Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Paralogismos do jornalismo cientifíco

A vida só apreende a vida pela mediação das unidades de sentido que se elevam acima do fluxo histórico. Wilhelm Dilthey (1833-1912)

Na edição de terça-feira (16/1) New York Times, Dan Hurley publicou um artigo cujo titulo despertou considerável curiosidade dos leitores pelo mundo – ‘Diet Supplements and Safety: Some Disquieting Data’ cuja tradução aproximada poderia ser ‘Suplementos dietéticos e segurança: alguns dados inquietantes’. O articulista apresenta dados perturbadores sobre o uso e repercussões de produtos livremente comercializados como suplementos vitamínicos, óleos essenciais e ervas.

De acordo com os relatórios da Associação Americana do Centro de Controle de Envenenamentos citados Hurley, consumir suplementos vitamínicos e óleos essenciais pode representar um risco epidemiológico significativo para a população. Em 1983 relatou-se 14.006 casos, em 2005 foram 125.595 incidentes relatados a partir de consumo de suplementos vitamínicos e produtos congêneres. Números modestos se comparados ao que o National Institute of Health – em seu relatório de 2006, Congressional Justification – revela no item ‘Por que as pessoas diferem no modo como respondem às drogas’ em relação aos fármacos convencionais, quando lamenta que ‘infelizmente a maior causa de mortes nos Estados Unidos são por reações adversas as drogas'[ver aqui].

De 1989 a 2004, o Food and Drug Administration, continua Hurley, recebeu relatórios com o registro de 260 mortes associadas a ervas medicinais e outros produtos não vitamínicos. São informações relevantes, pois a maior parte destes produtos são livremente comercializados. Em farmácias não ficam sequer atrás de balcões com acesso restrito. Qualquer cidadão, cá ou lá, pode abarrotar sua cesta ou carrinho de supermercado com variedade de produtos do gênero – de vitaminas a compostos naturais industrializados – cuja indicação é, em geral, tanto imprecisa como perigosa.

Funciona ou não?

Apesar do déficit analítico da matéria, aí reside o mérito deste alerta que desmonta a crença do senso comum de que o ‘natural’ – com toda a crítica da mitologia que o termo comporta – é, no máximo, inócuo. Um aspecto inusitado é que Hurley incluiu nesse pacote de substâncias nocivas os medicamentos e ‘produtos’ homeopáticos. Sem muitos detalhes, revela que em 2005 foram 7.049 relatos de reações, incluindo 564 hospitalizações e dois óbitos.

Apenas para situar o problema, apresento breve contexto. Entre boa parte dos pesquisadores que investigam substâncias ultradiluídas acredita-se que elas realmente podem ser nocivas à saúde se ingeridas sem os devidos cuidados, orientação e assistência médica. Não há segredo algum. Estabelecido está que todo fármaco pode induzir reações adversas, das banais às mais potentes. Dependerão diretamente da sensibilidade e das idiossincrasias do sujeito. Por isto mesmo, muitas vezes, a única e abençoada prevenção é a excessiva cautela na utilização de qualquer produto farmacêutico (natural ou não) ou suplemento alimentar.

De todo modo, o que parte da mídia científica mundial, incluindo revistas médicas importantes, tem relatado nas mais recentes polêmicas (e aqui reside o paralologismo) é que as substâncias infinitesimais são suspeitas – não de toxicidade – mas exatamente do oposto. São suspeitas de não apresentarem quaisquer efeitos biológicos detectáveis. Nem in vitro (em laboratórios) nem in vivo (em seres humanos).

É claro que são conclusões parciais, portanto contestáveis uma vez que um olhar hermenêutico determinaria resultados distintos. Experimentações em seres humanos, estudos observacionais e qualidade de vida em saúde, por exemplo, contraditam fortemente estas conclusões de inação.

Eis um aspecto desafiador. Se o Food and Drug Administration pode constatar empiricamente que, sim, há efeitos adversos em fármacos homeopáticos e eles são significativos, como é que, com a obstinação estóica de um mantra, costuma-se acusá-los (eles, os fármacos) de serem substâncias farmacologicamente inertes?

Na verdade, este tem sido o instransponível obstáculo epistemológico, uma espécie de Rubicão da homeopatia desde sua fundação, já que não há suporte científico consensual para explicar o mecanismo de ação dos medicamentos. Isto significa o seguinte: o descarte se dá uma hora pelo mais, outra hora pelo menos. A célebre pergunta ‘funciona ou não funciona?’, doravante passa a carrear insuportável ambigüidade: ‘Funciona. Apenas para intoxicar’. Mas, um momento! Substâncias infinitesimais não são nem mesmo ‘substâncias’ strictu senso. Se não há sequer vestígio de princípio ativo, nem alguma outra evidência validada, como é que podem determinar tais ações?

Vida prática

Deparamos – e o artigo do New York Times é apenas uma pálida amostra – com um diagnóstico superficial de reprodução mecânica e acrítica de dados que reverberam, impactando a sociedade e a comunidade de usuários com desinformação. Só para oferecer uma cifra, calcula-se em cerca de 180 milhões de europeus os consumidores de medicamentos homeopáticos. Além do critério duplo, o surpreendente aqui é o tamanho do paralogismo.

Ficaríamos assim: um dos jornais mais influentes do mundo anuncia que medicamentos homeopáticos envenenam. Mas até bem pouco não havia nada ali nos frascos, apenas água. Efeitos seriam apenas miragens dos crentes, efeitos-placebo. Pois assim posto, ou está em curso uma notável epidemia de efeitos-placebo nos centros de monitoramento de envenenamentos ou um fenômeno que, verificado, deveria encabeçar a lista de investigações gerando, inclusive, fomento público para pesquisas.

O corolário seguiria com as seguintes inquietações: serão falsos os remédios? Há venenos ativos nas doses infinitesimais? Se há, tudo deve ser reavaliado. As restrições sobre a veracidade da ação deveriam ser substituídas por desejo de conhecer melhor esses acidentes clínicos, surgidos na vida prática da sociedade mais industrializada do planeta. Seria cabível pensar que tais fatos ocorrem porque – sem teorias conspiratórias, mas apenas suposições comerciais – todas as indústrias farmacêuticas estimulam o consumo e a automedicação?

Teorias e verificações

Mas há outra opção mais arrojada: avaliar sociologicamente o que está acontecendo com o jornalismo científico. Sabemos que a lógica em si mesma é insuficiente para dar conta de exigências e possibilidades de validade que, conforme nos mostrou Thomas Kuhn, ampara-se em valores e necessidades de uma dada cultura, em um determinado momento histórico.

Ou seja, impõe-se reconhecer a não universalidade e a não univocacidade dos padrões normativos de uma determinada ciência. Em seu clássico a Estrutura das Revoluções Cientificas, Kuhn nos avisou que há um único aspecto inadiável na análise do desenvolvimento das teorias e verificações cientificas: a psicosociologia da ciência e a compreensão das motivações, sentidos e significados de seus discursos. Ele sabia exatamente a duração e o alcance desta formulação.

Neste caso, a pauta é urgente.

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Médico, mestre em Medicina Preventiva, doutor em Ciências pela FMUSP e integrante do Grupo de Racionalidades Médicas do IMS-UERJ; autor de Entre arte e Ciência (Editora Hucitec) e Homeopatia, Medicina sob medida (Publifolha), entre outros