Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O drama que a mídia não viu

1982. Pela primeira vez no mundo, a Aids é detectada nos Estados Unidos. Aparentemente, porém, a epidemia chegou antes ao Haiti. Em viagens de trabalho à região central da África, haitianos teriam adquirido e trazido o HIV, o vírus da Aids, para a ilha. Daí, turistas americanos infectados teriam-no levado para os EUA.


2005. Desde junho de 2004, soldados brasileiros estão no Haiti integrando a força de paz da ONU. O país possui o maior número de pessoas com HIV do Caribe, a segunda região mais afetada do mundo. O Programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) estima que no Haiti existam 280 mil adultos e crianças vivendo com HIV, podendo chegar a 560 mil numa população de 8,2 milhões. Entre os haitianos de 15 a 49 anos há 56 infectados em cada mil habitantes. Isso significa prevalência nove vezes maior do que a verificada no Brasil. Na mesma faixa etária, o Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids (PN-DST/Aids) estima 6,5 HIV-positivos em cada mil brasileiros. Juntando adultos e crianças são 610 mil numa população de 169,7 milhões (dados de 2000). Atualmente, a população estimada é de 182 milhões, e o PN-DST/Aids está realizando nova pesquisa sobre o número de HIV-positivos no Brasil.


Pois bem: de junho do ano passado para cá, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva esteve na capital Porto Príncipe, a seleção brasileira de futebol goleou a haitiana em amistoso e os primeiros soldados da tropa de paz já voltaram para casa.


A mídia brasileira cobriu isso e muito mais sobre o Haiti: a miséria imensa; a religião vodu; a língua local, que é o crioulo, falada por 80% da população e que mistura elementos africanos, ingleses, espanhóis e franceses.


Estranhamente a cobertura pôs de lado a grave epidemia de HIV no país, ausente até da cobertura do último Dia Mundial de Luta contra a Aids, em 1º de dezembro. Na época, o Unaids divulgou em Genebra, Suíça, o retrato da doença no mundo, e o Haiti foi citado várias vezes no relatório.


"Não é apenas a epidemia do Haiti que tem sido ignorada, mas, em geral, a da América Latina e do Caribe", lamenta Pedro Chequer, diretor do PN-DST/Aids. "Parte da imprensa ainda não percebeu que muitos dos números dessas regiões carregam potencial trágico de explosão."


Médico especializado em epidemiologia e saúde pública, Pedro Chequer já ocupou vários cargos no PN-DST/Aids, inclusive o de diretor, de 1996 a março de 2000. Nos últimos quatro anos, a serviço do Unaids, trabalhou na Argentina, Rússia e Moçambique. Desde setembro, está de volta ao Brasil. A seguir, sua entrevista exclusiva ao Observatório, da qual participou o infectologista e professor Celso Ferreira Ramos Filho, assessor para Assuntos Internacionais do PN-DST/Aids e um dos representantes da América Latina e Caribe na Internacional Aids Society.


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O Brasil está no Haiti, que é o país com maior prevalência de HIV do continente americano. Além desse, há outros quadros graves no próprio Caribe e na América Latina. Como avalia a cobertura feita pela imprensa brasileira sobre a Aids nessas regiões?


Pedro Chequer – Infelizmente, a epidemia do Haiti tem sido ignorada pela mídia brasileira, bem como, em geral, a da América Latina e do Caribe. Veja só: entre os adultos caribenhos de 15 a 44 anos, Aids é a primeira causa de morte, inclusive no Haiti. Haiti, Barbados, Belize, Bahamas, Guiana, Trinidad e Tobago, Jamaica, Honduras e Guatemala têm níveis mais altos de infecção pelo HIV do que o Brasil.


Qual a causa dessa postura?


P. C. – Freqüentemente a imprensa trabalha com os números absolutos da Aids. Acontece que apenas eles não bastam para avaliar a gravidade do quadro. O mais importante é o número em relação à população – a chamada prevalência. Daí a epidemia no Haiti ser muito mais pesada do que a no Brasil, apesar dos seus números absolutos serem menores. Lá, estimam-se 280 mil infectados numa população de 8,2 milhões. Aqui, a estimativa é 600 mil HIV-positivos na faixa etária de 15 a 49 anos, numa população de 169,7 milhões (dados de 2000). Talvez por isso parte da mídia ainda não percebeu que os números do Haiti são altos, assim como não são pequenos os de outros países do Caribe e de alguns da América Latina. E o que é pior: eles carregam potencial trágico de explosão. O Caribe, a segunda região mais afetada do mundo, tem taxas de infecção semelhantes, por exemplo, às da Nigéria e Burkina Fasso, no oeste da África.


