Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O rio e o legado de Maquiavel e Leonardo

Se mesmo a sagacidade de Nicolau Maquiavel, combinada à genialidade de Leonardo da Vinci, resultou em fiasco, quando os dois se empenharam em desviar as águas de um rio, o Arno, como conta o historiador Roger Masters, em Fortune is a river (Da Vinci e Maquiavel: um sonho renascentista, Jorge Zahar Editor, 1999), talvez fosse o caso de o governo e seus negociadores conhecerem melhor essa história antes de se decidirem pela transposição do rio São Francisco.

O projeto dos dois amigos famosos, no início do século 16, esteve relacionado a atritos entre Pisa e Florença pelo controle de um porto e resultou no naufrágio de uma enorme quantidade de florins, sem contar o desperdício de trabalho humano, riqueza sem qualquer contrapartida monetária à altura.

No Brasil, onde também se trava uma disputa, de natureza política, o cenário talvez seja até mais complexo que na Itália que já estava no Renascimento e que, por isso mesmo, despertava para o futuro combinando engenho e arte. Para o bem-estar social e as perspectivas humanizadoras da cultura.

No Nordeste brasileiro – que segundo o projeto oficial será beneficiado pelas águas do São Francisco – domina o coronelismo mais arcaico e, por isso mesmo, as perspectivas reais de benefícios às parcelas pobres da população podem não passar de miragens, tormentos que assolam confinados aos desertos, privados do recurso essencial da água.

Evidência disso é que a distribuição da água desviada, a custos elevadíssimos, deve ficar sob controle dos governadores, o que dispensa comentários quanto ao uso que costumam fazer de recursos bem mais prosaicos que água, caso de botinas e dentaduras.

Plataforma política

A igreja católica pode estar longe de ser o melhor exemplo de lucidez, discernimento e comprometimento com o bem-estar social, ao menos neste mundo. Ainda que historicamente algumas de suas ovelhas-negras tenham rompido com o obscurantismo para amenizar o sofrimento humano do dia-a-dia.

Assim, ainda que absolutamente não anuncie o novo – ao contrário de certas considerações sociológicas – o artigo do bispo de Barra (BA), Luiz Flávio Cappio, publicado na edição de segunda-feira (10/10) da Folha de S.Paulo (‘Vida para todos: por isso fiz a greve de fome’, pág. A3) dá, no espaço de umas poucas linhas, a dimensão para o Nordeste que parece faltar aos planos oficiais. Em resumo, o bispo – que interrompeu sua greve de fome para dialogar com o governo – recomenda uma visão sistêmica para a região.

Visão sistêmica, integrada, ou holística – termo suspeito aos ouvidos pragmáticos de homens ditos de ação – implica conceber problemas e soluções como um todo, o que nos remete a um histórico brasileiro tratado em artigo na edição anterior deste Observatório [‘As metáforas de São Francisco, o rio’, remissão abaixo]. Temos hábito e apego a soluções tópicas, demonstrando incapacidade intelectual para a apreensão do conjunto, de onde emergem as potencialidades e os desastres de qualquer ação mais profunda, como os desvios das águas de um rio.

O governo deseja fazer a transposição a todo custo para, a partir daí, ampliar sua plataforma política para reeleição do atual presidente ou, na pior das hipóteses, assegurar manutenção de espaço político. Boa parte dos opositores do projeto, governadores e outras instâncias do poder arcaico, são contrários à iniciativa exclusivamente por esta razão. Quanto ao povo, ora o povo, se valesse alguma coisa, teria tido suas necessidades atendidas em séculos anteriores.

Abordagens descompassadas

Outra frente de confronto, digamos, mais técnica, também divide opiniões. O ministro Ciro Gomes, da Integração Nacional, lidera o bloco dos defensores da obra. Mas nomes respeitados – caso de João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, e do geomorfólogo Aziz Nacib Ab’Saber, professor aposentado da Universidade de São Paulo e um dos grandes nomes da ciência no Brasil – previnem para riscos e ciladas capazes de comprometer as boas intenções. Coisas de que o inferno está cheio, segundo a sabedoria prática de nossas avós.

Entre essas duas frentes de debate, este mesmo Observatório da Imprensa registrou na edição passada opiniões que vão do esclarecimento ao estarrecimento. Um advogado recomenda que a população do Sudeste, onde repercute a iniciativa da transposição, cuide do degenerado Tietê, numa demonstração de intolerância e prepotência típicas de homens pouco esclarecidos – o que não combina, ao menos em princípio, com as exigências de sua profissão. Outro, identificado como cearense que vive no Rio de Janeiro, esbravejou com a retirada das águas do Paraíba do Sul, desviada para o Guandu, para abastecimento dessa cidade.

