Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Mudança de paradigmas na energia nuclear

Depois de um histórico e convincente artigo escrito pelo cientista independente e pai da Teoria Gaia, James Lovelock, publicado pelo jornal inglês The Guardian e reproduzido aqui pela Folha de S. Paulo dois anos atrás, mais um nome insuspeito, ligado ao ambientalismo, defende enfaticamente a energia nuclear como forma de minimizar o efeito-estufa, o aquecimento da atmosfera da Terra.


Na segunda-feira (17/4), um longo artigo escrito por Patrick Moore, um dos fundadores do movimento ambientalista internacional Greenpeace, apareceu no jornal norte-americano Washington Post com uma determinada defesa da adoção de fontes nucleares como forma de produção de energia em substituição aos combustíveis fósseis.


O texto de Patrick Moore, que enumera uma série de benefícios comparativos da energia nuclear – sem desconsiderar alguns de seus riscos, como o uso indevido de material radioativo para eventuais ataques terroristas, por exemplo – não repercutiu na mídia e nem foi traduzido por publicações nacionais.


Esse descaso envolvendo uma radical mudança de posição por parte de um dos fundadores do mais cinematograficamente combativo grupo ambientalista reflete o conservadorismo da mídia, especialmente da mídia impressa.


Jornalismo estatístico


Jornalistas, de forma geral, não estão muito distantes da opinião média da população em relação a temas menos ortodoxos como transgenia, para muitos a invasão do sagrado pelo profano. Ou seja, a manipulação da vida pelo conhecimento científico. Trata-se de uma posição muito próxima de certo fundamentalismo religioso, ainda que esse tipo de observação possa desencadear a reação irada e cínica de muitos.


Jornalistas, ainda de forma geral, costumam fixar-se a uma série de princípios inconsistentes para dar sentido à loucura cotidiana de correr contra o relógio. Um deles, em certo desuso pela súbita alternância de gerações nas redações – mais por demérito que por mérito – costumava questionar, a respeito de qualquer questão menos óbvia: ‘Não diz a que veio’.


Ninguém identifica o autor desta tola filosofia de botequim, mas a verdade é que ela foi durante anos um claro divisor de águas entre o óbvio e o nem tanto.


O Universo inteiro não diz – e certamente nunca saberemos, a menos que alcancemos a transcendência dos iluminados – a que veio, por que existe e por que nós, os humanos, estamos aqui.


Quando Lovelock escreveu seu artigo, uma jovem jornalista, recentemente saída das fraldas, sugeriu num desses grupos de discussão online – onde cada um despeja seus sacos de lixo sem ter que pagar um analista – que provavelmente ele estava esclerosado.


A verdade, no entanto, ao que tudo indica, é que a esclerose não é necessariamente questão de idade, mas de predisposição pessoal. Alguns nascem esclerosados ou contraem esse empanamento intelectual muito precocemente, e podem conviver com ele muito tempo sem ao menos se dar conta.


No Brasil, onde mesmo o que dá certo acaba dando errado – temos o maior estoque de água doce do mundo e aqui falta água potável; somos potência na produção de combustível alternativo, mas comparativamente ele custa neste momento mais do que o petróleo não renovável – a energia nuclear costuma ser território opinativo de uns poucos. E os argumentos utilizados, freqüentemente para recusá-lo, são quase sempre econômicos. O problema é que se a vida dependesse das viabilidades apresentadas pelos economistas a Terra seria um planeta tão estéril como um mundo formado por chumbo derretido.


Os economistas, que certo jornalismo estatístico incensa, são os reis da impossibilidade. A menos que a questão seja aumento de tributos. Aí, sim, sempre existe uma margem adicional de manobra.


Sistema preventivo


De volta ao artigo de Patrick Morre, o que de fato interessa neste espaço: ele confessa com a transparência de quem se descobriu equivocado que no começo dos anos 1970, como a maioria das pessoas, enxergava a energia nuclear como sinônimo de holocausto e que, 30 anos depois, se deu conta do contrário.


A energia nuclear, descreve um dos fundadores do Greenpeace, é neste momento a principal alternativa de geração de energia capaz de minimizar o efeito-estufa e com isto tentar evitar que o pior desastre ambiental da história da civilização alcance proporções catastróficas. Alguém mais dramático, evidentemente, pode perguntar se ainda há tempo para uma reversão como esta.


