Se a imprensa deve questionar o laudo do Ministério Público que atestou o mau procedimento de socorro que acarretou a morte de Cássia Eller, em 29 de dezembro de 2001, e ao mesmo tempo levantar mais questões sobre o uso de drogas ilegais, deveria, com urgência maior, apurar os números de iatrogenia no Brasil – pouco pesquisados, pouco divulgados e sabidamente mascarados.
Inexiste no país, no sistema de saúde público ou privado, qualquer método de avaliação estatística para estimar a freqüência de iatrogenias. Atrás dessa falha está mais do que uma preocupação: a vaidade da classe médica temerosa das ações judiciais que crescem internacionalmente. E o crescimento dessas ações não se deve a uma maior transparência por parte das instituições médicas, mas a uma maior consciência dos parentes dos mortos por erros médicos e, suspeita-se, de um aumento das próprias iatrogenias.
Pouco se vê, no entanto, a mídia preocupada com as queixas do paciente, e não é difícil optar por não colocar no ar o desabafo de uma mãe que perdeu seu bebê por infecção hospitalar, mau atendimento, maus procedimentos ou erros médicos. A imagem privilegiada, a cena destacada, a explicação mais prolongada é dada aos profissionais da medicina – afinal eles não estão descontrolados, não estão com as emoções abaladas e por isso merecem crédito.
E estaria justamente na quebra dessas emoções inabaláveis, segundo os profissionais humanistas, o segredo de uma medicina mais justa, mais eficiente e mais responsável, inclusive pelos erros. Nos milhares de casos de erros médicos no mundo o mais incomum nos tribunais é encontrar um médico que diga ‘errei’, simplesmente.
Horror a vômitos
Hipócrates já recomendava que os médicos procurassem evitar ao máximo esses equívocos e pensassem muito antes de prescrever medicamentos. Para ele, as intervenções médicas poderiam causar um mal maior do que a doença e desviar os médicos menos sensíveis do eixo da cura, que viria sempre das dicas do próprio paciente.
É comum pacientes de Aids e câncer morrerem de infecções hospitalares ou excesso de radiação, e normal que a causa dessas mortes seja creditada apenas à doença. É praxe que seja assim e, no Brasil, devido à baixa escolaridade, há todo tipo de abuso para proteger médicos e instituições.
Desde 1997, ministérios da Saúde de países como Alemanha e Suíça levantam dados para avaliar os casos de iatrogenia. De lá para cá constatou-se que só na Alemanha morreram cerca de 25 mil pessoas vítimas de erros médicos, maus procedimentos ou prescrições inadequadas. Não podemos esquecer que na Alemanha a medicina é muito menos intervencionista do que no Brasil e a população é muito melhor informada, tanto que os médicos se preocupam em abrir a questão e não em ocultar equívocos.
É vergonhoso que a classe médica brasileira se esconda atrás do drama pessoal de uma mulher que tinha problemas de coração – possivelmente em decorrência do consumo de drogas – para não encarar que houve, no mínimo, um mau procedimento médico no caso da cantora Cássia Eller.
O medicamento Plasil possui uma lista extensa de efeitos colaterais possíveis. Não é indicado para pacientes cardiológicos e não é o remédio correto a ser ministrado em alguém que está prestes a sofrer uma parada cardiorrespiratória. É contra-indicado para crianças, por exemplo, mesmo assim é o remédio escolhido por vários obstetras para aumentar o leite materno, porque acelera a produção do hormônio prolactina, o hormônio produtor de leite. E, nesses casos, o medicamento tido como inócuo pela população médica é receitado como um chazinho inofensivo e largamente utilizado em pós-operatórios e contra qualquer tipo de enjôo. Em hospitais públicos ou privados, qualquer paciente que chegar reclamando de enjôos é entubado no Plasil sem muitas delongas. A população médica tem horror a vômitos, embora deixar uma pessoa vomitar possa ser o melhor remédio para o sintoma imediato.
E, afinal, se não temos pesquisas sobre iatrogenias no Brasil, como os médicos e as instituições podem nos provar que tia Belmira, que estava com enjôos e morreu no hospital depois de receber uma intravenosa de Plasil, não morreu de Plasil?
Dois detalhes
A mídia deve apurar e acompanhar melhor o caso da Cássia Eller, pelo menos para descobrir que o Plasil não é tão inofensivo quanto argumentam os médicos, pelo menos para abrir os olhos da população sobre os números não verificados de iatrogenias no Brasil, pelo menos para não puxar o tapete do Ministério Público, que tem seus argumentos e não pertence a nenhuma casta profissional inexorável.
Principalmente nossa mídia deveria garimpar informações para que a população questionasse um pouco mais os saberes absolutos dos médicos, cada vez mais enredados pelo marketing dos laboratórios, cada vez mais cativos dos congressos patrocinados pela indústria química e, paralelamente, mais distantes dos corpos dos pacientes.
À mídia não cabe julgar a equipe médica que atendeu a cantora, nem difamar a clínica que prestou socorro e certamente outros serviços mais felizes à população. Os médicos podem errar, errar é humano, errar pode resultar em fatalidades letais e esse é um risco da profissão que está se tornando banal devido a soberba da classe médica. Esta tem esquecido a parte ‘pincel’ do bisturi, não somente quando opera, não cuida, não ouve, não recebe o paciente, mas, principalmente, quando não admite que poderia ter sido diferente, que gostaria de ter sido mais sensível para captar outra possibilidade que não aquela que resultou na morte do paciente.
A maior preocupação da mídia que cobre esse caso deveria ser o cuidado com o preconceito e a discriminação – afinal, o mau procedimento, o mau atendimento ou o erro médico foram contra uma pessoa que pertencia a uma minoria: era ex-usuária de cocaína, bissexual e artista famosa.
Detalhe 1: foi infeliz a notinha do Tutty Vasques em sua coluna no sítio Nomínimo na semana passada. Ele colocou no ar que era uma piada Cássia Eller ter morrido de Plasil, numa óbvia alusão ao uso de drogas. O preconceito e a desinformação veiculados dessa forma – o humor tem um poder enorme de persuasão – geram uma ignorância profunda que dá créditos e estabilidade à ordem reinante.
Detalhe 2: tomei Plasil quando meu primeiro filho nasceu. O Plasil que tomei foi prescrito pela minha obstetra no pós-parto e tive taquicardia, tontura e retesamento muscular. A médica negou com veemência que os sintomas fossem do remédio, mas eu teimei e parei com a medicação. Isso faz 15 anos, aconteceu em Porto Alegre, e nunca mais tive aqueles sintomas e nunca antes os havia sentido.
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Jornalista em Florianópolis