Os temas relacionados ao Programa Nuclear Brasileiro há muito não tomavam tanto espaço na mídia quanto se tem visto nos últimos meses. São questões como a retomada da construção ou não de Angra III, a entrada do Brasil no tão seleto grupo de países que enriquecem urânio para uso como combustível nuclear ou, mesmo, os usos industriais e medicinais desse tipo de tecnologia.
Afora comentários desastrosos que tivemos em passado recente – que, diga-se de passagem, desconsideraram até mesmo a Carta Magna –, vivemos um momento de renovação nesse segmento. Sinto-me no direito de dar tal opinião porque, por obra de uma das maravilhas do jornalismo, que é a possibilidade de cobrir os mais diversos temas, encontrei-me como assessor de imprensa especializado na área.
Muitas são as matérias, mas muitos são os equívocos que a imprensa reiteradamente divulgou. Esses equívocos foram inclusive motivadores do brilhante artigo ‘O leitor refém do discurso hegemônico’, de autoria da jornalista Marinilda Carvalho, publicado no Observatório da Imprensa [ver remissão abaixo]. Felizmente, o saldo de notícias corretas começou a apresentar um viés de alta, como gostariam de afirmar nossos coleguinhas que cobrem a área econômica, em detrimento daquelas que perpetuavam os erros.
Porém, os juros que incidem sobre os saldos negativos são altos e parecem fazê-los aumentar sem que percebamos. No dia 26 de novembro, o jornalista José Nêumanne Pinto fez uso de seu espaço como comentarista do Jornal do SBT para afirmar que o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, mentira ao anunciar que o Brasil havia chegado a um consenso com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), em relação ao início dos testes de produção para enriquecimento de urânio.
Apenas para situar o leitor que acabou de chegar: no dia 24, o ministro fez o anúncio de que a Fábrica de Enriquecimento, localizada no sul do Estado do Rio, tinha o ‘de acordo’ da AIEA para iniciar seu funcionamento em fase de testes. Essa informação foi, graças a um ruído de comunicação, negada por um porta-voz da Agência. O equívoco foi corrigido pelo próprio diretor da instituição, Mohamed El Baradei, que confirmou o pronunciamento do governo brasileiro. A fala de El Baradei se deu não mais que algumas horas depois do pronunciamento de Campos. Porém, devido ao fuso horário, já na manhã no dia 25.
O que se viu na prática foi que quase nenhum jornal diário publicou a informação negando a declaração de Campos. Não porque não tivessem a declaração ou houvesse um pacto de hegemonia medíocre. Todos os detalhes, exceto pela declaração do diretor da Agência Internacional que ainda não havia acontecido, ocorreram antes do fechamento dos diários. A patacoada não foi repercutida graças ao trabalho responsável dos coleguinhas que, para evitarem o papel de sustentar com sua assinatura como jornalista uma barriga, checaram novamente a informação com suas fontes. O resultado final foi que todos confiaram na veracidade da informação dada pelo ministro da Ciência e Tecnologia.
Antítese da boa prática
Temos sim, como jornalistas, a obrigação, não só moral, mas deontológica, de respeitosamente botar o dedo na cara dos nossos governantes e exigir a verdade em defesa do interesse público. Por isso mesmo, temos também a obrigação de manter o redobrado cuidado de buscar sempre a informação correta. Nada pior para o jornalismo do que uma boa barriga. Se bem que, no caso em questão, não sei se o jargão jornalístico cabe. Afinal, a barriga é, geralmente, fruto da tentativa de furar os concorrentes. No caso aqui, o comentário levado ao ar no SBT se deu muito depois dos fatos, ou seja, a notícia já estava consideravelmente fria. A única acepção que justifica o jargão seria o de entendê-lo como notícia falsa que é divulgada antes de ser devidamente apurada.
Não quero sobremaneira levantar aqui bandeira em defesa ou em acusação deste ou daquele. Quero, sim, levantar o questionamento sobre a boa prática jornalística. Aquela tão mencionada e almejada, mas ao mesmo tempo, tão sobrepujada. Sobretudo, por aqueles que confundem a função de levar a informação com a desfunção de criar a informação.
Apropriei-me desse caso especificamente para sustentar este artigo – que há muito venho querendo parar para escrever – por ser o mais recente e a mais explícita antítese da boa prática. Ou seja, acho que é uma boa pauta. Sinto-me também no direito de expressar uma opinião. E o faço num foro que considero adequado à questão.
Evitando barrigas
Em sua fala ao SBT, nosso colega deu um grande contributo ao jornalismo, sobretudo aos professores que passam a contar com mais um exemplo para ilustrar suas aulas. E aos estudantes, que têm a possibilidade de ver, na prática, o que não deve ser feito. Afirmo isso com o conhecimento de quem já foi aluno e professor.
