Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O evolucionista voador

John Maynard Smith (1920–2004) – Maynard Smith ou simplesmente JMS –, um dos gigantes da biologia evolutiva do século 20, morreu no dia 19 de abril, em sua casa, na Inglaterra, vítima de complicações decorrentes de um câncer no pulmão. Umas duas décadas antes, ele já havia enfrentado um outro câncer, no cólon. (Talvez por causa disso, ouvi de um colega, às vésperas da Eco-92, a ‘notícia’ de que Maynard Smith havia morrido por aqueles dias de câncer no estômago. Foi um choque e custei a descobrir que era então apenas uma notícia destrambelhada.) JMS deixou viúva, filhos e netos.

Soube da morte de Maynard Smith uma semana depois, bisbilhotando o conteúdo da editoria de ciências da Agência Folha. A matéria toda – ‘Morre aos 84 o biólogo John Maynard Smith’ (http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia
/ult306u11637.shtml
)–, no entanto, não tinha mais do que quatro desmilingüidos parágrafos. Isso foi em 27 de abril. Três dias depois, o jornal O Estado de S. Paulo publicou nota em sua versão impressa [acesso na rede restrito aos assinantes]. Isso foi tudo; quer dizer, nos dias que se seguiram, nenhum dos dois jornais (em suas versões eletrônicas, pelos menos) deu-se ao trabalho de detalhar ou aprofundar o assunto – afinal, quem foi Maynard Smith?

Pior: pesquisando na rede, constatei também que nada sobre JMS foi publicado nos últimos números das revistas Superinteressante, Scientific American Brasil e Pesquisa Fapesp. Agora, para minha surpresa, a edição de julho da revista Galileu trás uma matéria (de ultima hora?) sobre ele, em sua seção ‘Eureca’ (sic), intitulada ‘O jogo da vida’ (http://www.globo.com/Galileu/0,,ECT754777-2680,00.html). No fim das contas, porém, o saldo não é lá grande coisa: além de vir acompanhada de uma caricatura grotesca – aquilo não é uma caricatura de JMS! –, a matéria é tosca (incapaz, por exemplo, de dimensionar para o leitor a importância de sua obra) e tem jeito de dublagem. Ademais, fiquei com a pulga atrás da orelha pelo fato de só aparecer agora, três edições depois da morte de Maynard Smith…

Nos passos de um gigante

John Maynard Smith publicou seu primeiro artigo científico em 1952 (‘The importance of the nervous system in the evolution of animal flight’. Evolution 6: 127-129), quando já tinha mais de 30 anos. Pode parecer uma idade tardia, principalmente para quem logo se revelaria tão talentoso e produtivo, mas é preciso mencionar aqui um detalhe biográfico curioso: ele começou sua vida profissional como engenheiro, chegando a trabalhar no desenho de aeronaves para a Força Aérea britânica, durante a Segunda Guerra Mundial. (Isso talvez explique os temas aeronáuticos dos seus primeiros artigos.) Em 1947, voltou à universidade, onde estudou e começou a fazer pesquisas sob a orientação de J. B. S. Haldane (1892-1964); curiosamente, porém, nunca concluiu formalmente um doutorado.

O legado deixado agora por Maynard Smith inclui dezenas de livros e capítulos de livros, além de inúmeros artigos técnico-científicos e de divulgação. Muitas de suas obras tornaram-se referências-chave para estudantes e pesquisadores em todo o mundo. Além do legado estritamente científico, porém, Maynard Smith deixa saudades e lições de vida, tanto entre aqueles que aprenderam a admirá-lo à distância como principalmente entre os que o conheceram mais de perto. Nas palavras de um outro craque da biologia evolutiva:

‘John Maynard Smith was a humane, humorous, and sensible person who did not take himself or other people more seriously than they deserved. He had a sensibly skeptical view of science and its claims, which is best encapsulated in the famous dictum of his teacher, J. B. S. Haldane, who said that a scientific idea ought to be interesting even if it is not true.’ Richard Lewontin, Science (2004) 304: 979.

Agraciado com diversos prêmios e medalhas ao longo da vida, o reconhecimento ao seu trabalho já estava, no entanto, em um outro patamar: ele próprio emprestava o nome a um prêmio, o John Maynard Smith Prize, oferecido a cada dois anos, desde 1997, pela European Society for Evolutionary Biology. Em meados da década de 1980, coincidindo com a época de sua aposentadoria (entre 1965 e 1985, ele lecionou na Escola de Ciências Biológicas, da Universidade de Sussex, da qual foi um dos fundadores, em 1962), um grupo de quase 30 colegas, muitos dos quais já eram autores consagrados em suas respectivas disciplinas, colaboraram na elaboração de um livro em sua homenagem, Evolution: essays in honour of John Maynard Smith (1985, Cambridge University Press). O objetivo era fazer um apanhado geral de algumas áreas de pesquisa que tivessem sido influenciadas pelas idéias e pelo trabalho de Maynard Smith. Os 20 capítulos do livro formam um verdadeiro mosaico temático, abordando questões que vão da genética de populações teórica aos rituais de corte entre animais, passando pelo estudo da especiação, da dispersão e germinação de sementes e do cuidado parental. Em um meio tão competitivo como a arena científica, não são muitos os cientistas ativos (depois de aposentado, JMS continuou trabalhando) que recebem de seus pares um tipo de tributo como esse.

