Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Mídia omite decisões judiciais sobre transgênicos

Apesar do gancho oferecido pelo confronto entre a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) e o Greenpeace Brasil, a chamada grande imprensa brasileira não fez, ao longo dos últimos dez dias, referência alguma a uma importante reportagem veiculada pela revista norte-americana Science em sua edição de 23 de fevereiro: três tribunais federais dos Estados Unidos exigiram estudos de impacto ambiental para plantios experimentais de sementes transgênicas.

Não é o caso de desconhecimento geral da reportagem ‘U.S. Courts Say Transgenic Crops Need Tighter Scrutiny‘ [Cortes dos EUA afirmam que sementes transgênicas precisam de exame mais rigoroso] (Science 23/2/2007: Vol. 315. no. 5815, pág. 1069). Editada pela AAAS (American Association for the Advancemente of Science), a revista, que é semanal e se dedica especialmente à publicação de artigos de cientistas, mantém a seção de reportagens ‘News of the week’, cujos textos são compreensíveis pelo público não-especializado.

Além do website da Science, a reportagem foi divulgada no Brasil, na quarta-feira (28/2) – dessa vez com o texto integral – para jornalistas, ambientalistas e especialistas em meio ambiente por e-mail do atento David Hathaway, da ONG AS-PTA (Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa), ferrenha opositora dos transgênicos. Nem assim teve repercussão.

Plantios experimentais

Assinada pelo jornalista Dan Charles, a matéria comenta as decisões de cortes federais distritais em San Francisco, na Califórnia (12/2/2007), na capital Washington (5/2) e no Havaí (agosto de 2006), todas elas referentes a ações propostas pela organização não-governamental Center for Food Safety contra aprovações de plantios experimentais de sementes transgênicas pelo USDA (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, o ministério da agricultura do país).

A primeira sentença suspendeu a aprovação pelo USDA do plantio da alfafa Roundup Ready, desenvolvida pela Monsanto e pela Forage Genetics International, destinada a dar resistência ao herbicida glifosato. Em sua sentença, o juiz federal distrital Charles Breyer afirmou, segundo a reportagem, que o USDA violou o National Environmental Protection Act (Lei Nacional de Proteção Ambiental) por não ter exigido previamente estudo de impacto ambiental e que essa missão se agravara pelo fato de já existirem plantios de soja e de milho transgênicos resistentes ao glifosato.

Will Rostov, procurador da ONG e autor das três ações, qualificou a decisão como ‘mais um prego no caixão’ da abordagem omissa do USDA em relação à regulamentação. O advogado Stanley Abramson, que trabalha para diversas empresas de biotecnologia, anunciou que vai recorrer das três decisões em cortes superiores.

O segundo veredicto, diz a matéria, anulou a aprovação do USDA de plantios em uma área de 163 hectares em Madras, no Oregon, de sementes para gramados (turf grass), e a terceira sentença referiu-se ao licenciamento pelo ministério de plantios, também experimentais, de variedades de cana-de-açúcar e de milho desenvolvidas para produzir fármacos ‘sem considerar as numerosas espécies ameaçadas do estado’.

Equilíbrio e bom senso

Para quem vem acompanhando a questão dos alimentos transgênicos na mídia, não é estranha a omissão a essa reportagem, pois o tema se tornou uma guerra de desinformação. Com o perdão pela autocitação e pelo comodismo de não querer escrever a mesma coisa com outras palavras, quase nada mudou desde que eu disse quatro anos atrás, em outro artigo:

‘Dependendo da fonte, o leitor, telespectador ou ouvinte estará convencido de que já está provado que os produtos transgênicos são inofensivos à saúde e ao meio ambiente, ou justamente do contrário; também estará convencido de que o Brasil pode `perder o bonde da História´ para impulsionar sua agricultura e ganhar mercados se não cultivar esses alimentos, ou de que o país poderá se beneficiar da preferência de consumidores europeus que rejeitam essa inovação da genética.

‘Diversas metáforas e comparações têm sido usadas por ambos os lados: os contrários aos transgênicos sendo mostrados em pé de igualdade àqueles que em 1904 promoveram a grande revolta contra a vacina da varíola no Rio de Janeiro; e os favoráveis a esses alimentos comparados como os pesquisadores otimistas que apoiaram o uso do inseticida DDT, hoje proibido em vários países por seus efeitos danosos à saúde e ao meio ambiente.’ (‘Os transgênicos e a guerra da desinformação‘, 13/4/2003, Boletim Galileu)

Raros têm sido na mídia os apelos ao bom senso e ao equilíbrio nesse tema. Raramente são publicadas reportagens ou artigos elaborados com consciência da complexidade que ele envolve, em seus aspectos científicos, ambientais, econômicos, sociais e até geopolíticos. Na contramão dessa tendência, a Folha de S.Paulo publicou no domingo (4/3), no caderno ‘Mais!’, duas ótimas resenhas do seu colunista Marcelo Leite, que estão disponíveis na web no post ‘Transgênicos na estante’, em seu blog Ciência em Dia.

Ausência de participação

Uma importante contribuição para um verdadeiro debate sobre os alimentos transgênicos no Brasil está disponível desde junho do ano passado. Trata-se do artigo ‘Transgênicos e percepção pública da ciência no Brasil‘ (Ambiente & Sociedade, vol.9, nº 1, Campinas, jan/jun 2006), de Julia S. Guivant, professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenadora do Núcleo em Sustentabilidade e Redes Agroalimentares (NISRA).

Em seu artigo, a pesquisadora da UFSC analisa diversas pesquisas sobre percepções de consumidores, produtores, cidadãos em relação ao uso de alimentos transgênicos, estabelecendo comparações entre as desenvolvidas no Brasil, na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos. Segundo ela, ‘a falta de pesquisas, o seu número limitadíssimo é aqui considerado uma evidência para caracterizar a trajetória da polêmica no Brasil, com uma significativa ausência de participação pública nos debates sobre transgênicos’.

O artigo da professora Julia S. Guivant poderia pelo menos servir para arejar as cabeças dos chamados formadores de opinião.

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Jornalista