se o MP na opinião de pessoas não-afeitas às salas de emergência: uma farmacêutica, que tirou sua opinião dos livros, após três anos, e uma colega (minha, não deles), médica legista.
Uma das vítimas
Duvido que seja uma conduta médica de aceitação pacífica que se proceda a uma ‘lavagem gástrica’ ‘por via das dúvidas’, visto sempre ter sido negado o uso de cocaína e álcool, até mesmo pela análise do IML até hoje, numa paciente com extrema irritabilidade miocárdica (podia fibrilar ao menor estímulo), como se encontrava Cássia. Além do mais, seria discutível se uma lavagem gástrica removeria cocaína que absorvida pela mucosa nasal.
Poderíamos, igualmente, atribuir aos promotores ‘a falta de aptidão para o exercício da profissão’, visto estarem querendo discutir uma outra em que se acham suficientemente capacitados para ditar conduta e emitir juízo de valor sobre pessoas, opiniões impróprias de servidores públicos. Este julgamento deveria ser função do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio.
Não informou até agora o MP – e a imprensa não cobrou – à classe médica e muito menos à sociedade, que vê seus filhos não tão famosos tolhidos na juventude pelo uso de drogas ilícitas, que este resultado é o esperado. Afinal, Cássia é apenas uma das vítimas que, todos os anos, são registradas nas emergências médicas por uso desta mistura de drogas (não de Plasil). Se o MP tivesse feito seu trabalho na busca dos traficantes, talvez Cássia Eller tivesse deixado de conseguir drogas e procurado tratamento médico.
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Médico, Porto Alegre