Há mais esqueletos no armário do chamado jornalismo científico do que supõe nossa vã crítica da mídia especializada em ciência. Não há como fugir dessa conclusão hamletiana o profissional de imprensa dessa área que, com um mínimo de senso crítico, tenha lido a matéria da Folha de S.Paulo ‘A hélice dupla e as duas culturas’, publicada no suplemento dominical ‘Mais!’ (1/4).
A reportagem se refere ao debate realizado no auditório da Folha na terça-feira (27/3), com o lançamento do livro Promessas do genoma, do jornalista e cientista social Marcelo Leite. Além do autor do livro, que também é colunista da Folha, participaram do debate a geneticista Mayana Zatz, da USP, o biólogo molecular Gonçalo Pereira, da Unicamp, e o filósofo da ciência Hugh Lacey, do Swarthmore College (EUA).
Ao registrar o evento, a matéria ressaltou com pertinência aquilo ao qual o escritor britânico Charles Percy Snow (1905-1980) se referiu, em sua famosa conferência de 1959 na Universidade de Cambridge, depois convertida em livro, como o hiato entre ‘as duas culturas’ – ou seja, o abismo existente entre os estudiosos das ciências naturais e da tecnologia e os das artes e das humanidades.
‘Propaganda enganosa’
Mas, nos termos em que foi apresentada na reportagem, a retórica dos representantes das ciências naturais nesse debate traz um sinal de alerta para a cultura hegemônica da cobertura jornalística nas áreas de ciência, tecnologia, saúde e meio ambiente. O primeiro desses sinais vem das seguintes palavras da geneticista da USP no debate, transcritas pela matéria da Folha, ao se referir a cientistas envolvidos em projetos de longo prazo que exigem grandes somas de recursos:
‘Quem coloca a mão na massa sabe quais são as limitações. Às vezes, você realmente tem de vender o peixe quando precisa de financiamento. Não adianta você dizer: ´Olha, vou ficar 20 anos seqüenciando para talvez chegar a um resultado´. A gente tenta dourar um pouquinho a pílula. Mas sabemos que as limitações são enormes e temos um longo caminho pela frente.’
Ao transcrever essas declarações, a reportagem informa que ‘o sentido social e até ético da função deles [os pesquisadores das ciências naturais] era levado sempre para o individual’. Em sua tese de doutoramento de 2005 na Unicamp, na área de sociologia da ciência, que tomou forma no livro que foi tema do debate, lançado recentemente pela Editora Unesp, Marcelo Leite caracteriza de forma inequívoca a ‘mobilização retórica e política, nas interfaces com a esfera pública leiga, de um determinismo genético crescentemente irreconciliável com os resultados empíricos obtidos no curso da própria pesquisa genômica’.
O livro evidencia também o recurso crescente por parte de cientistas em publicações especializadas, com a função de suporte a um programa hegemônico de pesquisa, a justamente aquilo que muitos pesquisadores sempre criticaram em jornalistas: não só as metáforas no trabalho de divulgação, mas até mesmo hipérboles, pondo em prática um sensacionalismo dirigido a resultados. ‘Reduzir o sensacionalismo é algo para o jornalista fazer’, disse no debate o biólogo molecular Gonçalo Pereira, segundo a matéria da Folha.
Marcelo Leite mostra que ao anunciarem em janeiro de 2001 a reta final para o seqüenciamento do genoma humano e solicitarem recursos dos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido, os cientistas norte-americanos e britânicos que participaram do projeto levaram ao então presidente Bill Clinton e o primeiro-ministro Tony Blair a comprarem um empreendimento com base naquilo que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional, chamou apropriadamente de ‘propaganda científico-mediática enganosa’, em sua resenha ‘A ciência transcendental’, na mesma edição da citada matéria da Folha.
Busca do contraditório
Longe de querer alimentar a controvérsia entre jornalistas e cientistas, não é nosso foco aqui, apesar da extensão do intróito acima, o que pode ser considerado criticável nos pesquisadores – tarefa da qual Marcelo Leite já se encarregou implacavelmente com a dissecação do tema em sua obra. O foco é a parte que cabe à imprensa nesse tema. O que está aqui em questão diz respeito à quase totalidade dos veículos e profissionais de imprensa especializados em ciência.
Para assegurar a credibilidade dos empreendimentos científicos que divulgam, a maioria dos jornalistas que cobrem essa área adotou há algumas décadas a prática de presumir como informações fidedignas aquelas que são prestadas pelas publicações científicas que contam com comitês consultivos independentes.
Já havíamos criticado em outro artigo (‘A clonagem das notícias de ciência‘, ComCiência, Labjor/Unicamp, fevereiro de 2005) esse procedimento de certificação consagrado pelo jornalismo científico, uma vez que muitas publicações científicas ‘expandiram seu público-alvo para além dos limites da comunidade acadêmica, abrindo espaço para influenciar comunicadores, formadores de opinião e tomadores de decisão, elas passaram a servir como palco para campanhas institucionais e disputas internas por poder e recursos’.
É nesse sentido que a douração da pílula de olho no cheque acaba pondo em xeque o modelo hegemônico de jornalismo científico, que se caracteriza, acima de tudo, pela renúncia não só à disciplina da verificação por meio da busca do contraditório – que é a essência do jornalismo –, mas também ao trabalho investigativo.
No debate, Gonçalo Pereira afirmou, de acordo com a reportagem, que ‘a sobrevivência na face da Terra depende totalmente do conhecimento que teremos da biotecnologia’. Diante de uma ciência que tem essa auto-imagem triunfalista, não basta o rigor da ética jornalística para entender que se faz necessária a busca do contraditório e para ver a possibilidade de algum trabalho jornalístico investigativo. É preciso, dentro do próprio jornalismo científico, superar o abismo entre as duas culturas, apontado por Snow.
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Jornalista, editor do blog Laudas Críticas