O editorial do Estado de S.Paulo de quarta-feira (15/3), ‘A vitória da incompetência’, é, indiscutivelmente, a materialização do título desse artigo. Jamais se viu tamanha desfaçatez na expressão oficial de um jornal brasileiro.
Sem meias palavras, está dito nele que o governo age como ingênuo no mercado internacional ao dizer a verdade aos consumidores dos produtos transgênicos cultivados no Brasil. A rotulagem que discrimina a informação de que os carregamentos exportados ‘contêm’ produtos geneticamente modificados simplesmente não deveria existir, na avaliação do editorial. Corresponderia tal postura a uma incompetência diante dos concorrentes que não falam a verdade, mas apenas meia verdade, como seria o caso de Estados Unidos, Austrália, Canadá e Argentina. Em vez de rotular ‘contém’ em tal ou qual carregamento de alimento organicamente modificado, o conveniente seria a rotulação de que ‘pode conter’. Se os concorrentes dizem meias verdades, por que o Brasil diria a verdade inteira?
A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, seria fantasiosa em sua defesa favorável à verdade, enquanto a posição contrária, em favor da meia verdade defendida pelo ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, conteria o essencial bom senso. Marina Silva disse que o país estará dando exemplo internacional de comportamento ético na relação com os consumidores dos produtos brasileiros no mercado internacional. Os consumidores, mais cedo ou mais tarde, segundo ela, exigiriam dos demais países produtores comportamento ético semelhante ao que o Brasil passa a adotar quando rotula os alimentos transgênicos.
Crise maior
O Estadão, com falsa moralidade, considera posição antinegocial a adotada pela ministra Marina Silva, que estaria, com a sua fantasia ética, apenas favorecendo movimentos dos trabalhadores sem terra para combater a agricultura transgênica que se desenvolve a passos largos no Brasil, com oxigênio financeiro internacional farto por meio do agronegócio. A priori, o Estadão consideraria simplesmente burros os consumidores internacionais dos produtos geneticamente modificados produzidos no Brasil e nos outros países concorrentes. Eles tomariam conhecimento da honestidade brasileira anunciada previamente e, sem raciocinarem, passariam ao consumo da desonestidade estrangeira, ou da meia honestidade, como talvez ache mais adequado dizer o Estadão.
Não analisa o jornal que o comércio internacional, como a realidade, é dual: produção-consumo, positivo-negativo, singular-plural, masculino-feminino, yin-yang etc. São partes intrínsecas do real-concreto em movimento em processo de negação dialética no qual as contradições buscam, dialeticamente, a sua superação. Não é só produzir e mentir que faz com que o produto se realize no consumo. Pode ser e pode não ser. Se o consumidor perceber que o produtor mente, ou fala meia verdade, a produção pode não se realizar no consumo.
Produção e consumo, sob o capitalismo, vivem antagonismo permanente em decorrência de o sistema caminhar para a sobreacumulação de capital como sua própria essência. Esta, por sua vez, impõe intrínseco desequilíbrio entre oferta e demanda. Jamais existiu o mundo imaginário de Jean Baptiste Say, pai espiritual dos neoliberais, de que toda oferta gera demanda correspondente. Marx disse que Say teria razão se as mercadorias que vão ao mercado fossem vendidas sem lucro. Como acontece o contrário, o lucro desequilibra a oferta entre capital e trabalho e gera historicamente, segundo Marx, crônica insuficiência relativa de demanda global. Inicialmente, diz, o capitalista joga dois valores na circulação para produzir mercadorias: C+V, sendo C, capital constante – máquinas, matéria primas e insumos vários – e V, capital variável, mão-de-obra. Contudo, ele retira da circulação não só dois valores, C+V, mas, sim, três, C+V+S, sendo S o lucro.
De onde vem S?, pergunta Marx. Ele mesmo responde: não vem. O valor que o trabalhador produz em forma de mercadoria é superior ao valor que recebe em forma de salário, de forma que a totalidade do valor em salário torna-se insuficiente para consumir a totalidade do valor em mercadoria que vai ao mercado para ser vendida com lucro. Há um gap, expresso na insuficiência crônica de consumo que descamba para o subconsumismo, jogando a taxa de lucro no chão e fazendo emergir o fenômeno deflacionário.
As crises deflacionárias do século 19 deram razão ao autor de O capital. Elas levaram à crise maior de 1929, que destruiu a dinâmica capitalista a partir da produção dos duráveis. Keynes percebeu isso no início do século 20 quando pregou a necessidade de mudar o padrão-ouro para a moeda estatal inconversível a fim de dar solução à insuficiência crônica de consumo que o sistema vive sob o laissez-faire. Por isso, o famoso economista inglês teve que romper com seus antigos professores neoclássicos, equilibristas e marginalistas, como Alfred Marshall.