Não estou à altura de dar conselhos. Limito-me a dá-los a meus filhos, o que faço por missão precípua de ser pai. Não tenho livros publicados, nem mesmo prêmios nacionais ou internacionais. Tenho idade para ser filho do autor do comentário e, de jornalismo, pouco mais de uma década de atuação. Porém, creio que posso tratar de coisas importantes que aprendi no jornalismo. Algumas no banco de faculdade, outras na prática em redações.
Pois bem, lembro-me, como se fosse hoje, do meu saudoso professor e mentor Alfredo Obliziner – de quem tive a honra de ser aluno e com quem tive o orgulho de trabalhar – que me falava sobre o jornalismo responsável. Aquele feito como serviço, que não se alia a interesses pessoais, mas ao interesse público. Esse mesmo modelo de jornalismo é alicerçado em princípios básicos e elementares, tais como a verificação da informação e a checagem das fontes.
Passados alguns anos, a mesma lição, desta vez na prática, foi reforçada pelo meu então diretor de redação, Ricardo Noblat. Nos tempos em que esteve à frente do Correio Braziliense, recordo-me das diversas vezes em que Noblat optou por não dar uma matéria se esta suscitava alguma dúvida quanto a sua veracidade. Isso evitou diversas barrigas, ou patacoadas.
‘Saber não ocupa espaço’
Desconsiderando os comentários pessoais contra o ministro, dou-me ao trabalho de reproduzir alguns trechos do comentário da TV.
‘E ele [Eduardo Campos] ocupa um ministério técnico, Ciência e Tecnologia, não entende nada de ciência e muito menos de tecnologia e, por isso, disse a patacoada de que a Agência Internacional de Energia Atômica teria autorizado o Brasil a enriquecer urânio na usina de Resende, no Estado do Rio. Como não entende nada do assunto, a agência foi obrigada a vir a público dizer que ele não entendeu. Esse é que é o problema de você lotear um ministério com gente que não é do ramo, o que é o caso. Termina fazendo, protagonizando este tipo de patacoada, de trapalhada internacional, que pega mal. Ei, presidente Lula, pega mal!’, assistiram os telespectadores.
A essa altura o leitor já entendeu por que venho usando constantemente o termo ‘patacoada’. Não por ser a palavra escolhida pelo comentarista, mas por ser aquela que melhor ilustra seu comentário.
Patacoadas jornalísticas como esta prestam um grande desserviço a toda a sociedade e geram descrédito aos profissionais de imprensa.
Poderiam ser evitadas se as informações fossem checadas. Os caminhos para isso são tão vastos e acessíveis que as barrigas hoje se dão quando alguém tenta antecipar-se ao fato, e não antecipar o fato.
Além disso, outras questões contribuem para a melhoria no nível do jornalismo. Como já afirmei, não quero aqui dar conselhos, mas relato experiências pessoais que me fizeram muito bem. Resumo a dois pontos. O primeiro se refere ao contínuo aprendizado, à busca incessante do conhecimento. Minha mãe, que é contemporânea de Nêumanne, exerce a função de diretora de uma tradicional faculdade em Brasília. Resolveu voltar aos bancos da graduação para fazer mais um curso superior. ‘Afinal, a vida é o melhor lugar para se aprender e o saber não ocupa espaço’, dizia ela.
Pega mal!
Nêumanne deve conhecer o jornalista e professor Manuel Carlos Chaparro. Se não o conhecer, encontrará na internet diversos artigos de sua autoria que debatem a deontologia jornalística. Ótimos para o aprendizado!
O segundo ponto é mais intrínseco ao jornalismo. É bom apurar a informação na rua, falar com as pessoas, ir até as fontes. Ouso dizer que é um santo remédio. Afinal, assim se faz o jornalismo. Quando o jornalista faz isso, parece que o sangue corre mais solto na veia, evita problemas cardíacos. Um grande amigo, meu compadre e conterrâneo de Nêumanne, depois de seguidos anos ocupando funções de chefia em redação, voltou neste ano para a reportagem. Por vontade própria! E, com felicidade, afirmou que nada melhor do que ir pra rua cobrir uma pauta e depois veicular a matéria. Tive eu mesmo essa experiência e, garanto, é muito positiva e salutar.
Peço a Marinilda Carvalho que me permita citar um trecho final de seu artigo.
‘Nossa imprensa é apenas pusilânime, desinformada, subserviente e a reboque de qualquer assunto, por mais grave que seja. A repórter Tânia Malheiros, que conhecia o assunto, trocou há anos de profissão, virou (boa) cantora. E ficamos todos à mercê desses tolos acríticos.’
E completo: ou desses tolos que querem se auto-afirmar como críticos e ostentam o ridículo.
Portanto, coleguinhas, não checar a informação, manter posicionamentos arrogantes e confundir-se com o poder só conduzem a um caminho. E, aqui, faço meu o raciocínio de Nêumanne, em que me permita parafraseá-lo brevemente: termina fazendo, protagonizando este tipo de patacoada, de trapalhada jornalística, que pega mal. Ei, Nêumanne, pega mal!
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Jornalista, trabalha na assessoria de imprensa do Ministério da Ciência e Tecnologia