Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O sensacionalismo é pior do que o vírus

Refletindo preocupações de natureza econômica com implicações na área de saúde pública, o noticiário deste fim de semana foi farto em tratar da gripe aviária, que tem como agente causador o vírus H5N1. Duas publicações semanais nacionais, Veja e IstoÉ, abordaram o assunto – a primeira com cobertura de miolo e a outra, com destaque de capa.


A Folha de S.Paulo também tratou de gripe aviária numa entrevista com o virologista John Oxford, da Queen Mary University e diretor-científico do Retroscreen Virology, principal laboratório europeu de investigação nesta área. O professor Oxford trabalha em duas frentes que, aparentemente prosaicas, podem se mostrar decisivas no combate à gripe aviária: desinfetantes para lavagem das mãos e de áreas afetadas, além de máscaras capazes de proteger contra a inalação desses microorganismos.


Num ambiente como o sugerido pela possibilidade de uma pandemia, a imprensa de boa qualidade também pode adotar ao menos dois procedimentos básicos como forma de contribuir para uma resistência comum a essa ameaça invisível a olho nu.


Cautelas necessárias


A primeira delas, não necessariamente nesta ordem, é a conscientização de leitores não-familiarizados com o universo de microorganismos ameaçadores à saúde, de que essas formas integram a ampla e fascinante variedade da vida. Assim, o que à primeira vista poderia parecer uma ameaça inesperada (resultado de algum desagrado que teríamos feito aos deuses) tende a ser contextualizada de forma harmoniosa e inteligível. As pessoas, evidentemente, serão sensibilizadas para a necessidade de adotarem cautelas e precauções mas, certamente, a imagem do terror pode ser amenizada.


O segundo procedimento, para falar de blocos capazes de reunir um conjunto de informações estratégicas, é concentrar-se no que é realmente significativo. Assim como os órgãos internacionais de saúde pública cobram dos governos, também a mídia poderia articular um plano informal de ação em benefício da boa qualidade da informação.


Para fornecer inteligibilidade possível a um público amplo, com repertório diferenciado em termos de compreensão e comportamento, certamente caberá às assessorias de imprensa de órgãos de saúde pública e centros de pesquisa científica – como universidades e empresas privadas – uma responsabilidade bastante específica e nada desprezível. Assessores de imprensa podem e devem ser os primeiros selecionadores dos pesquisadores mais aptos a tratarem do assunto. E como conhecem bem seus colegas de redação, também podem e devem adotar certas cautelas. Uma delas é insistir com o pesquisador para que ele seja o mais claro possível em suas explicações. Para isso, uma estratégia tão simples como lavar as mãos também pode ser de enorme importância.


Impacto suavizado


Com a ajuda do próprio pesquisador ou de outros pesquisadores da instituição, devem ser produzidos textos de suporte a serem oferecidos a jornalistas. Nesse material é necessário explicar, da forma mais clara e simples possível, o que é um vírus (tarefa que não pode ser subestimada, já que um vírus apresenta a complexidade do que parece simples), como eles se comportam e que papel desempenham no ambiente, entre outras informações relevantes.


Repórteres, como os jornalistas em geral, são criaturas que correm contra o relógio. Parte deles pode ter boa formação e se dar conta da complexidade do assunto que tratam. Mas certamente não é o caso de todos. Jovens repórteres, sem base suficiente nas faculdades em que estudaram e muitas vezes ainda sem tempo de terem aprendido as regras básicas da profissão, podem complicar-se com assuntos como este e, assim, involuntariamente, dar suas próprias contribuições para que o difícil fique ainda pior.


O eventual cancelamento do campeonato mundial de futebol como medida sanitária, como chegou a considerar o presidente da Fifa, Joseph Blatter, se confirmado, ampliará os temores em escala planetária. Ajudar a amenizar o impacto dessas decisões certamente é tarefa de uma mídia consciente de sua responsabilidade social.


Os textos de suporte oferecidos pelos assessores de imprensa aos jornalistas envolvidos com a cobertura da gripe aviária podem contribuir muito para que esses impactos emocionais maiores sejam suavizados, o que não deixa de ser também uma medida preventiva. Nesses textos, certamente será produtivo explicitar que as formas vivas de um modo geral se defendem, o tempo todo, de agressões ambientais de uma variada complexidade, onde também os vírus estão presentes. Mesmo a energia solar, vital para a vida na Terra, em determinadas situações pode ser perigosa a muitas espécies, especialmente pela radiação violeta capaz de produzir mutação nos códigos genéticos.


Um risco adicional


Uma preocupação maior por parte da mídia, contando com apoio estratégico de assessorias de imprensa especializadas, deve contextualizar esses riscos. Deve mostrar, por exemplo, que vírus, como o da gripe aviária, em vez de serem a ameaça do momento, como se tivéssemos atingido um desequilíbrio ambiental irreversível, capaz de nos levar ao final dos tempos, de muitas maneiras integra a história da humanidade.