Raciocínios dessa natureza sugerem que o desastre, a negligência e a irracionalidade cabível a cada um dos exemplos, uma vez iniciados, devam ter continuidade, em vez de revisão crítica. Na lógica desse tipo de observador, a queda de um avião não deveria merecer a menor investigação, cuidado elementar para evitar que acidentes semelhantes se repitam. As investigações críticas, é preciso enfatizar, justamente são o que fazem do avião um dos meios de transporte mais seguros, incomparáveis aos automóveis que rodam a meio metro de altura do chão.

Outros leitores recomendam a ação imediata levando em conta apenas e tão-somente o tempo decorrido entre a primeira consideração neste sentido, por volta de 1847, e os desencontros que permanecem atuais.

Em conjunto, todas essas reações denunciam a ausência de informação capaz de sustentar uma posição crítica consistente com a complexidade da obra tanto do ponto de vista financeiro (4,5 bilhões de reais pelo menos) quanto ambiental, com uma diversidade de desdobramentos além do social. No último caso, levando em conta a possibilidade de que os marginalizados da água de hoje não continuem nessa posição, mesmo com o investimento de todo o esforço previsto.

A Folha de S. Paulo foi o único entre os grandes jornais a tratar a questão com a atenção que merece ao dedicar, no último fim de semana, um caderno de oito páginas analisando o ‘caminho das águas’.

Veja cuidou do assunto com a má-vontade característica dos temas que ela própria, por obra da onisciência e onipotência de sua redação, coloca em pauta. Quanto ao Estado de S.Paulo, com espaço reduzido para uma questão dessa profundidade e importância, revela apetite pequeno para a abordagens dos temas nacionais, um atentado à memória de Euclides da Cunha. O jornalão, que recentemente demonstrou preocupações com temas relacionados à Primeira Guerra Mundial, aparentemente não chegou ao terceiro milênio – daí o descompasso de suas abordagens, ilustrada pela figura dos agregados que sobrevivem em sua redação.

Obscurantismo e prepotência

Agregados, um legado da sociedade senhorial, sobrevivem com os restos da mesa do poder e em troca disso corporificam e executam as ordens e desejos senhoriais. Podem executar, com o conformismo triste dos que abdicaram da liberdade pessoal, o trabalho sujo que freqüentemente é exigido deles como contrapartida natural.

Dispensável considerar que mídia e sociedade refletem-se como num jogo de espelhos. Daí a qualidade das considerações e preocupações de um e outro lado, situação que nos opõe ao cenário italiano quando, no início do século 16, o país ainda longe da unificação intuía o futuro nacional e ocidental.

Pelo levantamento feito pela Folha pode-se saber que pelo menos 12 milhões de reais já foram invertidos nessa obra controvertida (por um enfoque restrito de oferta de água, desacompanhado de outros arranjos regionais). Isso equivale ao dobro dos recursos carimbados para a revitalização do São Francisco, assolado pela erosão, desmatamento ciliar, além de poluição por esgotos urbanos e industriais, entre outras formas de agressão.

Ah, sim. O custo da transposição (com bombas para recalques de centenas de metros e túneis que se estendem por até 15 km) será repassado às tarifas, carta que o governo esconde no bolso do colete. Nada novo se for considerada a experiência da introdução da CPMF, entre outras tributações que crescem como massa de pão em tardes de calor. Apenas essa condição dá uma medida da transposição como engenharia não-popular, sem levar em conta números convenientes inflados e desinflados para atender às exigências de flutuação dos planos.

Marco Antônio Tavares Coelho, jornalista e autor do livro Os descaminhos do São Francisco, sustenta que o projeto beneficiará privilegiados. Ao lado dele, José Graziano da Silva, assessor especial da Presidência da República, garante que a iniciativa combaterá a injustiça social. Se depender do histórico de curto prazo da administração atual, a fala de Graziano não vai além do discurso, descomprometida inteiramente da prática.

Não é por acaso que o São Francisco ainda hoje, na era espacial, permanece conhecido como ‘Rio da Unidade Nacional’. Mas unidade, ao menos do ponto de vista do bem-estar social, com mínimo de coesão – ameaçada reiteradamente pela truculência, o obscurantismo, a prepotência e sobretudo a negligência que fizeram de Domingos Fernandes Calabar (1600-1635) um dos ícones da libertação nos ‘anos de chumbo’, sob o mando restrito dos generais.