Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O perigo de estar errado

Quando o jornalista se comporta como divulgador de informação assume a responsabilidade por ela. Não pode deixar toda a culpa apenas para a fonte, principalmente quando ele mesmo poderia ter confirmado, ou deveria ter se preparado para fazer a matéria com total proficiência. É o que abordou no OI na semana passada Alexandre Carlos Aguiar, [veja remissão abaixo]. Quando existe um método investigativo que nos dá a resposta, não é desculpável que dele não se faça uso e se difundam, por esta falha, informações que possam pôr os leitores em perigo. ‘O jornalista é o profissional que tem capacidade e competência para operar códigos e técnicas de conformação discursiva do real em ambiente onde a credibilidade de quem enuncia é fator determinante’, disse, também no OI, Mozahir Salomão [remissão abaixo].

Quem enuncia tem a sua parcela de culpa pelas conseqüências. Não pode se eximir se não usou o método adequado. ‘Com a imprensa chancelando tudo, graças aos jornalistas preguiçosos que lêem apenas orelhas de livros, têm preguiça de estudar, não sabem se impor porque não têm cultura, ou porque levam o jornalismo como emprego, não como missão’ (Cláudio Julio Tognolli em entrevista ao OI) [remissão abaixo].

‘Testemunho’ emotivo

Quando o jornalista está especulando sobre a homossexualidade e a herança genética, sobre a possibilidade de cura de doenças no futuro pelo entendimento do DNA, ele está projetando probabilidades que ninguém sabe como serão. Mas quando abandona o conhecimento passado para ressuscitar assombrações, gnomos e falácias está cometendo o pecado da ignorância. Nesta hora, não tem perdão. A não ser que apresente sólidas evidências, está fazendo um desserviço ao leitor, desinformado pela mídia. Este engano começa já na faculdade, que tem grande capacidade no ensino do Jornalismo, mas não o prepara para a vida. Um exemplo do que pode resultar esta inapetência para o assunto está expresso no artigo ‘O status científico da homeopatia’, de dois alunos do Labjor/Unicamp (www.ifi.unicamp.br/~knobel/radar/newspro/fullnews.cgi?newsid1065445225,44417,) que concluem:

‘A classificação da homeopatia como ciência depende, evidentemente, da satisfação dos requisitos de adequação empírica e progressividade. No entanto, sua classificação como Programa Científico de Pesquisa é possível, pois o princípio básico da homeopatia e suas leis complementares podem ser considerados o ‘núcleo’, e o conjunto de leis auxiliares o ‘cinturão protetor’ do modelo teórico de Lakatos.’

Demonstram que desconhecem totalmente uma evidência necessária e suficiente que a homeopatia não tem ao não comprovar efetividade, ao alegar leis inexistentes e ao falhar em mostrar sua base, como comprovou pesquisa mostrada no Fantástico, feita pela isenta Royal Society. Não adianta um discurso se o objetivo não se realiza. Ignoram que ela contraria, além disso, todos os princípios da epidemiologia, da física e da química. Assim, seguem o raciocínio do autor e caem no mesmo erro dele sem se darem conta aonde estavam sendo conduzidos (ou queriam ir espontaneamente, por simpatia).

Mas o Fantástico, na sua metodologia de trocar a avaliação científica (evidência de resultado) pelo ‘testemunho’ emotivo, apresenta um depoimento de uma simpática mocinha que atribui a homeopatia, com toda a fé, a ‘cura’ de nada menos do que uma ‘aplasia de medula’ (doença grave que altera o sangue periférico, com pancitopenia grave, 50% de mortalidade e de difícil tratamento (http://ioh.medstudents.com.br/aplasia.htm). Ela continuou indo ao hematologista, a quem nunca contou que também usava homeopatia. Mas tem certeza de que a homeopatia funcionou. Pois sim! Como no caso do município de Maranguape, Ceará, onde atribuíam curas à benzedeira, e não aos sais de hidratação oral [ver remissão abaixo para ‘Época e seu santo remédio’].

Só mesmo o Brasil

O programa não mede o risco de vender esta falsa idéia (por não ter evidência científica que a infira), levando pessoas a abandonarem tratamentos comprovados para perderem tempo com o ‘milagre das águas’. Torna-se neste momento um cúmplice da desinformação, pois não sai atrás do conhecimento correto nem avalia se esta alegação é plausível ou se tem respaldo na literatura internacional. Como afirmamos anteriormente, uma comprovação destas garantiria um milhão de dólares e, mais importante ainda, o Prêmio Nobel. E como se comprova? Demonstrando a reprodutibilidade da cura alegada em outros pacientes, é óbvio.

