O racismo não se restringe à cor da pele. Permeia os critérios de avaliação de periódicos científicos, centros de pesquisa e cursos de pós-graduação.
Usarei o exemplo da minha especialidade, a botânica, pertencente à área de Ciências Biológicas 1.
O ‘sistemão’ é impiedoso: força o pesquisador brasileiro a traduzir seus trabalhos para o inglês e submetê-los a periódicos ‘A’, no exterior.
O mesmíssimo trabalho, publicado numa revista ‘B’ ou ‘C’ é enormemente depreciado. O que não está no alcorão é considerado heresia; O que não está em periódicos ‘A’ é considerado lixo.
Ainda estamos arranhando a superfície no que diz respeito ao conhecimento da flora brasileira, mas há muito poucos periódicos nacionais com verba suficiente para aceitar trabalhos taxonômicos, quase sempre extensos por natureza.
No Journal of Citation Reports, ou JCR, o próprio número de citações usado se apóia em textos de apenas alguns periódicos. Se um pesquisador cita uma revista ‘A’ numa revista sem impacto, esta citação não é computada.
Criam-se assim dois mundos paralelos, com poucas interseções. Algumas revistas com alto fator de impacto não têm ISSN citado. O JCR de 2002 traz 7.586 nomes de periódicos, sendo alguns listados duas vezes.
Menos de 50 destes tipicamente aceitam trabalhos de botânica, sendo aqueles que aceitam trabalhos taxonômicos ainda mais escassos. A maior parte das espécies novas e trabalhos florísticos do Brasil foi e vem sendo publicada em periódicos não indexados ou com baixo índice de impacto.
Os Anais da Academia Brasileira de Ciências, a revista brasileira com maior fator de impacto de 0,469 e 373 citações aparece no JCR no 5.276º lugar. Nenhuma revista botânica brasileira é citada. Somos tão terceiro mundo assim?
Resultado: na Acta Botanica Brasilica, a publicação de um trabalho leva dois anos, em média. Essa demora, oriunda da falta de visão de quem investe em pesquisa no Brasil, é mais uma razão para que todos nós enviemos artigos a periódicos estrangeiros, quase sempre mais rápidos.
Na ciência a rapidez também conta. Dezenas de novas espécies são descritas, anualmente, em periódicos ‘não A’ como Albertoa, Arquivos do Museu Nacional, Bradea, Hoehnea… Isso invalida as espécies?
Se todos os pesquisadores aderirem a esse modismo, enviando os seus melhores trabalhos sempre para fora, o que será dos periódicos tupiniquins?
O mundo científico, racional por definição, surpreende pela falta de vozes revoltosas com esta situação absurda.
Grande parte dos botânicos (e acredito que de outros pesquisadores também) envia seus trabalhos, com medo da punição, a periódicos que estão na ‘Lista de Schindler’ do momento.
Mesmo assim, revistas que eram ‘kosher’ num triênio freqüentemente são excluídas da lista no período seguinte. Para coroar tal incoerência, o pesquisador que queira submeter seu trabalho a um periódico que esteja em voga precisa pagar para ter acesso às listagens do JCR etc.
A tendência óbvia é a de segregar trabalhos de cientistas e instituições em boa situação financeira dos demais: os ricos publicarão nas de impacto pois saberão de antemão quais são aceitas pelo ‘sistemão’.
Acredito que os conselhos sejam integrados por pesquisadores. Se eu tiver razão, o problema deve ser ainda pior, pois somos nós os principais atingidos.
Qual é a proporção de trabalhos botânicos escritos por americanos e ingleses estão em periódicos brasileiros? Na botânica, a gente usa e cita trabalhos pertinentes à problemática estudada, de acordo com a qualidade do conteúdo e não com a qualidade do papel em que o artigo foi impresso.
Cabe declarar, desde já, uma moratória aos periódicos ‘A’ da Capes. Estou ciente de que isso prejudicará a minha avaliação junto aos órgãos de fomento e também a nota do curso de Pós-Graduação ao qual tenho a honra de estar vinculado.
Desculpem-me – estou exercendo meu direito constitucional de livre arbítrio e minha liberdade de expressão. Quando escrevi o artigo ‘Santa Inquisição aos Periódicos Científicos’ no JC e-mail (remissão abaixo), quase uma centena de pesquisadores me enviou e-mails de louvor, todos igualmente indignados com este absurdo.
Ninguém se manifestou contra. Agora, mais de um ano depois, o ‘Big-Brother’ permanece inalterado, ditando as revistas aceitáveis ou não. Consultando vários colegas, vejo que a maioria já resignou pois só obtenho uma resposta: ‘Não adianta enfrentar o sistemão. Somos nós, mesmerizados pela admiração do estrangeiro, os principais culpados por esta prática contraproducente e anti-democrática?’
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Pesquisador do Museu Nacional; e-mail (ruyvalka@mn.ufrj.br)