Ignorado no Brasil

Não saberia precisar como ou quando comecei a prestar atenção nas coisas escritas por Maynard Smith – não me lembro, por exemplo, de nenhuma indicação ou recomendação especial de algum professor meu. Em todo caso, logo me habituei a encontrar seu nome entre os autores incluídos na bibliografia. Um dos artigos que primeiro me marcaram talvez tenha sido ‘Evolution and history’ (1961), que li na edição espanhola de uma pequena coletânea de artigos seus, Acerca de la evolución (1979, H. Blume). Nesse artigo, JMS discute questões que, a partir da década de 1970, congestionariam a agenda de muita gente: a interface entre herança genética e herança cultural. Mesmo em plena Guerra Fria e após ter abandonado o Partido Comunista britânico (a exemplo do que fez o seu mentor, J. B. S. Haldane), Maynard Smith era suficientemente esclarecido e sofisticado, a ponto de não deixar que os crimes praticados pelo stalinismo obscurecessem a sua opinião sobre a herança, digamos, epistemológica do marxismo.

Muito mais do que um polemista de esquerda, porém, Maynard Smith era um darwinista (ou neodarwinista) ortodoxo; crítico de posições revisionistas, como as do falecido Stephen J. Gould (1941-2002), co-autor da chamada teoria do equilíbrio pontuado. [A teoria do equilíbrio pontuado foi originalmente proposta por S. J. Gould & N. Eldredge, em 1972, como uma explicação para a escassez de ‘elos intermediários’ nos achados fósseis em diferentes grupos taxonômicos. Para os defensores dessa teoria, a falta de elos não seria propriamente uma deficiência da paleontologia, mas sim evidência a favor de um padrão real e recorrente na natureza: mudanças evolutivas nas mais variadas linhagens (espécies, digamos) ocorreriam de modo brusco e repentino. Em outras palavras, a história evolutiva das linhagens seria dominada por períodos demorados de calmaria, entrecortados por períodos relativamente breves (em tempo geológico) de mudanças aceleradas. Essa visão, no entanto, não é totalmente estranha ao darwinismo ortodoxo. O problema aumenta quando o pessoal do equilíbrio pontuado discorre sobre os mecanismos causais (e.g., macromutações, seleção de grupo etc.) necessários para explicar esse padrão de ‘evolução aos saltos’. Para detalhes, ver entrevista com S. J. Gould no livro O fim da ciência, de John Horgan (1998, Companhia das Letras). Em português, a melhor apresentação da teoria do equilíbrio pontuado talvez esteja em Os mitos da evolução humana, de N. Eldredge & I. Tattersall (1984, Zahar)]

Todavia, ao contrário do que se passa com outros autores evolucionistas (S. J. Gould, Richard Dawkins ou mesmo o jovem Carl Zimmer, para citar alguns dos mais badalados), John Maynard Smith é um nome pouco conhecido entre os leitores brasileiros. [S. J. Gould e R. Dawkins são autores importantes, não resta a menor dúvida; ao contrário do que possa parecer, no entanto, suas obras de divulgação não representam exatamente a última palavra em assuntos de biologia evolutiva. Digo isso porque que essa parece ser a impressão dominante entre muitos leitores brasileiros, incluindo professores de Ciências e Biologia. A justificativa para tanto não seria difícil de encontrar: o boom editorial em torno de suas obras. Mais de 10 livros escritos por Gould já foram publicados no país (por quatro editoras diferentes), começando com Darwin e os grandes enigmas da vida (1987, Martins Fontes). Números semelhantes acompanham as obras de Dawkins, que já teve versões dos seus livros publicadas por três editoras brasileiras, começando com a primeira edição de O gene egoísta (1979, Itatiaia/Edusp). Por sua vez, o jovem Carl Zimmer, que faz parte de uma nova geração de divulgadores da ciência, já teve três dos seus livros publicados em português, por mais de uma editora. Curiosamente, este último autor é o único dos três que publicou um livro de divulgação sobre biologia evolutiva geral – O livro de ouro da evolução (2003, Ediouro). No fim das contas, porém, com um universo tão acanhado de autores, o predomínio de uma visão tendenciosa (para não dizer provinciana) da disciplina é quase que inevitável.]

É uma pena, mas até certo ponto é compreensível. Além de particularidades no estilo e no temperamento, há um motivo mais ou menos óbvio para esse (quase) anonimato: nenhum dos seus livros jamais foi publicado no país – o que, para mim, só exemplifica até que ponto os nossos editores dormem no ponto. [Nos dias que se seguiram ao seu falecimento, as editorias de ciência da imprensa brasileira não publicaram mais do que umas poucas linhas do material divulgado pelas agências internacionais.]