Outro exemplo de jornalismo inconseqüente, contendo informação como esta, encontramos no caderno Vida n° 551 do jornal Zero Hora, numa bonita reportagem de página dupla colorida, na qual não faltaram a ‘testemunha’ solitária e sua família, garantindo que:

Em uma crise aguda, com infecção respiratória, a alopatia pode usar um antibiótico, um antiinflamatório, um broncodilatador, um antitérmico, um corticóide, mais a nebulização. A homeopatia usa somente um medicamento, o que diminui o custo do tratamento (fontes: homeopatas Alba Henkin e Universina Ramos, Sociedade Gaúcha de Homeopatia).

E se não for verdade? E se é real, por que não saiu o jornalista correndo atrás do Conselho, da Sociedade de Pediatria, da Sociedade de Pneumologia para saber por que se estava usando tanta medicação desnecessária e perigosa? Isto é notícia! A escolha de qual das duas atitudes afirmadas nos dois casos deve se basear na evidência de resultado, na comprovação do tratamento. Mas quem optou por fazer homeopatia tem muita fé, abandonou a busca de evidência há muito tempo. E isto não é ciência, como querem fazer parecer, mas pura crença.

No site da Associação Medica Homeopática Brasileira (AMHB) está publicado que sua direção pensou em tentar impedir o Fantástico de ir ao ar. Falharam ao não explorar as possibilidades de esclarecimento completo. Os editores do programa deveriam ter indagado à American Medical Association, ao FDA, à Académie Nationale de Médecine da França, à British Medical Association, à Canadian Medical Association, à Australian Medical Association, à Ordem dos Médicos de Portugal qual sua posição quanto à homeopatia, para constatar que nenhuma destas sociedades reconhecem a homeopatia como parte da medicina. Só mesmo o Brasil.

Distúrbios da alma… animal

Podemos perguntar: se o efeito da homeopatia é psicológico, como se explica a eficácia do tratamento do veterinário homeopata com cachorros, cavalos e outros animais? Mas quem disse que funciona em veterinária? Se os resultados não são medidos em parâmetros objetivos não se pode afirmar isso. Não foi isso que a medicina fez durante dois mil anos? Hoje sabemos que praticamente foram inúteis a quase totalidade daqueles tratamentos. Os veterinários, que encontraram animais mais semelhantes aos humanos que do que estes entre si, afirmam que se funciona nos humanos funciona nos animais. No entanto, os próprios veterinários homeopatas afirmam:

‘Embora a homeopatia tenha um uso prático bastante amplo, ela ainda carece de base científica para a sua eficácia clínica na medicina veterinária. Essa base vem sendo exigida há muito tempo, tanto pelos críticos como pelos adeptos da homeopatia (Löscher 1992; Schütte 1994, ‘Pesquisa clínica em homeopatia veterinária’, B. Rüdinger, traduzido da Homint R&D Newsletter, 2/1998, pp. 19/22, www.homeopatiaveterinaria.com.br/pesquisa_cl%C3%ADnica_em_homeopatia_v.htm).

O programa não se baseia em dados objetivos que se afirma isto no programa, mas numa série de melhorias higiênico-dietéticas que se apregoam resultado da homeopatia. Além disso, se funcionasse em veterinária, seria apenas mistificação tanta conversa desnecessária com o paciente, já que é totalmente dispensável.

Pois até tem gente achando plantas mais semelhantes com pessoas doentes do que dois humanos entre si para usar homeopatia. Qual o ‘pecado original’ (Dr. James Tyler Kent, 1849-1910, Dr. Alfonso Masi-Elizalde, 1932-2003) que poderia ser atribuído aos animais para tratarmos seus distúrbios da alma? Pois que efeito farmacológico não existe.

Propriedades místicas

Como mencionei na semana passada, existe um plasmódio que serve de modelo animal em ratos para teste de medicamentos contra malária, o Plasmodium chabaudi (Landau e A. Chabaud, 1965). Por que não foi demonstrada ainda a cura da malária, que renderia o milhão de dólares e certamente o Nobel?

O professor Flávio Dantas, conforme o Fantástico, seria o único professor-titular de Homeopatia em universidade pública brasileira, a Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, que afirma: ‘Na minha experiência, a homeopatia funciona muito bem em problemas alérgicos, em rinites alérgicas (os trabalhos não evidenciam isto). A homeopatia funciona, na maior parte dos pacientes, como uma reposta que eles não tinham obtido com o tratamento convencional’ (?). Voltamos ao tempo do ‘achismo’, em que cada profissional pode apregoar o que quiser sem precisar esperar evidências. E, no caso, pior, se abandonam as evidências por crenças, descartando o comprovado.

