Não há muito o que lustrar no brilhante artigo-desabafo ‘Só os americanos se salvaram’, de Eraldo B. Marques, publicado na edição 267 (6/4) deste Observatório. Parabéns, caro patrício, antes de tudo, pela crítica articulada ao comportamento desastroso do complexo governo/mídia, no episódio envolvendo a passagem do furacão Catarina.
Contudo, para quem quer entender o lado comportamental da tragédia, há que se lembrar de um detalhe que ficou de fora do referido artigo: o furacão Catarina passou em terras tupiniquins em pleno fim de semana. E, em feriados e fins de semana, como se sabe, as redações (jornais, rádios e TVs) quase sempre estão semidesertas, em esquema de plantão, coalhadas apenas de guimbas de cigarro, copos plásticos e repórteres iniciantes.
Além das mortes – quantas mesmo, afinal? –, o furacão Catarina deixou atrás de si um rastro de casas, árvores e notícias fora de lugar. De acordo com a matéria ‘Defesa Civil diz que avisou ministério da força do ciclone’, publicada pela revista Época, por exemplo:
‘O Ministério da Integração Nacional informou no domingo [28/3] que a desocupação fora cogitada na tarde de sábado e descartada depois que os serviços de meteorologia informaram que não se tratava de um furacão – o que faz supor que a conclusão era que os ventos seriam menos devastadores. Segundo o mais recente levantamento dos estragos causados pelo ciclone divulgado pela Defesa Civil de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, 32,2 casas foram destruídas ou danificadas nos dois estados. Além disso, 80% das escolas de Santa Catarina sofreram danos, deixando 40 mil alunos sem aula.’
Bom, dizer que ‘32,2 casas foram destruídas ou danificadas’ pode ser um erro tipográfico; mas afirmar que ‘80% das escolas de SC sofreram danos, deixando 40 mil alunos sem aulas’, é um misto de esculhambação e contas mal último fim de semana de março: o ministro da Integração Nacional (como, de resto, toda a cúpula do governo federal) estaria sendo informado a respeito dos fatos em SC e no RS por fontes indiretas. Quer dizer, se entendi bem o noticiário daqueles dias (27 e 28/3) da Agência Estado (www.estadao.com.br/agestado), o pessoal da Defesa Civil estava de folga e os informes oficiais que estavam circulando foram produzidos por repartições locais e/ou estaduais.
Brasília estaria apenas reverberando como informes o que de fato seriam notícias requentadas. Quer dizer, mesmo com a previsão (mixuruca) de institutos de pesquisa do governo federal, que mantêm em seus quadros equipes de (supostos) meteorologistas, como é o caso do Inpe, alertando para a chegada de ventos fortes (80-120 km/h), muitos dos nossos (supostos) ‘especialistas em emergências’ estavam de bermuda, relaxando…
Lista de calamidades
Jamais deveria haver folga na Defesa Civil (isso, claro, nada tem a ver com a óbvia necessidade de que funcionários individuais tenham folgas semanais periódicas), mesmo se estivéssemos na Dinamarca. Como não estamos na Dinamarca, e sim no Brasil, país que é um dos mais sérios candidatos ao título de campeão mundial em acidentes ambientais evitáveis, a suspensão da rotina de trabalho em repartições (federais, estaduais, municipais) de importância vital soa como algo absolutamente cômico, se infelizmente não soasse antes como tragédia anunciada.
Exagero? Pois remova o véu turvo e olhe pela janela: o que há realmente em volta de sua casa? Dependendo da época do ano, as alternativas são múltiplas e variadas: secas, enchentes, deslizamento de encostas, contaminação de fontes de água, proliferação de zoonoses etc. Todas essas são calamidades evitáveis – i.e., não há nessa pequena lista de ampla repercussão nenhum caso de acidente ou fatalidade, muito menos de castigo divino. São todos eventos previsíveis, quase sempre provocados pela ação negligente de seres humanos – a rigor, são todos o grand finale para uma série de pequenas e aparentemente desconexas ações humanas negligentes. [Um exemplo já do mês de abril: o lixão de uma importante cidade aqui da Zona da Mata mineira, recém-inaugurado como se tivesse se transformado em ‘Aterro Sanitário de Primeiro Mundo’, desabou… pela segunda vez! No episódio, grotesco por si só, há um pouco de tudo: da falta de divulgação de notícias claras e incisivas por parte da imprensa local (durante o período mágico que transformou o lixão em aterro) aos velhos e conhecidos coronéis populistas que (ainda) proliferam na política brasileira.]
Para remover essa lista de calamidades da primeira página dos jornais brasileiros, precisamos mais de pessoal devidamente qualificado do que de vultosas dotações orçamentárias, diferentemente do que políticos e gatunos, travestidos de assessores técnicos, costumam recitar por aí. O erro grosseiro de meteorologistas brasileiros com relação ao furacão Catarina, prevendo ventos de 80 km/h, quando na verdade eles chegaram a 150 km/h ou mais, tem pouco a ver com equipamentos obsoletos e mais com despreparo técnico – ainda que todos eventualmente ostentem as letras ‘D’ e ‘r’ antes do nome…
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Biólogo, autor do livro Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)