Explique melhor isso.


P. C. – Não há uma única epidemia "africana" de Aids; existem várias e altamente variadas. A mais presente na mídia é a do sul do continente: Moçambique, Suazilândia, Namíbia, Botsuana, Lesoto, Zimbábue, Malaui, África do Sul. Nesses países, 12% a 40% das populações estão infectadas. Mas há outras epidemias de Aids na África. Na Nigéria, há 54 infectados em cada mil habitantes de 15 a 49 anos. No Senegal, na mesma faixa etária, há 8 HIV-positivos em cada mil habitantes. Pois bem, é comum jornalistas e mídia – não apenas brasileiros mas estrangeiros também – fazerem a comparação com os números devastadores do sul da África, e, aí, acharem desprezíveis os da América Latina e do Caribe. Só que, insisto, muitos deles não são pequenos. Basta comparar com as taxas de infecção pelo HIV no Brasil para perceber a gravidade do problema.


Celso Ferreira Ramos Filho – Na verdade, não se dá a importância que a Aids na América Latina e Caribe deveria ter. A mídia brasileira reproduz o viés das agências de notícias internacionais, que, acertadamente, focalizam os números catastróficos do sul da África, mas, equivocadamente, menosprezam quadros preocupantes do continente americano. A epidemia de Aids no Haiti é prova disso.


Como está a epidemia lá?


C.F.R.F. – É grave, e vem crescendo. A Aids já reduziu em dez anos a expectativa de vida da população do Haiti. De 1,8% a 7% das gestantes jovens estão infectadas. É vital haver urgentemente mais investimento em prevenção e tratamento para reverter esse quadro.


O Brasil tem algum tipo de cooperação com o Haiti na área de Aids?


Pedro Chequer – Até hoje, não, devido especialmente às barreiras culturais e de língua; o Haiti está mais sob influência inglesa, francesa e africana. Porém, temos muito interesse em compartilhar experiências, aprendendo com eles e ensinando também. Algumas organizações não-governamentais do Haiti já contataram o PN-DST/Aids e estão interessadas em estabelecer parcerias. Mas, antes, é preciso haver demanda formal do governo haitiano. Na hora em que ela ocorrer, será atendida imediatamente.


Os militares brasileiros em missão no Haiti receberam orientação especial sobre Aids?


P. C. – Eu não estava aqui quando os primeiros soldados embarcaram, em junho de 2004. Mas o assunto foi discutido com a tropa, inclusive o uso de camisinha. O PN-DST/Aids e o município do Rio de Janeiro, em parceria, forneceram preservativos para os soldados. No Haiti, como no restante do Caribe, a transmissão do HIV é principalmente por relação sexual heterossexual.


A propósito: no seu discurso de posse, em setembro de 2004, o senhor frisou a disposição de o PN-DST/Aids olhar mais para a América Latina e o Caribe. Isso tem a ver com a candidatura do Brasil a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU?


P. C. – De modo algum. O PN-DST/Aids trabalha com os países da região desde o início da década de 1990, quando era dirigido pela doutora Lair Guerra de Macedo. Em 1995, foi criado o Grupo de Cooperação Técnica Horizontal da América Latina e do Caribe em HIV/Aids. Do GCTH, como é conhecido, já faziam parte os coordenadores dos programas nacionais de Aids e DST de 21 países: da Argentina ao México, passando por Cuba e República Dominicana, o chamado Caribe Espanhol. O GCTH nasceu do descontentamento com os modelos de cooperação vertical existentes na região, que só respondiam às necessidades das agências internacionais e eram geralmente inadequados à nossa cultura. A missão do GCTH era – e é até hoje – promover maior integração entre os países do bloco, visando o desenvolvimento conjunto de programas de capacitação e cooperação na área de HIV/Aids.


O seu discurso teria então a ver com a crítica de que, nos últimos anos, o PN-DST/Aids assumiu posturas arrogantes em relação a parceiros da região, do tipo "nós somos os bons, vocês não sabem nada"?


P. C. – Desconheço a crítica. Mas suponho que, de 2000 a meados de 2004, o programa manteve a postura adotada desde a sua criação, em 1985: solidariedade, cooperação, respeito e parceria com os países da América Latina e Caribe.


Afinal, o que o senhor quis dizer com olhar mais para América Latina e Caribe?