Contesta também o professor Dantas que homeopatia não seria placebo por ser sem gosto, sem cor e barato. Preocupa que isso seja usado por um professor para garantir eficácia. A água benta e a água ‘fluida’ dos centros espíritas têm muito mais destas qualidades e são apenas placebo. (Quem tiver prova em contrário se candidate ao prêmio). Num trabalho clássico de Cobb et al, em 1958, ele demonstrou que a ligadura da mamária interna para tratar angina do peito era apenas uma ação placebo pela cirurgia.

Enfiar uma agulha numa pessoa não é. Mas se você disser que esta agulhada é uma técnica de cinco mil anos, que curava tudo na China e que tem comprovação científica (mesmo não tendo), ela passa a ter efeito placebo. E isto a homeopatia tem. Uma história ligada ao esoterismo e a propriedades místicas, ao tratamento da alma espiritual como a verdadeira origem das doenças. O que confirma que é placebo é a sua incapacidade de curar coisas objetivas (malária, tuberculose, sífilis, câncer, parada cardíaca…).

Fígado de pato e lucro

O repórter perguntou ao professor Dantas como a homeopatia funciona. Resposta: não há explicação ainda. Mas a pergunta está errada. A pergunta que se deve fazer sobre qualquer coisa que se proponha a ser tratamento é: qual a evidência de que funciona? Principalmente quando pessoas de avental branco estão mandando os pacientes abandonarem o tratamento para pneumonia, medicação para mal de Parkinson, psiquiátrica ou de ‘aplasia de medula’. Se a imprensa, o Conselho Federal de Medicina, o Conselho Federal de Farmácia e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deixam de seguir, como deixam, o conhecimento científico para se guiarem por esoterismos, claro que estas coisas se mantêm por longo tempo, pela liberdade de se apregoarem barbaridades.

A Anvisa, além de dispensar a homeopatia de provar as propriedades medicinais de suas apresentações, em detrimento do contribuinte, ainda lhes garantiu no Brasil uma reserva de mercado não existente em nenhum lugar no mundo. Aquilo que foi praticado nos centros espíritas por quase 150 anos, a prescrição da homeopatia orientada por Hahnemann (como pelo Dr. Fritz nas cirurgias), agora é privativo apenas de homeopatas com diploma de Medicina. Em todo o mundo praticantes leigos e escolas são em muito maior número, com a mesma alegada proficiência. Digladiam-se pelo direito de prescrever estes preparados três grupos: o Sr. José Alberto Moreno, professor de Homeopatia (não médico) e o emérito médico homeopata Marcus Zulian Teixeira, somado à Atenemg (Associação de Terapeutas Energéticos e Naturistas do Estado de Minas Gerais), que visa a harmonização espiritual, energética, mental, emocional e física das pessoas, comandada pelo agrônomo Vicente Wagner Dias Casali, professor de Homeopatia da UFV (Universidade Federal de Viçosa).

E ainda acusam os interesses da grande indústria de estarem por trás do combate a esta prática, quando o lucro obtido com a homeopatia é de 100%. De 1 ml de solução-mãe, o Laboratório Boiron produz milhões de frasco de Oscillococcinum [autolisado filtrado de fígado e coração de pato (Anas barbarie)] do mais puro lucro e zero de comprovação.

Bastava estudar

Um teste semelhante na qual tropeçou a BBC, a modificação apregoada pela professora Madeleine Ennis, da Queen’s University de Belfast, do trabalho de Benveniste, foi realizado pela rede americana ABC em 20/20, e já havia falhado com o homeopata Dana Ullmann, maior terapeuta e escritor de homeopatia dos EUA, em teste sobre a sua orientação técnica.

Quanto ao triste fim do Dr. Jacques Benveniste: acabou ganhando dois prêmios Ig Nobel (1991 e 1998), que são dados às piores pesquisas (e pesquisadores) do mundo – só ele mesmo se achava candidato ao Prêmio Nobel. Mas, quando colocou todas as suas fichas em provar a existência de pêlo em casca de ovo ou chifre em cabeça de mula, quando achou que ‘a idéia de diluição’ era só um preconceito, acabou no lugar ao qual pertence.

Como achar efeito daquilo que não demonstre cura (alvo do desafio do milhão de dólares de Mr. Randi)? Se tivesse perdido um pouco de tempo estudando as bases científicas e históricas, não teria passado o constrangimento e a perda de credibilidade.