Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O falso milagre nas ondas do rádio

O homem encontra a Deus detrás de cada porta que a ciência consegue abrir. (Albert Einstein)

Neste momento de discussão sobre a constituição de um conselho federal e do desmonte da profissão de jornalista pela Justiça Federal, vale ampliar as reflexões para alguns outros pontos de igual ou superior relevância, como o da responsabilidade no uso dos meios de comunicação, principalmente nos considerados de largo alcance, ou seja, de massa.

Dias atrás, como de costume, passava pelo dial do rádio em busca dos noticiários e me deparei com um discurso inflamado de uma emissora evangélica. Parei minha busca para escutar um pouco o pastor aconselhando seus fiéis e me espantei com que ouvi. Uma senhora desesperada telefonou para o estúdio e entrou no ar. Disse ao pastor que estava com o neto de 2 anos desmaiado em seu colo. A criança delirava de febre há quatro dias.

A mulher, em tom de súplica, pedia por socorro. Ela se identificou, contou que morava num bairro pobre e continuou com seu apelo dramático. Mas para meu espanto a conversa ganhou contornos surrealistas.

Mediadores do divino

O pastor que comandava o programa, com diversos atendimentos no ar, perguntou de pronto:

– A senhora tem fé? Tem muita fé mesmo em Jesus?

A avó respondeu que sim, era crente e por isso contatava a rádio. Foi quando pensei que o homem a mandaria seguir para um pronto-socorro ou então enviaria algum tipo de auxílio médico ao local. Mas para minha surpresa, o tal pastor deu o seguinte conselho:

– A senhora então procure amanhã cedo, sem falta, pelo ‘Templo da Fé’ mais próximo de sua casa (e já forneceu o endereço) e leve seu neto que Jesus vai livrá-lo de todo mal. Se a senhora tem mesmo fé, todo encosto que estiver causando essa doença em seu neto será expulso pela força de Jesus.

Na seqüência, a mulher em prantos, concordou em ir até o tal lugar para o ‘descarrego’ ou ‘exorcismo’, seja lá o que lhe era proposto como solução naquele momento difícil. E o discurso do ‘evangelizador’ continuou, alertando as pessoas para a astúcia do satanás e suas múltiplas formas de atuação. Em resumo, tudo era satânico menos sua proposta.

Fiquei sem saber se Jesus operou o milagre prometido por seu intermediário aqui na Terra ou se a criança morreu. Temo, infelizmente, pelo pior. Seja pela minha falta de fé no arrebanhador de almas ou pela compreensão de mundo que os anos de jornalismo me trouxe.

Outro aspecto que ainda me perturba é quanto a orientação dada para se levar o enfermo a um local de aglomeração. Basta supor que a doença seja contagiosa para entender a gravidade do quadro e a irresponsabilidade do conselho. Essa orientação, transmitida pelo rádio, ganhou a dimensão do coletivo e, com certeza, passará a ser adotada por muitos dos crédulos ouvintes.

A comparação com outros tempos é inevitável. Na Idade Média, os donos do poder e mediadores da intervenção divina (o alto clero, nobres e as ordens de cunho militar- religioso) criaram o maior aparato de repressão da humanidade: a Inquisição, que trouxe ao mundo a ‘Idade das Trevas’. Logo ela estaria numa associação perversa com a peste, a fome e as guerras, aniquilando milhares de pessoas.

Rituais de cura

O sucesso dos inquisidores, que sempre atuarem em nome de Deus, deveu-se à existência de uma fértil sociedade, extremamente mística e marginalizada, que acabou por sustentar as barbáries desta elite por vários séculos.

A ciência também foi vítima da ferocidade abjeta em nome do criador supremo e de Jesus. A prática da medicina natural ou mesmo as rudimentares pesquisas no segmento da química inorgânica foram vistas como obras do demônio. Seus seguidores foram mortos com requintes de crueldade. Essa violência contra o intelecto tentou se perpetuar até mesmo na Renascença, quando deixou de se chamar Inquisição para ganhar a denominação de Santo Ofício.

O cenário atual, na face miserável do Brasil, já se modela com as formas destas estruturas medievais de controle. Mesmo em tempos muito iluminados, com a existência da bioengenharia, dos medicamentos de alta tecnologia, das cirurgias promovidas por robôs e da nanotecnologia, há uma legião de novos ‘cruzados’ que se utilizam dos púlpitos eletrônicos para satanizar todo desenvolvimento alcançado pelo homem. Mesmo isto sendo fruto do trabalho de quem é ‘a imagem e semelhança de Deus’.

Hoje, como na Idade Média, os representantes de Jesus convocam os enfermos para seus rituais sinistros de cura e de repúdio ao lógico e racional. Só que neste momento a indução ao erro é feita através do rádio, que tem o poder de buscar até a mais remota das ‘ovelhas’ do rebanho e num curtíssimo espaço de tempo.

Busca-se um divisor

Neste momento é impossível deixar de refletir na responsabilidade social e civil dos meios de comunicação e associar isto aos absurdos que acontecem num país de milhões vivendo abaixo da linha de pobreza. Infelizmente, as múltiplas carências que assolam grande parte da população são utilizadas por alguns na manipulação grosseira dos mais desesperados.

O texto da Constituição Federal traz, no capítulo da Comunicação Social, com absoluta clareza, o papel social dos meios de comunicação, no qual se inclui o rádio e, no entanto, essa emissora. Mas aí surge um inevitável questionamento: até onde a liberdade de expressão ou de culto religioso pode se embrenhar numa questão que envolva a vida de uma pessoa? Quais são as reais responsabilidades de quem está a frente de um microfone?

Sei que o assunto é complexo, envolve diversos interesses, principalmente os de ordem econômica. E esse Observatório abrigaria bits e bits de texto digital se aprofundarmos na questão. Mas vale a reflexão neste momento tão conturbado para o jornalismo.

Resta saber se na somatória disto tudo haverá alguma autoridade ou mesmo integrante da apática Comissão de Comunicação Social a questionar as responsabilidades destas emissoras a ‘serviço’ de Jesus e de diversas outras que se utilizam de práticas criminosas no ar. De onde surgirá o ‘salvador’ com coragem moral suficiente para estabelecer um divisor entre a informação útil e as práticas delituosas nos meios de comunicação?

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Jornalista diplomado, pós-graduado em jornalismo científico, 20 anos de profissão