Desconfiança crescente
O Estadão, com a sua falta de conhecimento e sensibilidade histórica, adicionou mais um problema à eterna e crônica insuficiência consumista que afeta a economia capitalista brasileira há mais de duas décadas, no já longo período da Nova República, de 26 anos, durante os quais o PIB médio tem sido de ridículos 2,5% ao ano, depois que a crise monetária dos anos de 1980 impôs o FMI e os credores para gerenciarem a política econômica brasileira.
A proposta do editorial do jornal mais sisudo do país, simplesmente, leva perigo ainda maior ao problema da escassez de consumo decorrente de modelo de desenvolvimento concentrador de renda e poupador de mão-de-obra. Se vamos mentir num mundo no qual o consumidor está ávido da verdade, podemos vender menos, e não mais, ou seja, podemos criar problemas, e não soluções, para a crônica insuficiência de demanda que sufoca o capitalismo tupiniquim no qual predomina a maior contradição entre produção e consumo: a mais alta taxa de juro, que impede a realização da primeira no segundo.
Tão disponível como sempre para aplaudir o capital e a prática capitalista, o Estadão não lança sequer mão da razoabilidade: descarta que uma das vantagens para realização da venda, isto é, a afirmação da produção no consumo, seja a originalidade de comportamento na colocação do produto no mercado como elemento de marketing, no mínimo. O atrativo da verdade é muito mais interessante do que a mentira. A verdade desvenda a mentira e liberta o homem; a mentira não desvenda a verdade e o escraviza.
O Estadão propõe a mentira como estratégia de venda, para não se afastar dos concorrentes, mas esquece, ou melhor, não admite que a verdade, com seu atrativo irresistível à consciência humana, pode ser melhor negócio. Se a rotulação verdadeira dos alimentos geneticamente modificados conquistar as consciências ávidas de verdade, o resultado, naturalmente, será maior volume de vendas, e não o contrário, como prevê o Estadão, cujo princípio moral expresso em sua defesa é a da simples esperteza.
A verdade, então, estaria dando solução, e não criando problemas, para atenuar os antagonismos permanentes entre produção e consumo sob o capitalismo nacional. O próprio Estadão já veiculou matéria dando conta de que o mercado internacional tem sido acessível em escala crescente à crítica tanto aos produtos transgênicos como aos que são produzidos com agrotóxicos. A desconfiança da sociedade global relativamente aos alimentos geneticamente modificados é cada vez maior. A consciência em favor da preservação do meio ambiente mobiliza a humanidade para materializar, enfim, a pregação de Hegel segundo a qual ‘a relação entre o homem e a natureza passa pelo homem’. A produção de transgênicos ameaça essa relação fundamental, como admitem estudiosos de diversas tendências.
Mentira e caráter
A natureza não é fato objetivo no exterior do homem. Ela é a extensão do homem. O homem, portanto, se tornará cada vez mais humano se jogar com a verdade em relação à natureza, ou melhor, em relação a si mesmo, sabendo que a natureza é extensão de si colocada a serviço de si de forma consciente. Por que duvidar que a estratégia da ministra Marina Silva possa obter êxito, já que ela busca atender essa demanda global progressivamente intensa em favor da verdade sobre o que se consome da natureza?
A opção pela mentira marca o caráter de quem a defende. Se mentir é o melhor a ser feito para promover os negócios, se a ética da mentira é a verdade utilitarista que não pode ser abandonada, nunca, mesmo que tenha de sempre enganar e prejudicar o consumidor – afinal, as controvérsias sobre a validade, para a saúde das pessoas, dos alimentos geneticamente modificados estão em pleno curso em todo o mundo –, o Estadão, com sua ética de resultados, joga por terra a moralidade que prega contra os movimentos sociais.
Se a ética do capital do agronegócio, se a ética da propriedade privada – contra a qual o MST tem investido, para, evidentemente, chamar a atenção da sociedade de que os trabalhadores sem terra assim agem por não terem acesso à propriedade privada da qual o Estadão é apóstolo – deve ser a mentira, a posição do jornal, que a defende, torna-se hipócrita, quando comparada à pregação ética que faz relativamente aos assuntos políticos.
Se defende a mentira para a realização de negócios, por que condenaria, como faz com falso moralismo, a mentira dos que receberam mensalão e negam que o fez para fazer caixa dois aos partidos aliados do governo? Em a ‘Vitória da incompetência’, o Estadão deixa claro que a competência é saber mentir, como fazem os concorrentes, esquecendo que a realização da produção deles pode não se dar no consumo, se os consumidores forem conquistados pela mensagem verdadeira do produto brasileiro. Por que não apostar na inteligência do consumidor?
