Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O clima, a ciência e a religião

Os noticiários despertaram para o aquecimento global, embora sob o risco de fracionar o tema ao ponto de banalizá-lo ou radicalizá-lo. Algumas abordagens jornalísticas buscam superar as deficiências informativas para entender e contextualizar essa nova ordem mundial. Outras buscam o caminho do espetáculo, do terrorismo pertinente às linhas editoriais sensacionalistas e estacionadas abaixo dos limites da mediocridade.


Esse fenômeno jornalístico também é global. Seus profissionais ainda analisam pouco o papel da comunicação neste novo cenário, particularmente no que se refere à consciência social e coletiva em seu sentido mais amplo. Vivemos um momento na evolução humana cujo elo entre informação e educação é imprescindível. Sem isto veremos, impotentes, ruírem nossas crenças modernas.


Enquanto as conferências mundiais sobre as mudanças climáticas ocorrem periodicamente e divulgam estudos sobre a gravidade da situação, em paralelo surgem novos profetas. O homem tem profundas raízes místicas, alimentadas ora pela ignorância ora pela falta de esperança em seus iguais. A percepção de Deus está alicerçada numa visão antropocêntrica das forças universais. O conceito de divindade é construído sobre nossa parca e empobrecida compreensão do todo.


Porém, o homem que vê a fúria divina nos raios, nos terremotos, nas inundações e tantos outros fenômenos naturais continua mais do que nunca presente em nossos dias. Um alienado científico e tecnológico, incapaz de ao menos observar que estamos decifrando grande parte de nossos medos ancestrais.


Divisor no jornalismo pseudo-científico


Se a ciência é o caminho para a compreensão do divino em toda sua magnitude, nesta semana a imprensa brasileira conseguiu traçar um marco, um divisor no jornalismo. A revista IstoÉ (data de capa 31/1/2007), publica, em generoso espaço, a reportagem ‘A senhora do tempo’. Conseguiu-se, enfim, a proeza de transportar os anos de esforço nos estudos climatológicos para os oráculos das antigas religiões. Ou até mesmo para os conceitos vigentes na Idade Média européia ou nas ordens sofistas do mesmo período.


O texto do olho da matéria apresenta:




‘Ela prevê catástrofes, desvia chuvas e mexe nos ventos. A médium Adelaide Scritori, que recebe o Cacique Cobra Coral, ganha fama mundial. Você pode acreditar neles?’.


Isto não é nada perto do que vem no transcorrer da reportagem, que força para dar um tom de jornalismo científico em sua abordagem.


Logo o texto avisa que sua fonte é a mais crível possível, pois o espírito do Cacique Cobra Coral foi em vidas passadas o astrônomo Galileu Galilei e o lenhador e presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln. Hoje, ambos se manifestam via o indígena nesta paranaense de 53 anos.


Para o desespero de Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (Cptec), órgão do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), que gastam milhões de dólares na compra de supercomputadores para cálculos ultracomplexos sobre modelos climáticos, a reportagem da IstoÉ revela que tudo isso pode ser descartável. Para que tantos doutores, mestres e especialistas em clima? Basta ter um espírito guia que realmente conheça do assunto e baixe no terreiro certo.




‘Ao contrário de muitas pessoas que dizem receber espíritos e entidades, Adelaide tem uma atuação amarrada por fortes laços com a ciência. Ela criou a Fundação Cacique Cobra Coral (FCCC) e, nessa estrutura, montou um braço operacional de previsões meteorológicas. `Antes de falar com o Cacique, dona Adelaide pergunta o que tem de ser feito para atender a uma solicitação dos clientes´, explica o professor Luiz Fernando Matos, graduado em Meteorologia pela UFRJ e pós-graduado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Ele é o meteorologista-chefe da FCCC’.


No currículo da médium há desde consultorias às prefeituras do Rio de Janeiro e São Paulo, ambas em regiões com imensa cobertura meteorológica, ao primeiro-ministro britânico Tony Blair e ao presidente do Comitê Olímpico Internacional, Jacques Rogge. Entre as proezas estão eventos fantásticos anunciados em ‘fatos desconcertantes como a súbita elevação de 29 graus centígrados na temperatura de Londres, a abrupta interrupção de chuvas torrenciais em Santa Catarina e o deslocamento para o mar de temporais que castigariam o Rio de Janeiro’.