É verdade que alguns dos seus livros técnicos são destinados a um público mais restrito (pesquisadores e professores universitários, por exemplo); mesmo assim, no entanto, há um número bastante expressivo de leitores em potencial (‘mercado’, na linguagem dos editores) para pelo menos três de suas obras, a saber:

** The theory of evolution (4º edição, 1993, Cambridge University Press) – seu primeiro livro e, ao que parece, seu best-seller (a primeira edição é de 1958); uma leitura influente na formação de várias gerações de biólogos (dentro e fora da Inglaterra).

** Evolutionary genetics (2º edição, 1998, Oxford University Press) – esse talvez seja o livro que merecesse a tradução mais urgente para o português.

** The origins of life: from the birth of life to the origin of language (2000, Oxford University Press) – versão mais acessível de um livro técnico anterior [1997, The major transitions in evolution, Oxford University Press], ambos escritos em co-autoria com Eörs Szathmáry.

No momento, porém, o leitor interessado em ler alguma coisa de Maynard Smith publicada no país terá que se contentar com um único artigo: ‘Linguagem e vida’, em co-autoria com E. Szathmáry, que integra o livro O que é vida 50 anos depois (1997, Editora da Unesp). Para falar a verdade, temos ainda as duas páginas da introdução escrita por ele para o livro A formiga e o pavão, de Helena Cronin (1995, Papirus). Fora isso, no entanto, não conheço rigorosamente mais nada; só citações e referências ao seu trabalho.

Ecologia e comportamento animal

A escassez bibliográfica em português contrasta fortemente com a amplitude dos interesses e a profundidade da influência de John Maynard Smith na biologia evolutiva contemporânea. Seus trabalhos lidam com questões que vão da evolução da senescência (envelhecimento) à origem do sexo (por que todo mundo simplesmente não faz como as bactérias, que de tempos em tempos se dividem em duas?), passando pelo estudo da especiação, da seleção natural e da genética do desenvolvimento. Em todas essas áreas da pesquisa científica, Maynard Smith publicou trabalhos que se transformaram em referências clássicas, a começar, talvez, por um artigo de 1959, sobre o envelhecimento (‘A theory of ageing’. Nature 184: 956-958). Não seria exagero afirmar que ele ajudou a sedimentar – quase sempre, sob uma nova perspectiva – o estudo de várias questões da pesquisa biológica.

Antes de finalizar, não poderia deixar de mencionar aqui a influência dos trabalhos de JMS no estudo do comportamento animal e da ecologia. Dois dos seus livros mais citados tratam explicitamente dessas disciplinas, a saber: Models in ecology (1974, Cambridge University Press), onde aprendi a diferença entre modelo e simulação, e Evolution and the theory of games (1982, Cambridge University Press). Recentemente, ele ainda publicou um outro livro sobre comportamento animal, Animal signals (2003, Oxford University Press), em co-autoria com David Harper.

No livro Evolution and the theory of games – talvez o mais citado de todos os seus livros –, Maynard Smith procura mostrar como a teoria dos jogos (originalmente desenvolvida para equacionar questões de economia e comportamento humano) pode ajudar na abordagem de problemas evolutivos. Trata-se, na verdade, de uma das questões comumente enfrentadas pelos teóricos de qualquer ciência: como ajustar modelos bem-estabelecidos para equacionar e eventualmente resolver problemas novos ou de outras disciplinas. A espinha dorsal do livro é o conceito de estratégia evolutivamente estável (EEE), que recebe do autor um tratamento detalhado, abrangente e formal; ademais, estudos de casos, argumentos verbais, idéias semelhantes ou esboços preliminares da idéia de EEE foram reunidos e estão todos lá.

Uma EEE pode ser descrita como uma combinação de estados fenotípicos dentro de uma população. Dois (ou mais) fenótipos, exibindo comportamentos distintos (e.g., indivíduos que lutam vs. indivíduos que fogem; reprodução precoce vs. reprodução tardia; árvores altas vs. árvores baixas), podem conviver em uma mesma população como resultado de uma estabilidade gerada pelas suas próprias freqüências relativas. Um comportamento vantajoso aos seus portadores, por exemplo, pode passar a produzir resultados negativos quando é adotado pela maioria dos integrantes da população. A chave desse tipo de estabilidade, portanto, é que as vantagens e o sucesso dos diferentes fenótipos são dependentes do contexto, isto é, daquilo que os outros indivíduos fazem ou deixam de fazer. Detalhes e exemplos do conceito de EEE, principalmente entre os animais, podem ser encontrados no já citado O gene egoísta, de R. Dawkins, Explicando o comportamento animal, de M. S. Dawkins (1989, Manole) e Introdução à ecologia comportamental, de J. R. Krebs & N. B. Davies (1995, Atheneu).

O leitor interessado em conhecer algumas idéias de John Maynard Smith pode ler duas de suas entrevistas (ambas em inglês) concedidas às revistas The Evolucionist (1999) e New Scientist (2003).

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Biólogo, autor do livro Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003); versão algo diferente deste artigo apareceu em 28/6 na Ciência Hoje online