P. C. – Colocar a região na agenda da Aids e não apenas o Brasil. Aliás, os 21 países do GCTH se reuniram recentemente em São Paulo. Ficou decidido, por exemplo, que as sete redes de pessoas vivendo com HIV/Aids da América Latina e Caribe terão voz e voto no grupo. Isso vai contribuir para as coisas acontecerem. Também discutimos o acesso aos "coquetéis" [combinações de remédios anti-retrovirais para combater o HIV]. Hoje, o maior desafio do GCTH é a ampliação do acesso ao tratamento para portadores de Aids no continente.


E como está o acesso aos "coquetéis" na região?


P. C. – Brasil, Argentina e Uruguai têm cobertura universal, ou seja, todas as pessoas com Aids estão tendo acesso ao tratamento anti-retroviral. No Chile, está quase universal. No México, também. Já no Caribe, apenas Cuba tem cobertura universal. Nos demais países da região, o acesso aos "coquetéis" é bastante restrito. Não se pode esquecer que a terapia anti-retroviral é bastante cara.


Celso Ferreira Ramos Filho – Na realidade, a grande maioria dos países da América Latina e Caribe tem cobertura terapêutica baixa, ou seja, poucas pessoas com Aids estão se tratando. É o que acontece no Paraguai, na Bolívia, em El Salvador, na República Dominicana, na Colômbia. Os pacientes desses países dependem em parte dos 100 tratamentos que, desde 2002, o Brasil fornece através do Programa de Cooperação Internacional, o PCI do PN-DST/Aids. Moçambique e Burkina Fasso, na África, são os outros países contemplados.


Bolivianos, paraguaios, equatorianos, peruanos e colombianos ainda cruzam a fronteira para conseguir os anti-retrovirais na rede pública de saúde do Brasil?


C. F. R. F. – Das zonas de fronteira, sim, mas hoje possivelmente em número menor do que alguns anos atrás, embora até da África venham algumas pessoas buscar anti-retrovirais no Brasil. Diga-se passagem, algo que louvavelmente o Brasil nunca coibiu. É questão de solidariedade.


Mas, doar 100 tratamentos não é muito pouco para assistir a todos os pacientes dos países beneficiados pelo PCI?


Pedro Chequer – De fato é pouco, e eticamente complicado para o país contemplado decidir quem vai se beneficiar dos 100 tratamentos. Até por isso o PCI foi revisto e, em setembro, lançada a fase 2, que vigorará em 2005. O Brasil doará anti-retrovirais produzidos nos laboratórios estatais a todos os portadores de Aids da Bolívia e Paraguai, na América Latina, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, na África, e Timor Leste, na Ásia. Os quatro últimos participam da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. O fornecimento dos 100 tratamentos a El Salvador, República Dominicana, Colômbia, Moçambique e Burkina Fasso não será interrompido.


Quer dizer, bolivianos e paraguaios não precisarão mais vir ao Brasil para buscar remédio?


P. C. – A partir de 2005, não. Porém, não basta ter o remédio para garantir o acesso universal aos portadores de Aids. É preciso o diagnóstico ser feito nos seus países e haver pessoal treinado para prescrever o medicamento.


Quais os critérios para selecionar os seis países que receberão anti-retrovirais para todos os pacientes com Aids?


P. C. – Foram três: baixa cobertura terapêutica, maior proximidade política e epidemia com tamanho que o Brasil pudesse bancar a universalização do tratamento com as próprias pernas. Por isso, Moçambique e Angola não fazem parte do grupo. Seria impossível economicamente.


Quantos novos pacientes serão atendidos pelo PN-DST/Aids em 2005?


P. C. – O governo já garante tratamento gratuito para aproximadamente 150 mil pacientes com Aids no Brasil. O atendimento de Bolívia, Paraguai, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Timor Leste representará mais 10 mil a 15 mil pacientes à nossa provisão.


O PCI vai se limitar à doação de anti-retrovirais?


P. C. – Não. Junto há o compromisso de capacitar profissionais e estruturas de saúde desses países para a prevenção do HIV e o tratamento da Aids.


Há quem alegue que o PCI desvia para fora do Brasil recursos da nossa carente área de saúde pública. O senhor concorda?


P. C. – Nem um pouco.


Celso Ferreira Ramos Filho – Quem reclama desconhece as bases e o alcance do PCI. Ele não é doação, favor, ajuda ou desvio de recursos. É cooperação, e na qual o Brasil também tem aproveitamento. Além de muita complexidade técnica, exige grande sensibilidade política.


A quem caberá a tarefa de capacitar profissionais desses países?


