Sejamos o lobo do lobo homem. (Língua, Caetano Veloso)
De vez em quando, a imprensa lança mão de cientistas sociais para aprofundar o tratamento dos fatos que noticia. Raramente, porém, faz citações diretas dos clássicos do pensamento político, sociológico ou antropológico. Na rabeira do furacão Katrina, temos um exemplo dessa interessante exceção com a matéria ‘Depois da tragédia, a degradação da alma humana’, de Renato Galeno (O Globo, 4/9/2005).
Na busca de compreender o caos que tomou conta de Nova Orleans (as cenas de saques, roubos, resistência armada à ajuda oficial etc.), o jornalista advoga a hipótese de ‘retorno’ ao Estado de natureza descrito pelo filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679). Nesse Estado, no qual os homens viveriam numa ‘guerra de todos contra todos’, as noções de certo e errado, de justiça e injustiça, não têm mais lugar, já que não há precedência de um poder ‘soberano’ capaz de apaziguar as incontroláveis paixões humanas. Nessa visão competitiva da vida, em que ‘o homem é o lobo do homem’, a utilidade é a medida do direito. O resultado desse processo é uma vida de extrema solidão, pobreza e sordidez. O pior: o tempo de existência é bastante curto.
Contrapondo-se à definição aristotélica do homem como ‘animal político’, Hobbes clama a seus contemporâneos por um exame de consciência sobre a inadequação do mito da sociabilidade natural da espécie humana. O que ele quer indicar é que a falta de quem controle o egoísmo dos indivíduos, a própria idéia de sociabilidade é impossível. Feito isso, à multidão, para existir, passa a se chamar ‘Estado’, gerando o grande Leviatã da metáfora bíblica.
Selva de Estados
No entanto, mais do que a defesa da hipótese da ‘necessidade do poder coercitivo do Estado’, como faz um entrevistado por Galeno (o professor de relações internacionais Williams Gonçalves, da Universidade Federal Fluminense), os acontecimentos de Nova Orleans destacam-se pelo inusitado, já que, como afirma um outro especialista (Moacir Duarte, da Coppe/UFRJ), a violência e a barbárie ali apresentadas são exceção, e não a regra na história das grandes catástrofes e, possivelmente, refletem as condições sociais específicas da sociedade norte-americana.
Nas palavras de José Vicente Tavares dos Santos, presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia, os efeitos do Katrina expressam uma profunda crise da sociedade contemporânea.
A meu ver, é justamente no entendimento destas últimas questões que a herança hobbesiana mais contribui. Aperfeiçoando Maquiavel, Hobbes demonstra, acima de tudo, que o poder não é um simples fenômeno de força, mas uma força institucionalizada canalizada pelo direito. Indica ainda que, mesmo com o provável sucesso dos Leviatãs em níveis nacionais, a humanidade permaneceria numa ‘selva de Estados’.
Risco permanente da morte
Na análise das relações internacionais nos dias de hoje, quando da hegemonia do pensamento ‘neoliberal’, no qual se proclama o suposto enfraquecimento dos Estados nacionais, poderíamos utilizar as palavras de Hobbes para descrever o cenário que parece reduzido às prescrições de um novo Estado de natureza.
A alternativa pensada por ele, de que o medo da destruição recíproca acabe por convencê-los da necessidade de sair de tal Estado, algo similar com que o mundo viveu no século 20 durante a chamada Guerra Fria e o que parecia ser o papel da Organização das Nações Unidas, parece hoje de difícil concretização, já que tudo conflui para o fortalecimento de um só Leviatã: o conjunto das 20 nações desenvolvidas onde estão as sedes das organizações financeiras e industriais, nas quais vivem o 1/6 da população mundial que detêm 80% de toda riqueza mundial.