Ao defender o emprego de fontes nucleares como alternativa aos combustíveis fósseis – as demais fontes renováveis, ao menos por enquanto, não respondem à demanda crescente – Moore pode estar assinando sua sentença de morte como ambientalista, ao menos aos olhos da ortodoxia de seus ex-aliados.


Ainda assim aponta que as 600 termoelétricas em funcionamento nos Estados Unidos – um legado sujo dos primeiros tempos da Revolução Industrial – liberam na atmosfera pelo menos 36% das emissões norte-americanas de gás carbônico, o principal componente do efeito-estufa, o que significa em torno de 10% das emissões globais, refletindo a voracidade energética dos EUA.


Patrick Morre argumenta que não se pode negligenciar o risco de combustíveis nucleares caírem em mãos terroristas – para satisfazer a neurótica garantia de segurança demonstrada por parte de gente tida como mentalmente saudável e respeitável – mas nem por isso ela pode continuar marginalizada. Colocada de outra forma: o fato de dois jatos terem sido utilizados como arma para derrubada das torres do World Trade Center, no 11 de Setembro, não significa que, por isso, os aviões devam ser abandonados.


A esta altura alguém apontaria o acidente de Three Mile Island, o mais famoso dos acidentes nucleares nos Estados Unidos, para maldizer a energia nuclear. Mas não muitos vão de lembrar de que o sistema preventivo da usina funcionou como forma de evitar o escape de material radioativo.


Mas há o caso dramático de Chernobyl , de 20 anos atrás.


O peso das catástrofes


O que talvez não se queira considerar é que Chernobyl foi um acidente que esperou pacientemente para acontecer, acompanhando cada passo da vagarosa burocracia e negligência da antiga União Soviética, que acabou implodida por suas próprias forças, ou ausência delas.


Moore argumenta que atualmente há 103 usinas nucleares em operação nos Estados Unidos, gerando 20% da demanda nacional de energia, e que 80% da população que vive nas proximidades dessas instalações aprovam seu funcionamento. Isso pode indicar que, no imaginário popular, a imagem de destruição e medo deixado pelas bombas atômicas que vaporizaram pessoas, animais e instalações ao final da Segunda Guerra Mundial, no Japão, começa a ser substituída por uma outra idéia, sem conotação militar.


Patrick Moore enumera alguns dos ambientalistas que o precederam no reconhecimento dos benefícios ambientais da energia nuclear. Jim Lovelock, pai da Teoria Gaia – idéia de que a Terra é um imenso organismo vivo, capaz de fazer sua própria homeostase, como o corpo humano que faz subir a temperatura para combater uma infecção – foi talvez o mais notável. Mas além dele estão na fila dos revisionistas do catastrofismo Steward Brand, fundador do Whole Earth Catalog e o bispo inglês Hugh Montefiore, fundador e diretor do grupo Amigos da Terra (Friends of the Earth), praticamente expulso do grupo após escrever um artigo pró-nuclear numa publicação religiosa.


A energia nuclear caminha para se tornar uma das fontes mais baratas de energia, recurso estratégico para a melhoria da qualidade de vida de uma significativa parcela da população mundial que, sem benefícios sociais, tende a cair nas redes do tráfico de droga e outras formas de violência. Moore raciocina que o aperfeiçoamento da tecnologia pode derrubar estes custos ainda mais.


Também refuta a idéia que certamente mais assusta as pessoas envolvendo o ‘lixo nuclear’, argumentando que em 40 anos o combustível utilizado tem menos de 1% da radioatividade que apresentava ao ser removida do reator. Além disso, rebate outro mito de que essas instalações seriam vulneráveis a ataques, especialmente aéreos, por terroristas. Mesmo um Jumbo é incapaz de derrubar as paredes de proteção e expor o reator de uma usina nuclear devidamente projetada e construída.


Quanto ao átomo como arma de destruição, uma comparação simples e aterrorizante mostra que um simples machete, instrumento como os utilizados por cortadores de cana no Brasil, já matou mais de 1 milhão de pessoas na África. E muito pouca gente lamentou esse rio de sangue.


Para a mídia, o peso das catástrofes depende das coordenadas latitude e longitude. No caso da África há quase sempre um silêncio cínico, como se a morte e destruição fossem acontecimentos naturais quase previsíveis e que, por isso mesmo, não merecem sequer uma nota de pé de página.