Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O que vai pela pauta do jornalismo científico

À primeira vista pode parecer uma história de ficção. Mas o caso foi relatado pela revista semanal inglesa New Scientist (reproduzido pelo jornal inglês The Guardian e republicada na edição de domingo, 6/11, pág. A27, do Estado de S. Paulo).

Um garoto de 15 anos, equipado com uma haste para a coleta de células do revestimento da boca e com o suporte da internet, rastreou e localizou em menos de um ano seu pai genético num banco de sêmen a que sua mãe havia recorrido para sua geração.

Neste movimentado cruzamento de uma vertente científico-tecnológica e de conteúdos que remetem à mitologia – pilares antigos e soterrados que dão suporte à ciência e a toda produção de cultura – emerge um fato novo que exige reflexão especialmente por parte da mídia impressa, com maior capacidade de considerações.

Qual o significado, científico-tecnológico de um lado, mitológico de outro, de um garoto de 15 anos lançar-se na busca de seu pai desconhecido em um complexo labirinto de referências que formam, em termos humanos, um continuum inseparável?

Apenas essa questão seria capaz de abrigar volumes de considerações, entre elas articulações psicanalíticas como as produzidas por Sigmund Freud e Jacques Lacan sobre a metáfora paterna (‘o nome do pai’), passando por transformações recentes na estrutura da família e o redesenho (a que custos?) da sociedade humana.

Palavras de ordem

Apressada em suas abordagens, a mídia parece incapaz de perceber suas novas funções, especialmente uma especialização representada pelo jornalismo científico – ou jornalismo de ciência, como preferem os puristas.

Talvez a função fundamental do jornalismo científico, longe de correr atrás de furos e manchetes, como fazem outras áreas do jornalismo, seja a de fornecer inteligibilidade possível para as ocorrências do presente e daquelas que se encontram no horizonte de eventos: as que se anunciam de forma esperada/inesperada, como as primeiras chuvas da primavera.

As possibilidades de clonagem humana (com toda a complexidade por trás de um acontecimento dessa natureza) têm sido sistematicamente refutadas pelo discurso jornalístico caracterizado por uma visão linear e definitiva, sugerindo reduzida perspectiva histórica. O discurso oficial (da comunidade científica), que embasa o discurso jornalístico, é o da condenação. Mas trata-se de discurso oficial, sem contrapartida em abordagens mais profundas e perturbadoras, ao menos para parte da comunidade.

A evocação da clonagem, aqui, serve apenas para se contrapor à iniciativa do que, nos tempos mais movimentados do feminismo, se chamou de ‘produção independente’.

Inúmeras mulheres recorreram às mais variadas alternativas para garantir a ‘produção independente’, a geração de um filho prescindindo da presença do pai, como se fosse um ato simples e unilateral de libertação. E os bancos de sêmem foram uma forma de se satisfazer este desejo.

Quando fez a doação para o garoto que o encontrou 15 anos depois, o doador do banco de sêmem teve a garantia formal de que não seria identificado. As garantias formais permanecem, mas os recursos científico-tecnológicos manipulados por um garoto inteligente e determinado acabam de demonstrar que não passam de letra morta. Ao final de menos de um ano de pesquisa, o menino fez contato amigável com o pai que buscou com determinação típica dos poemas homéricos.

Iniciativas como a ‘produção independente’, embasada na lógica fácil das palavras de ordem com eco na mídia – igualmente carente de reflexão mais densa – acenam com inúmeros paradoxos sistematicamente ignorados, e que o caso do menino que buscou o pai denuncia com doação amorosa surpreendente numa época de enorme carência afetiva.

O risco da letargia

Para onde estamos indo? Qual o futuro da sociedade humana nesta viagem pelo desconhecido que caracteriza nossa absoluta orfandade cósmica?

O jornalismo de um modo geral, e o jornalismo científico em particular, certamente interpretando essas considerações como pauta pretensiosa demais para suas abordagens, prefere deixar as questões nas gavetas da negligência. O caso, aparentemente prosaico do menino que encontrou o pai, no entanto, mostra que elas se inserem no cotidiano e são tão reais como o dia que nasce.

Um observador mais atento pode considerar que questões dessa dimensão atravessam o campo rarefeito do jornalismo para conectar-se com as grandes questões humanas e, nesse sentido, merece atenção da literatura, de todas as formas de arte, da filosofia, ciência e religião – no que terá absoluta razão.

O fato de ela estar sendo invocada neste momento, no campo do jornalismo, justifica-se apenas pelo fato de o jornalismo expressar aquilo que homens como Ortega y Gasset chamaram com certo desprezo de ‘cultura de massa’. O próprio Ortega y Gasset, no entanto, militou no jornalismo, o que significa dizer que, paradoxalmente, reconhecia o valor do que desdenhava.

Abordagens como esta, evidentemente, podem levar a inúmeros volumes de escritos, reunindo pensadores das áreas mais distantes entre si. Como o propósito aqui tem o tempo escasso e sumário da mídia, certamente é interessante considerar as possibilidades atuais de o jornalismo produzir considerações dessa natureza e porte. O que nos leva, de imediato, à discussão sobre a formação do jornalista.

Respostas imediatas, para este e outros casos, raramente estão ao alcance da mão. Daí a vantagem de se recorrer a metáforas e analogias (com todas as vantagens e desvantagens desse procedimento).

Vale considerar que, em fins de agosto passado, veteranos alunos da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) retornaram a essa unidade para uma reflexão sobre sua qualidade de ensino. O diagnóstico confirmou o esperado: o nível está abaixo daquilo que se pretendia desde a fundação da ECA, em 1967, portanto, há quase 40 anos.

Os veteranos certamente foram generosos com a antiga escola. Justificaram, entre outros pontos, com a ditadura militar parte da carência de conteúdo durante os anos de chumbo e os que se seguiram.

Os alunos que cursam jornalismo neste momento seguramente foram mais realistas e cobraram comprometimentos como também seria de se esperar por parte de uma jovem e promissora inteligência sob risco de ser desmobilizada pela letargia.

Função estruturante

Os alunos denunciaram falta de comprometimento dos docentes com o ensino, queixaram-se da oferta de disciplinas eletivas, sugeriram que os professores simplesmente trabalhem mais, ‘respeitando as 8 horas semanais’. E, tão importante quanto as outras questões, exigem que a direção da escola torne pública a data de concursos para novos professores. Essa prática, segundo os alunos, tem se mostrado eficiente para evitar a contratação de maus profissionais.

Se a principal universidade brasileira (a que produz o maior número de mestres e doutores capazes de fazer avançar o conhecimento) enfrenta problemas dessa natureza, persistentes ao longo de tanto tempo, é de se perguntar o que estará ocorrendo em outras escolas de jornalismo. Muitas delas pouco mais que caça-níqueis para empresários e instituições ávidas de lucro fácil.

O espírito corporativo por trás da não divulgação pública de concursos, caracterizando acordos de bastidores, que enrigecem e empobrecem a universidade pública sem que a imprensa denuncie essas questões, configura o que jornalistas econômicos freqüentemente traduzem como ‘tiro no pé’.

Com jornalistas precariamente formados, abordagens de casos como a do menino que encontrou o pai permanecem cada vez mais distantes, por impossibilidade crescente de se articular num todo as várias áreas do conhecimento. Ou, mais que isso, por dificuldade de se reconhecer que essa é hoje uma função vital do jornalismo: preparar a sociedade para as mudanças rápidas e radicais, características deste momento da história.

O que, de um ponto de vista psicanalítico, nos leva de volta à função estruturante do nome do pai.