É justamente o desenvolvimento científico, enquanto decifrador de mecanismos da natureza, a instância que nos oferece, em termos de civilização, a melhor garantia de que seremos capazes de enfrentar desafios como este sem perecer. Mas isso, nem de longe, pode ser sugerido como combate, guerra contra a natureza. Ao contrário, nossa capacidade de resistir a essas ameaças vem exatamente da perspectiva do conhecimento que envolve a complexidade da vida. Neste sentido, pressupõe a compreensão de uma perspectiva mais ampla e diversa.


Mas no contexto de uma ameaça como a representada pela gripe aviária, enquanto possibilidade de se transformar em pandemia, um risco adicional vem crescendo nos últimos tempos e, aparentemente, é de solução mais difícil. Trata-se dos púlpitos midiáticos ocupados por uma enorme variedade de igrejas tendo, em comum, apenas o interesse de saquear os menos informados e desprotegidos da sorte. Num desses inúmeros espaços conquistados em redes de TV por esses oportunistas desqualificados, um grupo de ‘pastores’, tropeçando na gramática e escorregando nas concordâncias garantia, na semana passada, que ‘os sismos dos últimos tempos se explicam pela maneira como estamos agredindo a Terra’.


Sem sofrimento


Que desequilíbrios ambientais produzidos por atividades humanas costumem ser acompanhados por reações naturais de enorme variedade é praticamente lugar-comum. Mas isso, evidentemente, não se aplica a sismos ou vulcanismos (há sismos induzidos pela formação de enormes reservatórios de água, mas não era disso que os ‘pastores’ tratavam). Sismos e vulcanismos são evidências da atividade geológica da Terra e diferentes razões levam a acreditar que esta atividade está associada à vida na Terra, e não o contrário.


Aos ‘pastores’, no entanto, convém mais confundir que esclarecer. É dessa forma, e sem que sejam interpelados por nenhuma instância de poder público, que eles retiram seus dividendos, conduzindo-nos, com suas falas mansas, de volta ao obscurantismo da Idade Média. Antes que Isaac Newton explicasse a passagem dos cometas como resultado da gravitação universal e com isso desse um chute no traseiro dos demônios da má fé.


De qualquer maneira, se os cometas já estão suficientemente acomodados no céu, ainda há muito por fazer com instâncias, à primeira vista, tão simples quanto um vírus. A compreensão clara desses processos por parte da população, com a ajuda da mídia, certamente é o caminho mais promissor para evitar desdobramentos indesejáveis. Não apenas para a prevenção sanitária, mas também como antídoto a um sofrimento psíquico inútil e desnecessário. Tudo isso integra uma enorme e complexa ação preventiva.


O papelão da IstoÉ


Antecipando-se ao trabalho sujo que seria de se esperar de publicações descomprometidas com um mínimo de responsabilidade social, IstoÉ mergulhou fundo no caso da gripe aviária em sua edição desta semana. Fosse uma publicação respeitável e seria levada a sério. Não é o caso, lamentavelmente.


A colcha alinhavada com todo tipo de retalho para a montagem da matéria de capa da edição denuncia a precariedade da costura, com a única intenção de produzir sensacionalismo voraz, vender bem e extrair lucros à custa de enorme angústia social. Isso é o que verdadeiramente pode se chamar de terrorismo. Bandidagem pura e impune.


A receita da revista não é nova. Na essência, altera verdades com doses cavalares de exagero. Combina de forma desonesta, e sob encomenda, frases e falas que, devidamente contextualizadas, produziriam outro sentido.


Para começar, não é nova a idéia de que epidemias possam manifestar-se em escala global, justificando o que os dicionários registram como pandemias. Daí a prever que o número de mortos pela gripe aviária chegará a 50 milhões de pessoas é pura invenção. ‘Os analistas estimam em 50 milhões o número de mortos, o equivalente ao total de vítimas fatais da Segunda Guerra Mundial’, reproduz o texto de capa.


Que analistas fazem essa previsão? IstoÉ não diz. Nem poderia. A frase foi pinçada de outro contexto para a montagem de uma caricatura.


John Oxford, por exemplo, ouvido pela Folha de S. Paulo numa matéria crítica, mas bem posta, pressionado pelo repórter Fábio Victor para citar um número, fala em algo abaixo de 2 milhões de mortos. Evidentemente não se trata de algo irrelevante. Afinal, está se falando de uma pandemia e uma pandemia dizima especialmente a população mais pobre, menos nutrida e mais numerosa, vivendo em lugares pouco recomendáveis, desprovida de infra-estrutura básica, como água potável e rede de esgotos. Essas são as vítimas mais freqüentes, miseráveis que, de uma ou outra forma, já estão presos às garras da morte. Para eles, tudo é apenas questão de tempo.