Dança da chuva


Evidente que os fatos relatados e apurados pela IstoÉ não deixarão dúvidas em seus leitores, tal a convicção manifestada ao tratar o assunto. Todos, desde os mais crentes até aos de maior graduação na escala do ceticismo, ficarão longe da heresia de duvidar dos poderes da médium elevada pela publicação ao status de ‘Senhora do tempo’. Pois ninguém será insano de provocar a fúria em alguém ‘capaz de prodígios inquietantes no campo das mudanças climáticas’.


Para se mostrar distante de qualquer desrespeito à crença alheia – e consciente de sua ética editorial –, a revista pediu formalmente ao espírito guia a concessão da entrevista, no formato pingue-pongue . Afinal de contas, não se tratava de qualquer pajé especialista na dança da chuva, como destacou a edição: ‘Como foi autorizada pelo Cacique Cobra Coral, espírito que já foi de Galileu Galilei e Abraham Lincoln, Adelaide Scritori concedeu a IstoÉ sua primeira entrevista’.


Lá pelas tantas, os repórteres questionam.




A sra. pode mudar as condições do tempo?


O Cacique pode. Todas as nossas operações são monitoradas e estudadas cientificamente. Procuramos unir ciência e espiritualidade, nenhum tomando o lugar do outro. Agimos naquilo que o homem não tem condições de atuar.


A sra. pode conter o aquecimento global?


Já não dá mais para contê-lo. Em 20 anos, veremos o degelo’.


Cientistas e xamãs


Ao reportar em suas páginas essa face do xamanismo tropical, a publicação mostra – mesmo sem querer – algo além da simples mistificação da complexidade climática do planeta, mas o imenso vazio informativo e esclarecedor que o hermético universo dos cientistas forjou no decorrer de sua existência. Encerrados em seus laboratórios ou nos concílios onde desfilam vaidosamente os cardeais da ciência moderna, ainda ignoram solenemente a necessidade urgente de uma aproximação entre ciência e religião.


Preocupados com o reconhecimento dos pares, os senhores da ciência esquecem-se de detalhes do mundo real ou os tratam sob irritante academicismo – entre eles, o fato de termos na Terra 6,5 bilhões de habitantes, dos quais praticamente 50% lutam desesperadamente pela sobrevivência. As últimas pesquisas realizadas por Chris Rapley, diretor da British Antarctic Survey, mostram que o planeta comportaria de maneira satisfatória apenas metade da população existente.


Se por um lado cresce a pressão para compromissar governantes e empresas com os transtornos da potencialização antrópica do efeito-estufa, as religiões continuam a orientar a evolução de nossa espécie sem sequer serem inseridas no contexto destas discussões.


Sem dúvida uma marginalização estúpida e oriunda da arrogância de quem remete a condução do mundo só a governos formais e sistemas econômicos. Os céticos podem espernear, mas o que norteia a vida na Terra são as nações religiosas, com seus preceitos e dogmas de fé. Basta analisar o número de praticantes e o tempo de existência das quatro maiores vertentes místicas do planeta.


O cristianismo, com 2 mil anos, tem 2 bilhões de praticantes, dos quais 500 milhões são pentecostais. Em seguida vem o islamismo, que em 1.400 anos e passou a ser dominante em mais de 50 países distribuídos em três continentes. São cerca de 1,3 bilhão de seguidores, além de ter o maior crescimento registrado entre os cultos, com 16% ao ano. No terceiro posto surge o hinduísmo, com 3,5 mil anos e 900 milhões de adeptos. Em quarta posição, o budismo, de 2,5 mil anos e 380 milhões de crentes.


Quando os cientistas deixarem os seus casulos e a imprensa sua mediocridade obscena, será possível levar o problema do aquecimento global a patamares menos teóricos e mais realistas. Passou da hora de o jornalismo se tornar a ferramenta social para mexer nas feridas abertas da relação ciência e religiosidade. Só os meios de comunicação conseguirão estabelecer e monitorar diálogos responsáveis entre as duas partes.


Para abordar questões como controle nas taxas de natalidade, o esgotamento dos recursos naturais, hábitos e práticas poluentes estimuladas pelas crenças é preciso ter a coragem de ‘mover montanhas’. O jornalista precisará questionar tanto líderes religiosos como cientistas, pois é essa sua função. Ou permaneceremos passivos, quem sabe no aguardo do pronunciamento de Jesus, Maomé ou Siddharta Gautama via suas assessorias de imprensa.

******

Jornalista, pós-graduado em jornalismo científico