Pedro Chequer – Ao Centro Internacional de Cooperação Técnica em Aids, o CICT, que começará a operar em 2005. É uma parceria do Unaids com o PN-DST/Aids. O CICT foi iniciativa do diretor geral do Unaids, Peter Piot. Em setembro do ano passado, ele esteve no Brasil e sugeriu a sua criação ao presidente Lula, que imediatamente aprovou. Será o primeiro centro no mundo com esse caráter de cooperação internacional para capacitação profissional na área de HIV/Aids.


Por que o Peter Piot escolheu o Brasil?


P. C. – Primeiro, o Brasil tem experiência de cooperação internacional para capacitação de pessoal em HIV/Aids. Segundo, independentemente de quem está no Palácio do Planalto, o Brasil tem mantido o seu compromisso político em relação à luta anti-HIV/Aids.


Celso Ferreira Ramos Filho – Além disso, o Brasil tem experiência em dimensionamento e implantação de uma rede de assistência de HIV/Aids que nenhum outro país tem, nem mesmo Estados Unidos e França. Montar um sistema de fornecimento de exames, de compra e distribuição de remédios e de estruturas de assistência para atender uma demanda inteiramente nova supõe capacidade técnico-gerencial.


Em que áreas o centro irá atuar?


Pedro Chequer – Ele será um pólo de capacitação, cooperação técnica e intercâmbio em várias áreas: prevenção, epidemiologia, monitoramento, avaliação, tratamento, logística.


De onde virão os recursos?


P. C. – Já estão acertados 500 mil dólares do Unaids e outros 500 mil dólares do governo brasileiro. Além disso, alguns países desenvolvidos, como a Alemanha, já estão propondo aportes financeiros ao CICT.


Celso Ferreira Ramos Filho – Isso quer dizer que eles consideram que temos não apenas cabedal técnico a repassar, mas também boa experiência em cooperação internacional. Afinal, se um país industrializado fornece espontaneamente recursos para cooperação externa, é porque admite que o outro país tem, pelo menos, a mesma competência que ele.


O centro vai atender apenas à América Latina e Caribe?


Pedro Chequer – A região é compromisso do PN-DST/Aids. O CICT vai trabalhar muito com África e Ásia, que são prioridades do Unaids neste momento. Em janeiro, já irá treinar dez pessoas da Guiné-Bissau para que implantem lá o programa de HIV/Aids.


Na campanha para a presidência, em 2002, e para a da Prefeitura de São Paulo, em 2004, o ex-ministro da Saúde José Serra foi apresentado como o criador do programa de Aids do país. A informação não foi contestada pela imprensa. Considerando que a sua história profissional se confunde com a do próprio PN-DST/Aids, o que o senhor acha dessa afirmação da campanha?


P. C. – Acho que o ex-ministro José Serra nunca teria dito isso, pois a informação é equivocadíssima. Ele sabe que, quando assumiu o Ministério da Saúde, em 1998, o PN-DST/Aids existia, o acesso universal ao tratamento para Aids era realidade e alguns anti-retrovirais já estavam sendo fabricados no Brasil. O que ele fez foi dar exemplarmente continuidade às ações dos seus antecessores. O ex-ministro Roberto Santos, no governo José Sarney, criou o programa de Aids. O doutor Adib Jatene modernizou-o, dando-lhe novo rumo e capacidade econômico-gerencial. Isso possibilitou que o PN-DST/Aids apoiasse os projetos das ONGs e garantisse o tratamento anti-retroviral gratuito às pessoas com Aids.


Na época isso saiu na imprensa, não é?


P. C. – Claro. A mídia brasileira tem sido vital para orientar e informar a população sobre HIV/Aids. Por isso, vale a pena relembrar fatos hoje às vezes esquecidos. Em 1991, deu-se início à distribuição do AZT (na época, o único anti-retroviral disponível) e de alguns medicamentos para infecções oportunistas. Em 1992, o atendimento foi ampliado. Em março de 1996, dois passos vitais: as primeiras recomendações para utilizar os "coquetéis" e a decisão de comprar os inibidores da protease, a nova família de drogas anti-HIV que começava a ser comercializada. Na ocasião, o doutor Adib Jatene era o ministro da Saúde. Em 13 de novembro de 1996, foi aprovada a Lei Sarney, que, desde então, assegura a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do vírus da Aids. Portanto, o ex-ministro Serra teve o mérito de apoiar o PN-DST/Aids, assim como o [atual] ministro [da Saúde] Humberto Costa está fazendo. Agora, o grande desafio é o Brasil avançar para a auto-suficiência de anti-retrovirais, produzindo não todos, mas a maioria deles.

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Jornalista