Negação da negação
A visão parcial da realidade que o Estadão adota, tomando, acriticamente, posição favorável à produção ao mesmo tempo em que desdenha a posição a favor do consumo é típica dos que comandam o modelo de desenvolvimento em curso no Brasil. Não enxerga a dualidade da própria realidade. Vê a realidade de acordo com a filosofia formalista, mecanicista, utilitarista e positivista, já historicamente ultrapassada pela crise liberal de 1873-1893, que desembocou em conflito bélico em 1914 e em crash global em 1929.
Enquanto o capitalismo foi revolucionário, a visão dialética era cultivada. Mas, depois que os antagonismos desencadeados pelo processo de acumulação se revelaram irresistíveis em suas contradições intrínsecas, o capital deixou a dialética – ‘o azimute da burguesia’, segundo Marx – de lado e abraçou o formalismo filosófico, a partir do qual construiu ideologias marginalistas, equilibristas, esquizofrênicas, mentirosas. Os formalistas conservadores cuidam, apenas, de ressaltar o lado positivo da realidade que lhes interessa. Esquecem que no contrapolo dela avança a negatividade, que, segundo Hegel, representa a própria realidade negando a si mesma em processo de mudança. ‘Tudo muda, só não muda a lei do movimento segundo a qual tudo muda’, diz ele. O negativo, por exemplo, é o crescimento medíocre do PIB de 2,3% no ano passado. É a negação das medidas adotadas pelo governo para administrar o capitalismo tupiniquim em crise. O positivo se transformou em seu contrário.
Não é por outra razão, por ver, tão-somente, um lado das coisas, que o Estadão – e os demais grandes jornais brasileiros – não consegue perceber que o MST, por exemplo, é a negação do agronegócio, que, em si, é a negação do desenvolvimento sustentável. Negação da negação. Ele cresce no pólo oposto da grande propriedade que expulsa do cenário a pequena propriedade quanto mais a lógica do agronegócio se realiza no mercado global mediante crescente acumulação de capital.
A mentira tem sido, com aplauso do Estadão, a matéria-prima fundamental do agronegócio para conquistar mercado. A opinião pública mundial tem despertado de forma crescente para a crítica a ele. Os alimentos produzidos pelo agronegócio, cujo resultado é o desequilíbrio crescente da natureza, são, igualmente, o seu contrário, os antialimentos, alvos dos cientistas quanto a sua validade para o consumo humano.
O homem é um detalhe
Esse lado da questão não merece o mesmo espaço nas páginas dos jornais para avaliar a extensão do positivo que representa, aos olhos da grande imprensa, o chamado agronegócio, mas que, na verdade, é, também, o negativo que caminha para a superação da contradição. Veja o exemplo da devastação das reservas florestais no Cerrado. São transformadas em lenha, enquanto abrem espaço à produção de soja. A primeira queima o minério de ferro que se vende para a China, maior consumidora mundial de aço. A segunda segue para o Japão e a Europa alimentarem animais que se transformam em proteínas para o consumo humano. O resultado tem sido o rompimento do equilíbrio ecológico, algo que se dá em escala nacional.
O desequilíbrio ecológico, igualmente, é a negação do agronegócio, que se desenvolve atualmente destruindo a pequena propriedade e devastando a natureza. Como o MST está, fundamentalmente, na linha de defesa do equilíbrio ecológico e da propriedade comunal solidária, como arma política contra o agronegócio, ele é, intrinsecamente, a negação de tal desequilíbrio que o agronegócio promove.
O Estadão, atento, apenas, a um lado da questão, toma visão parcial de defesa cega do agronegócio e se recusa a analisar a negatividade – ou seja, a realidade – que o MST representa no contexto da totalidade do desenvolvimento econômico que envolve a natureza e o homem. Não percebe que a radicalidade do MST é a radicalidade que a sociedade reclama para evitar o próprio desequilíbrio ecológico. Afinal, esse conspira contra o desenvolvimento sustentável, impondo a instabilidade com a qual se compromete o Estadão quando cegamente combate a negatividade que o MST historicamente significa como pólo oposto ao desenvolvimento insustentável que o agronegócio alavanca.
Para o Estadão, naturalmente, a relação entre o homem e a natureza não se dá como formula Hegel, ou seja, que essa relação, necessariamente, passa pelo homem. Passa, sim, para o Estadão, em primeiro lugar, pelos interesses do agronegócio. O homem é um detalhe que se trabalha por meio da mentira. Grande Estadão!
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Jornalista e empresário