E se em nível internacional um Estado de natureza latente se torna cada vez mais manifesto – aguçado justamente pela política externa do líder do grupo das nações desenvolvidas, que ao pretender exportar sua versão da ‘democracia’ pela força acaba por corroer as frágeis linhas do direito internacional ainda em construção, colaborando para criar um clima de ‘terror’ que não deixa imune os seus próprios súditos (vide os aviões de Nova York e as bombas de Madri e Londres) –, nos níveis nacionais, especialmente nos países de grandes desigualdades estruturais, a vida dos indivíduos se assemelha muito à guerra civil descrita por Hobbes, o que qualquer passeio pelas periferias das grandes necrópoles latino-americanas, africanas e asiáticas pode constatar: o temor e o risco permanentes da morte violenta, com o que a vida dos homens se torna ‘solitária, laboriosa, difícil, quase animal, e breve’.
Força e astúcia
As ilhas de soberania de bem-estar, protegidas por suas milícias privadas ou pela segurança pública privatizada, apenas confirmam a regra, como é o caso extremo do Brasil, em que os 10% mais ricos possuem renda 32 vezes maior do que os 40% mais pobres, segundo os dados do novo relatório da ONU sobre a desigualdade social. E de acordo com o brasileiro Roberto Guimarães, organizador do Relatório sobre a ‘Situação Social Mundial 2005’, o fantasma da desigualdade, mais explosiva do que a pobreza na impulsão das crises sociais (como já ensinava Hobbes), não é mais privilégio dos países pobres: ela ‘aumenta nos EUA, no Canadá, nos países nórdicos’ (‘Reduzir pobreza é ilusão, diz pesquisador’. Folha de S. Paulo, 27/8/2005).
Talvez isso explique a singularidade da degeneração social de Nova Orleans após os ventos e as águas do furacão Katrina – cujos efeitos foram agravados pela reconhecida inoperância egoística do presidente George Bush, que privilegia as indústrias da guerra e do petróleo em detrimento do bem-estar de seu próprio povo (‘Uma cidade a ser reerguida’ e ‘Especialistas: política ambiental de Bush pode levar a mais desastres’, O Globo, 4/9/2005).
Por contradição, o Leviatã ‘neoliberal’, criado nos estertores do welfare state e do ‘socialismo real’, é um ente dotado de grande poder de intervenção na vida dos súditos involuntários, ao contrário do que propagam as apologias do ‘livre mercado’. Um poder que termina por conformar um novo Estado de natureza, na qual vigem as leis da força e da astúcia, propagando-se a idéia de que cada homem só deve possuir aquilo de que pode apoderar-se.
Controlador do ‘soberano’
Ou seja, vivemos sob a égide de um soberano de poder absoluto sobre o qual não temos nenhum controle efetivo e do qual, ao contrário do Leviatã de Hobbes (o que contraria a pecha de ‘maldito’ posto pela leitura burguesa sobre o pensador inglês), não podemos esperar o cumprimento de nenhum dever de caráter social, já que sua preocupação única parece ser o atendimento dos apetites dos lobos especulativos do capital ‘transnacional’ (vale lembrar) associado aos seus parceiros intranacionais. Ao contrário, nessa reedição das condições ‘neocoloniais’, bens públicos como educação, segurança, saúde e previdência estão sob o risco permanente de se tornarem ‘serviços’ de prestação privada, fazendo com a grande massa fique à mercê dos interesses e da caridade dos particulares – situação que o Estado hobbesiano combatia.
A lembrança solitária das reflexões filosóficas (ou de ‘política civil’) de Thomas Hobbes está longe, certamente, de nos oferecer todos os instrumentos necessários para enfrentarmos os desafios e os dilemas da contemporaneidade. Mas, a recuperação de seu pensamento, assim como de outros ‘clássicos’, pode nos ajudar como exercício teórico para a melhor avaliação dos discursos e das práticas políticas atuais. No seu caso específico, vale a lição de que não há sociabilidade natural entre os homens e que está é sempre passível de observação, ciência e intervenção.
Temos, portanto, condições de sermos ‘o lobo do lobo do homem’. Que a mídia deixe seu tradicional papel de conformador dos ‘súditos’ e passe a controlar o ‘soberano’ (não o ‘Estado’, mas as relações de forças capitais que o instituem), eis o meu (fastio, confesso) desejo.
******
Jornalista e cientista político