Claro que o processo de mundialização, ou globalização (expressão que na verdade remete mais a uma internacionalização de mercados, em que pese toda a interatividade dessa nova ordem) dá sua contribuição à complexidade de uma pandemia. Mas, ao mesmo tempo, o conhecimento científico e a capacidade de reação são distintas, por exemplo, do acontecia no início do século passado, na eclosão da Gripe Espanhola.


Contexto diverso


Ninguém pode negar e ninguém está negando a possibilidade de ocorrência de pandemias. Ao contrário. Epidemiologistas respeitáveis, de todo o mundo, têm pontuado com suas advertências na tentativa de sensibilizar os governos a adotar medidas capazes de amenizar os impactos de uma ocorrência desta natureza.


Mas, no cenário apontado por esses especialistas, com freqüência aparecem relatos de deterioração ambiental, marginalização social com efeitos profundos na nutrição, ausência de infra-estrutura sanitária satisfatória e, entre outras, carências enormes na área de educação. E, ao menos em educação, a matéria de capa de IstoÉ dá uma significa contribuição para que as coisas se tornem piores do que já estão.


No estilo inconfundível das farsas, IstoÉ reproduz uma fala do ministro da Saúde, Saraiva Felipe, que teria dito: ‘Tentar impedir a chegada da gripe aviária ao nosso país é bobagem.’


A frase, evidentemente, faz sentido em se tratando de uma pandemia, mas a intenção velada da revista é sugerir que o que existe aqui é negligência oficial. Em seguida, sustenta que ‘a Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuária (Embrapa) estabeleceu até a data: ela [a gripe aviária] chega ao Brasil em setembro próximo’.


Se a frase for verdadeira, quem é seu autor? Que metodologia ele utilizou para fazer essa previsão? Uma publicação de qualidade razoável forneceria essas informações ao seus leitores. Não é o caso de IstoÉ, que monta suas histórias de capa na base da gilette-press, recurso que os meios de comunicação contemporâneos deveriam ter sepultado em definitivo.


‘A pandemia de uma gripe virá e a medicina moderna não sabe como combatê-la. Virá em poucos meses. Isso é certeza’, reproduz IstoÉ, alegando ter obtido a interpretação de Michael Ostherholm, diretor do Centro de Pesquisas sobre Doenças Infecciosas dos EUA e professor da Escola de Medicina da Universidade de Minnesota.


Se Ostherholm realmente disse o que IstoÉ lhe atribui (combinando a gillete-press com uma ou outra entrevista para forjar alguma consistência ao seu material de capa) estará apenas reforçando um coro de advertências. Mas num contexto diferente do montado pela revista – e é justamente isto que subverte a ordem desejável para uma discussão produtiva. Alguém já disse que a pior mentira é a que vem misturada a alguma dose de verdade. Ao menos neste caso deve-se admitir que IstoÉ foi eficiente: produziu o que há de pior e serviu aos seus leitores como jornalismo crítico e responsável.


Gato por coelho


Para completar, mas longe de esgotar a deplorável reportagem de capa de IstoÉ, é preciso dizer que a matéria ainda tem o defeito imperdoável de ser mal escrita. Nenhum leitor, em nenhuma circunstância, merece uma matéria mal escrita. Esta deveria ser a primeira lição, no primeiro dia de aula, em todas as escolas de jornalismo.


A certa altura, o texto mal azeitado de IstoÉ dispara: ‘Já se perdeu a conta de quantas toneladas de galinhas, patos selvagens, cisnes, gansos e outras aves foram incineradas nos últimos três anos’.


Qual a fonte desta surpreendente estatística, ou antiestatística? IstoÉ não revela porque não se trata de estatística nem de antiestatística, mas de um deslize imperdoável em estilo e precisão elementares.


Quem preferir pode optar por metáfora ainda mais surpreendente: ‘A morte tem nome e tamanho: chama-se H5N1, popularizada como vírus da gripe aviária, e seu diâmetro é oito mil vezes menor que o diâmetro de um fio de cabelo’.


Aqui, a pretensa acuidade de uma medida física tenta, a pretexto de suposta abordagem científica, dar validade a uma situação injustificável.


Para ilustrar as previsões macabras vendidas como perspectiva de futuro na matéria principal de IstoÉ, evidentemente não poderiam faltar os infográficos. Monte uma farsa, dê uma boa polida nela e anuncie com o vigor de um vendedor de peixes. Esta é a estratégia da revista para tirar o dinheiro do bolso de seus incautos leitores.


Mas também o infográfico tem lá seus deslizes. A certa altura lê-se que ‘alguém gripado pode contrair a doença das aves e gerar um novo vírus, transmissível de homem para homem’.


A se levar a sério o que o infográfico anuncia, mulheres, meninos e meninas estão a salvo da pandemia, transmissível apenas de ‘homem para homem’.


Empulhação, mau gosto e prestidigitação barata como forma de vender gato por coelho tem seus limites. Mesmo nos tempos mais difíceis. IstoÉ, no entanto, se superou, o que não deixa de ser surpreendente.

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Jornalista