Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Por que só americano entende de Amazônia

Propaga-se atualmente que soberania se exerce mais com informações do que com armas. O agrônomo Adalberto Veríssimo, pesquisador da ONG Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia e autor de mais de 80 textos a respeito da região, costuma mencionar o ‘conhecimento encaixotado’, que só passará a ser útil e a existir como ciência depois de publicado.

Na década de 1970, O Estado de S.Paulo, Jornal do Brasil e O Globo noticiavam diariamente a Amazônia. Em menor proporção, a Folha de S.Paulo também privilegiou a cobertura de assuntos da região. Tudo ocupava espaço proporcional à importância que o tema merecia: o potencial energético dos rios, as jazidas minerais (cassiterita, bauxita, ouro, entre elas), demarcação de terras indígenas, migração, garimpos, medicina da floresta, perfil de governadores, navegação fluvial, Correio Aéreo Nacional, tráfico de drogas, contrabando, biopirataria, incentivos (e desvios) fiscais da Sudam etc. Nas universidades, pesquisadores costumavam recorrer aos jornais para conhecer até mesmo o resultado de simpósios de âmbito regional, especialmente em Belém e Manaus.

Noticiário minguado

Havia um custo para se produzir esse trabalho mas, no frigir dos ovos, editores e chefes de produção acionavam a tesouraria, e esta liberava o dinheiro para o custeio das viagens necessárias. Em suma, havia investimento e um saudável retorno. Da rede de aproximadamente 300 correspondentes do Estadão, pelo menos uns 10 respondiam prioritariamente pela pauta amazônica.

Deixe de saudosismo! De certa forma é saudosismo, sim. Correspondentes fixos mantidos nas capitais dos estados viajavam mais e aprendiam. As matérias tinham sustentação. Telex e telefone antecediam a velocidade da internet e, apesar das dificuldades técnicas em algumas transmissões (tropodifusão, por exemplo), o texto chegava à sede e saía publicado na edição do dia seguinte. Em 1977, um megalomaníaco do Rio de Janeiro prometeu à Universidade Federal de Mato Grosso a instalação da Cidade-Laboratório de Humboldt, no Aripuanã. O projeto fracassou. Equipamentos caríssimos desembarcaram no meio do mato, enferrujaram e foram abandonados. O Estadão mandou seu correspondente em Cuiabá contar a história.

Da década de 1980 em diante, o noticiário foi minguando cada vez mais. Os jornalistas Lúcio Flávio Pinto, Élson Martins da Silveira e Manoel Lima, todos do Estadão, em Belém, Rio Branco e Manaus, já relataram essa situação. As viagens diminuíram e a cobertura concentrou-se mais na inteligência de jornalistas especializados baseados em São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro e em outras capitais – menos na Amazônia. Ali, os jornais passaram a comprar textos de colaboradores eventuais, sem vínculo com os jornais, não suficientemente estimulados e, provavelmente, sem o amor, a ousadia, a perseverança e a firmeza existentes no passado – fatores que caracterizavam as relações entre repórteres e chefias. Uma das gratas compensações é o Jornal Pessoal, de Lúcio Flávio, sucedâneo do Informe Amazônico, rico em informações, essência de análises e incomum ousadia.

Rolos de filme

Se compararmos a presença do jornalista e a do cientista no território amazônico, veremos que seus problemas são semelhantes. O norte se vale de pouco mais de 1.000 dos 50 mil doutores do país, conforme levantamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação. Apenas 36,9% dos artigos científicos que tratam da região são de autoria de brasileiros, enquanto os estrangeiros respondem por quase dois terços, constata estudo feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), que analisou 1.026 textos no portal de periódicos da Capes [acesso livre para usuários das instituições participantes].

A região dispõe apenas de 3% dos 1.820 programas de pós-graduação registrados pela Capes. Dos 379 artigos brasileiros registrados, menos da metade foi produzida em instituições amazônicas. Os Estados Unidos detêm 41,6% dos artigos. Destes, apenas uma mínima parte teve a colaboração de brasileiros. Melhorou um pouco, informa o presidente da Capes, Jorge Guimarães: em 2005, os artigos de brasileiros subiram de 1,5% para 1,8% do total publicado. Há três anos o país publicou 14.413 textos científicos, e no ano passado, mais de 16 mil. As grandes revistas são em inglês, exigem texto perfeito.

Sempre generoso – mas, sobretudo, inteligente – O Globo liberava milhares de cruzeiros aos seus correspondentes baseados em Cuiabá, Rio Branco, Porto Velho e Manaus. Isso ocorreu entre 1976 e 1980, conforme testemunhei. A Rondônia o jornal enviava seus premiados fotógrafos Antonio Carlos Piccino, o Soneca (falecido) e Pedro Martinelli. A revista Manchete caprichava nas histórias indígenas. No fim da década de 1970, Cesarion Praxedes consumiu alguns rolos de filmes para fotografar mulheres zorós, nuas, na região do Roosevelt, durante o contato feito pelo sertanista Apoena Meireles. Chegando ao Rio de Janeiro, seu Adolpho Bloch obrigou-o a voltar para fotografar também os índios.

Realidade única

O cofre estava sempre aberto. Eu mesmo fui pautado algumas vezes para percorrer o interior de Rondônia, o Purus e o Sudoeste Amazônico. Na cobertura do clima tenso entre os índios suruís e colonos capixabas, o jornal enviou-me 10 mil cruzeiros pelo Bradesco, suficientes para fretar um pequeno avião da Tama (Táxi Aéreo Mamoré), pagar alimentação e hospedagem em Cacoal. Ainda sobrava alguma coisa. O doutor Roberto Marinho exigia que seus profissionais estivessem bem para ter plenas condições de produzir as reportagens que o jornal exigia. Por isso, dormia-se bem, comia-se do bom e do melhor.

Quantos jornalistas fixos (remunerados e com carteira assinada) trabalham atualmente na Amazônia para as redações de jornais de São Paulo, Rio e Brasília? Meia dúzia, quando muito. Exceções dignas de registro eram as reportagens de Ulisses Capozzoli, Herton Escobar e Carlos Mendes (este, em Belém). Há uns três anos, a Agência Estado tentou um pré-projeto para contemplar a retomada triunfal da cobertura da região. Isso ocorreu muito antes de a Radiobrás internacionalizar o noticiário do país. Alguém ficou sabendo por que a idéia da AE não saiu da prancheta?

Desde abril de 2001, quando a Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC) fez a sua sétima reunião especial em Manaus (AM), a socióloga Vilma Figueiredo, da Universidade de Brasília (UnB), clama pela necessidade de um programa de incentivos para fixar pesquisadores na região, e desta forma aumentar o volume das pesquisas. Dentro da lógica, isso significa a alocação de melhores recursos do orçamento federal para ciência e tecnologia. Também se cobra hoje dos jornais maior atenção ao dia-a-dia amazônico, e não apenas a cobertura da exploração de diamantes na reserva dos cinta-larga, o motim no Presídio Urso Branco em Porto Velho ou tragédias com embarcações nas águas do Rio Amazonas.

Em duas décadas, o foco e os interesses dos jornais mudaram muito; entretanto, parece incompreensível que seja relegada a plano secundário uma região onde ocorre a interação mais intensa entre um gene e seu ambiente – homem, floresta, animais, rios etc., numa realidade única no mundo –, perdendo espaço para a ocupação da favela carioca pelo Exército ou a enchente do Tietê. O(a) estimado(a) leitor(a) sabe que o antioxidante mulateiro encontrado em Rondônia e no Acre regenera a pele de pessoas com queimaduras de terceiro grau? Ou que outras essências nativas vêm sendo pesquisadas por químicos rondonienses e cearenses na busca do controle do mal de Alzheimer? Compreensível seria privilegiar a cobertura de todos esses assuntos, sem poupar o mínimo investimento. Se é que os jornais querem conservar seus – cada vez mais e com razão – exigentes leitores.

Revistas dispensáveis

A Amazônia continua exigindo recursos humanos qualificados, laboratórios, bolsas e cursos de pós-graduação locais, para poder fixar seus doutores. Por sua vez, os leitores esperam a reação do comando das redações. Sorte que, apesar das reformas gráficas e editoriais, restam alguns dinossauros ligados a donos de jornais capazes de desafiá-los e sensibilizá-los ao relembrar o quanto conquistaram quando publicavam índices na capa, contendo ‘Índios – pág. 19/ Igreja – pág. 21/ Terras – pág. 23’.

Sim, o Estadão tinha páginas fixas para esses temas. E noticiava a Amazônia com maior freqüência. O Globo e JB enviavam repórteres do Rio às aldeias indígenas de Rondônia, Acre, Amazonas, Mato Grosso e Roraima. Ou aos feudos das mineradoras e aos projetos do Incra, rio abaixo, rio acima. Mostrava-se o surgimento de cidades, a cultura cacaueira, a exploração da madeira e o ouro dos garimpos.

Nas décadas de 1950 e 60, jornais e revistas cumpriam o dever de mostrar o país dos contrastes. Coleções de O Cruzeiro, Manchete e, mais tarde, Realidade ainda servem de referência a jornalistas e proprietários de empresas que desejam conferir o quanto significou esse tipo de investimento. Com esse passado brilhante, no lançamento da reforma gráfica do Estadão, em 1988, do qual foi correspondente em Londrina (PR), o jornalista Widson Schwartz disse: ‘Quando tem um bom jornal todos os dias, as revistas são dispensáveis’.

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Jornalista